29 outubro 2019

«- POSSO NÃO ESTAR A VER BEM DE QUEM SE TRATA... »

Em obras de ficção de espionagem como esta acima, recém publicada, de Frederick Forsyth, os autores costumam ancorar-se em personagens reais de todos conhecidas para induzirem no leitor uma impressão de verosimilhança. É um expediente antigo, mas que agora parece estar a sofrer o desgaste dos tempos conturbados que se vivem. É que, neste seu último livro, Forsyth* faz aparecer a primeira-ministra britânica Theresa May rebaptizada apenas de Marjorie Graham; ao presidente americano não lhe dá nome, mas descreve-o com uma «grande e impecavelmente penteada cabeça loura». Com o livro acabado de sair na sua tradução portuguesa, o enredo já havia sido ultrapassado pelos acontecimentos: o primeiro-ministro do Reino Unido é agora Boris Johnson, e aguarda-se o desfecho das próximas eleições, para ver se o continua a ser. Mas a cena em que não me contive foi a que acima descreve quem rodeava Donald Trump por ocasião da reunião que ele teve com o herói da trama, na sala oval da Casa Branca: além do herói e do presidente, «um dos homens sentados era o chefe de Gabinete, outro o secretário de Defesa e o terceiro o procurador-geral.» Ora tendo o livro sido escrito em 2017 e 2018, foi muito precavido de Frederick Forsyth não os nomear, nem sequer os descrever, considerada a rotação registada entre os quadros de topo da Administração Trump desde que tomou posse em 20 de Janeiro de 2017. Chefes de Gabinete até agora foram três: Reince Priebus, John F. Kelly e Mick Mulvaney. Secretários da Defesa houve outros três: James Mattis, Patrick Shanahan e Mark Esper. E procuradores-gerais foram () dois: Jeff Sessions e William Barr. Seja como for, o expediente literário de criar um grupo de conselheiros à volta da «cabeça loura» naquela reunião hipotética falha rotundamente, porque a imaginação dos leitores não conseguirá assentar num elenco que é constituído por três de oito possíveis titulares. Noutros tempos, noutras circunstâncias, seria um apontamento de credibilidade a valorizar a narrativa, mas agora confesso, a título pessoal, que, e porque alguns nem aquecem o lugar, não estava a ver bem quem é que podia lá ter estado presente na supradita reunião...

* Nascido em 1938. Não cesso de me surpreender com a capacidade de escritores octogenários do género da espionagem em produzir obras indiscutivelmente saudadas pela sua qualidade, quando alcançam idades vetustas. Aliás, quanto mais vetusta a idade, tanto mais a qualidade da obra parece ser indiscutível...

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