03 novembro 2013

UM ESTUDO BRANCO – 2

Desafio ao Leitor
– Quem foi que o inspector prendeu pelo assassínio de Arthur J. Kilmington?
O autor forneceu aos leitores nada menos que oito pistas; essas oito pistas são suficientes para indicar, por dedução lógica, não só a identidade do assassino mas também o motivo do crime e o método empregado para cometê-lo.

O inspector prendeu o guarda do comboio pelo homicídio voluntário de Arthur J. Kilmington.

O relógio de ouro de Kilmington fora furtado por Inês Blake quando esta fingiu desmaiar às 8 e 25 e o entregou imediatamente ao cúmplice MacDonald. Ora Kilmington estava constantemente a consultar o relógio. É inconcebível, se só tivesse sido morto depois das nove, que não desse pela falta do relógio e não fizesse uma cena. Esse ponto fora confirmado pelo passageiro da primeira classe, segundo o qual um homem, que correspondia à descrição de Kilmington, lhe perguntara as horas às 8 e 50; ora, se essa pessoa fosse realmente Kilmington, teria decerto, antes de perguntar as horas a quem quer que fosse, procurado consultar o seu próprio relógio e, não o tendo encontrado, denunciado o furto. O facto de Kilmington não haver comunicado o roubo ao guarda, nem voltado ao compartimento para procurar o relógio, prova que ele fora assassinado antes de dar pela falta do relógio – ou seja, logo depois de haver deixado o compartimento, às 8 e 27. Mas o guarda afirmara ter falado com Kilmington por volta das nove horas. Logo o guarda estava a mentir. E por que haveria ele de mentir senão para forjar um alibi para si próprio? Esta é a pista número um.
O guarda assegura ter falado com Kilmington por volta das nove horas. Ora, às 8 e 55 o nevão cessara, substituído por uma leve nevada que não tardara a cessar. Quando Stansfield descobrira o cadáver, este encontrava–se coberto de neve. Kilmington portanto, devia ter sido morto enquanto o nevão ainda caía – isto é, antes das nove horas. Logo o guarda estava a mentir ao dizer que Kilmington ainda vivia por volta das nove horas. Esta é a pista número dois.
Henry Stansfield, que fora encarregado pela Companhia de Seguros Cosmopolitan de investigar o roubo das esmeraldas da condessa de Axminster reconstituiu o crime da seguinte maneira:

Motivo: A mulher do guarda estivera gravemente doente antes do Natal; ora, logo após o comboio ter sio assaltado, o marido chamara o melhor cirurgião de Glasgow e internara–a num hospital (segundo as declarações do maquinista: pista número três). O salário de um guarda não permite proporcionar a ninguém um tratamento tão caro: parecia provável, portanto, que o homem, desesperado com a doença da mulher, concordasse em participar do assalto em troca de uma boa gratificação. Que papel desempenhara ele? Durante a investigação, o guarda afirmara que só deixara a sua carruagem durante cinco minutos, quando o comboio percorria a última secção da subida de Sharp Bank e, ao voltar, verificara que faltavam as malas postais. Mas Kilmington, que viajava naquele comboio nessa ocasião encontrara o compartimento do guarda fechado, e agora (segundo as declarações de Mrs. Grant; pista número quatro) declarava a sua intenção de apresentar queixa do guarda. Este último sabia que o depoimento de Kilmington contradiria as suas próprias declarações, provando a sua cumplicidade no crime, visto que ele fechara a carruagem durante alguns minutos para atirar fora as malas postais, e dissera a Kilmington que estava a dormir (declarações do próprio Kilmington) quando o último lhe bateu à porta. Por isso Kilmington precisava desaparecer.
Stansfield já suspeitava de Percy Dukes como organizador do assalto. Durante a viagem, Dukes traíra-se por três vezes. Primeiro, embora esse detalhe não tivesse sido mencionado pelos jornais, mostrara conhecer o ponto da via em que as malas haviam sido atiradas do comboio. Segundo, embora a perda das esmeraldas também não tivesse sido noticiada pela imprensa, sabia que a jóia roubada havia sido um colar de esmeraldas; Stansfield armara-lhe uma cilada, dizendo tratar-se de uma pulseira, mas no decurso da conversa Dukes referira-se a um «colar». Terceiro, o seu visível desapontamento ao ouvir a declaração (falsa) de Stansfield de que as esmeraldas valiam 25 mil libras, fora a reacção de um criminoso que se julgasse grosseiramente ludibriado pelo receptador a quem as vendera. Dukes planejava agora um segundo assalto ao comboio e pretendia obrigar o guarda a ser seu cúmplice novamente. O depoimento de Inês Blake (pista número cinco) que o ouvira dizer: «Você vai ajudar–nos de novo, meu velho», etc., indicava manifestamente a cumplicidade do guarda no assalto anterior: era quase certo que ele só poderia ter dito isso ao guarda, pois somente um funcionário do caminho-de-ferro poderia saber da existência de uma barraca de assentador naquele trecho da linha e combinar com Dukes um encontro nesse sítio; além do mais, se Dukes falasse sobre os seus planos para o próximo assalto no próprio comboio a alguém que não fosse funcionário da companhia, teriam ambos atraído suspeitas se fossem vistos a conversar.

