As comemorações do 25 de Novembro são sempre um incómodo para a Esquerda. Para a Esquerda não democrática porque foi derrotada, e não lhes apetece, compreensivelmente, falar do assunto. Mas também é um incómodo para uma parte da Esquerda democrática, porque há por lá quem costume passar essa ocasião a envidar os seus melhores esforços para se demarcar das manifestações revanchistas da Direita não democrática, atropelando nesses esforços a Direita democrática, que até foi sua aliada no processo que conduziu ao 25 de Novembro, e esquecendo-se da outra Esquerda, que foi o seu adversário e de todos os verdadeiros democratas nesse processo. Para esta temporada da controvérsia de 2019, alguém pôs a circular umas declarações de Ramalho Eanes proferidas em 2015 e do outro lado do Mundo (nas Filipinas), que se adequavam ao espírito que o governo e aquela que acredito seja a facção mais esquerdista do PS pretendiam dar à evocação da data:
«O 25 de Novembro foi um momento fracturante e eu entendo que não devemos comemorar; os momentos fracturantes não se comemoram, recordam-se e recordam-se apenas para reflectir sobre eles.»
Esta é a parte que interessava destacar e que, apesar de já ter quatro anos, milagrosamente se pôde ler em quase todos os órgãos de comunicação social nos artigos referentes ao tema. Menos interessante para o agendamento mediático era a continuação dessas antigas declarações de Eanes: «No caso do 25 de Novembro, devíamos reflectir porque é nós, portugueses, com séculos e séculos de história, com uma unidade nacional feita de uma cultura distintiva profunda, porque é que nós chegámos àquela situação, porque é que chegámos à beira da guerra civil.» Menos interessante ainda, e igualmente datado de Novembro de 2015, seria os jornalistas recuperarem uma reportagem do Expresso onde o mesmo Eanes foi citado em destaque dizendo: «Se perdêssemos, seria fuzilado». O que quer dizer que, mesmo quarenta anos transcorridos, Eanes continua convicto que não receberia dos vencidos do 25 de Novembro um tratamento tão magnânimo como aquele que lhes foi dispensado pelos vencedores. Afinal, mesmo sem celebrações, o que esteve em disputa não foi assim tão irrelevante quanto o que hoje se possa querer fazer pensar.
O que pode ser é inoportuno recordá-lo. E por mais de que um motivo. Uma das constatações mais interessantes é o do número e identidade das pessoas de destaque da nossa sociedade actual que hoje deduzimos estarem do lado dos vencedores do 25 de Novembro (i.e., do lado da Democracia parlamentar) mas que se descobre que, na altura dos factos, estiveram do lado dos vencidos. A começar, e apenas para exemplo, pela segunda pessoa da hierarquia do Estado, Eduardo Ferro Rodrigues, o presidente da Assembleia da República, que então militava numa organização interessantíssima de extrema esquerda denominada MES, que achava que «A Democracia burguesa não tem (tinha) viabilidade em Portugal». Haverá centenas de outras pessoas cujo percurso político subsequente os fez viajar de concepções autocráticas da sociedade para outras mais democráticas. Uns são mais descarados no virar da casaca. Outros são mais compungidos na elaboração de formulas que compatibilizem o que pensaram e o que pensam, sem se auto-criticarem. Neste último caso, o esforço afigura-se-me meritório, mas baldado: no dia 25 de Novembro enfrentaram-se duas formas antagónicas de encarar a sociedade: uma era Democrática e a outra não era. E a tentativa de fazer uma ponte entre elas faz-me lembrar um certo tipo de benfiquistas que existiu há umas décadas atrás que, embora tendo idade para isso, só se haviam tornado benfiquistas depois da última conquista da Taça dos Campeões Europeus em 1962 (vídeo inicial). Sempre que se evocava essas duas finais gloriosas para o clube (1961 e 1962), notava-se que eles reagiam de uma forma mais mortiça do que os benfiquistas de sempre, que haviam acompanhado entusiasmados aquelas duas ocasiões. É também esse o problema destes Democratas (que eu acredito honestamente agora serem genuínos) do pós Novembro que, quando têm que lidar com a evocação desta data, não torceram pela equipa certa na altura certa. E isso deixa-os pouco confortáveis. Mas isso é um problema deles, não da maioria dos portugueses - de então e de hoje.
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