Método: às 8 e 27 Kilmington vai ao compartimento do guarda. Ameaça apresentar queixa, embora estivesse muito longe de suspeitar sequer das consequências tremendas que dessa queixa adviriam para o interlocutor. Provavelmente a pretexto de lhe mostrar o caminho para a aldeia, o guarda consegue levá-lo para fora do comboio, sai com ele da área iluminada, dá-lhe uma pancada (a marca produzida, muito superficial, escapara ao rápido exame que Stansfield fizera ao cadáver), transportara–o para o lugar onde Stansfield o encontrou, enchendo–lhe as narinas e a boca de neve. Depois, em lugar de deixar o caso assim, resolve forjar um alibi para si. Pega no chapéu da vítima, volta para o comboio, veste o seu sobretudo preto, encontra um passageiro solitário a dormir, finge-se de Kilmington perguntando as horas e fortalece essa impressão dizendo que irá a pé à aldeia se a máquina de socorro não chegar dentro de cinco minutos; volta para junto do cadáver e atira o chapéu para junto dele (Stansfield verificou que o chapéu estava levemente coberto de neve em comparação com o corpo do morto: pista número seis). Além disso, o passageiro notara que o homem que lhe perguntara as horas usava calças azuis (pista número sete). O uniforme do guarda era azul; mas o fato de Dukes era cinzento e o de MacDonald xadrez – por conseguinte, o mascarado não podia ser nenhum dos dois.


São agora 8 e 55. O guarda decide reforçar o seu alibi indo ao encontro do fogueiro que regressava. Segue o caminho mais curto entre o cadáver e a barraca do assentador. O rastro que ele deixa, comparado com a trilha batida que se dirige para a aldeia, está muito menos cheio de neve quando Stansfield o encontra (pista número oito); por conseguinte, deve ter sido feito após o assassínio e não pode incriminar Percy Dukes. O guarda encontra–se com o fogueiro logo depois das 8 e 55. Voltam juntos para o comboio. O guarda é chamado à parte por Dukes que saíra para «dar a sua volta» e trava-se a conversa ouvida por Inês Blake. O guarda diz a Dukes que se encontrará com ele, logo a seguir, na barraca; fê-lo, a fim de pôr as culpas em Dukes, caso fosse descoberto o assassínio, pois Dukes encontraria dificuldades em explicar por que estivera sozinho numa barraca fria durante exactamente meia hora na ocasião em que presumivelmente Kilmington fora morto a uma distância de cento e cinquenta metros apenas. O guarda dirige-se para a máquina e fica lá a conversar com os colegas durante uns quarenta minutos. Fica assim estabelecido o seu alibi para o período que medeia entre as 8 e 55 e as 9 e 40. O seu plano poderia ter sido bem sucedido se não fossem três factores que não podiam ser levados em consideração – a presença de Stansfield no comboio, o facto de o nevão ter cessado pouco depois das nove e o roubo do relógio de Arthur J. Kilmington.

Frustrações da minha infância à parte, para rematar, considero ser necessário acrescentar três outros factores que contribuíram, mais do que para a resolução do caso, para que Nicholas Blake conseguisse criar um caso para escrever o conto. Primeiro que, aparentemente, não tivesse havido nem qualquer investigação nem que houvessem sido adoptadas medidas preventivas na sequência do primeiro assalto, determinantes para que o guarda pudesse continuar a ocupar o mesmo posto sem ter sido sequer investigado. Segundo, que Percy Dukes se mostrasse um assaltante de comboios suficientemente estúpido para repetir o mesmo assalto utilizando o mesmo modus operandi escassas semanas depois do primeiro. Terceiro, que o guarda fosse uma personalidade suficientemente sofisticada e disfuncional para se mostrar, por um lado, relutante em cometer mais um assalto, mas se dispusesse a cometer, por outro e naquilo que parece ter sido um impulso, um assassínio com aquela forma tão rebuscada de forjar um alibi para si.

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