Mais do que um editor se lembrou do furo de publicar um livro com as páginas totalmente em branco e transformar o absurdo projecto num sucesso de vendas, socorrendo-se de um título qualquer que podia ser explícito, como O Livro em Branco ou então e de preferência, mais enigmático, como, por exemplo, Memórias de um Amnésico ou então, como se lê acima, O que Todo o Homem Pensa Além de Sexo. Seria porventura um exagero usar o título deste poste, Álvaro Cunhal, o Parlamentar, para capear um livro em branco como os que agora descrevi, mas, nesta época em que o nome de Álvaro Cunhal se tornou, ele próprio, num furo editorial, talvez possamos aprender, através desta minha pequena pesquisa, que a actuação daquela reverenciada figura na reverenciada Casa da nossa Democracia – a Assembleia da República – não ultrapassará em extensão as folhas que se dedicavam a uma daquelas antigas agendas de bolso.
Comece-se por dizer que Álvaro Cunhal foi um dedicado concorrente a ocupar uma das cadeiras da supra Casa. Como Secretário-Geral do Partido Comunista Português foi o cabeça da lista que os comunistas apresentaram para o distrito de Lisboa (o maior e, por inerência e tradição, o lugar mais prestigiado numa candidatura de um partido) em todas as sucessivas eleições que tiveram lugar em Portugal entre 1975 e 1987: as eleições para a Assembleia Constituinte de 1975 e as eleições para a Assembleia da República de 1976, 1979, 1980, 1983, 1985 e 1987. Em todas elas, salvo 1976 e 1985, as listas do PCP foram as terceiras mais votadas em termos nacionais e Álvaro Cunhal foi sempre eleito folgadamente como deputado. Cunhal só deixou de se apresentar a eleições em 1991, à beira de completar 78 anos, quando abandonou o lugar àquele que era o seu sucessor designado, Carlos Carvalhas.
Mas, regressando ao passado, veja-se como esta fotografia acima está carregada de simbolismo: trata-se da primeira sessão da Assembleia Constituinte em 4 de Junho de 1975, eleita a 25 de Abril desse ano. Nela se reconhecem ao centro, na primeira fila, e da esquerda para a direita devidamente numerados: Otelo Saraiva de Carvalho (1), Álvaro Cunhal (2), Magalhães Mota (3), Mário Soares (4), Pereira de Moura (5) e Salgado Zenha (6)¹. Álvaro Cunhal, apesar de ter sido eleito para aquela Assembleia (como os restantes nomeados, com excepção de Otelo), não estava na respectiva bancada, porque aparece nesta cerimónia a desempenhar a sua função de ministro sem pasta do IV Governo Provisório. Mais tarde, com a formação dos V e VI Governos Provisórios, Cunhal deixou de desempenhar qualquer cargo governamental mas, mesmo assim, preferiu não ocupar a sua cadeira como deputado constituinte.
Álvaro Cunhal voltou a ser eleito nas primeiras eleições legislativas de Abril de 1976. Dessa vez ocupou o seu lugar de deputado entre Junho e Novembro de 1976, quando pediu para ser substituído. Nesse período, das 43 sessões em que Álvaro Cunhal poderia ter participado, compareceu em 11 (o que corresponde a 25,6% de presenças). Seis meses depois da substituição, em 19 de Maio de 1977, Cunhal renunciou ao mandato. Mas tornou a ser eleito nas eleições intercalares que tiveram lugar em Dezembro de 1979. Ocupou o seu lugar de deputado logo a partir da primeira sessão em Janeiro de 1980 e ficou até ao fim da sessão em Julho do mesmo ano. Pode-se dizer dialecticamente que, dessa vez, ele se esforçou: com 22 presenças em 73 sessões parlamentares realizadas, já só esteve ausente em 70% delas. E mais uma vez foi reeleito nas eleições de Outubro de 1980. Foi o período em que Álvaro Cunhal manteve o estatuto de deputado por mais tempo: entre Novembro de 1980 e princípios de Junho de 1982, mas com uma taxa de absentismo que se tornara lendária (32 presenças em 196 sessões: 16,3%) e objecto dos comentários dos adversários políticos quanto à antipatia de Álvaro Cunhal pela actividade parlamentar. Isso não o impedia de se reapresentar como cabeça de lista no lugar de destaque do costume, como um ritual, nas eleições que se seguissem. Isso tornou a acontecer em Abril de 1983, em Outubro de 1985 e em Julho de 1987, mas a partir daí, Álvaro Cunhal era logo substituído por um seu colega a partir da primeira sessão, numa rotação (normalmente) de seis em seis meses até haver uma discreta renúncia ao mandato: em Maio de 1984 ou em Julho de 1989. Curiosamente, naquilo que terá sido provavelmente um lapso nas contagens de tempo das suspensões de mandatos, Álvaro Cunhal terá voltado a ser um deputado absentista durante quatro sessões entre 14 e 17 de Fevereiro de 1989, no seu último regresso, tão virtual quanto inesperado, a um mundo que ele não apreciaria e onde ele também não era particularmente apreciado.²
Em consequência de tudo aquilo que se contou, e um pouco à semelhança daquelas organizações revolucionárias que possuem uma vertente política e outra militar, o Partido Comunista parece também ter desenvolvido duas tradições, a interna mais clássica e mais discreta, mas também uma outra parlamentar com mais exposição mediática que, mesmo que não se antagonizem, convivem lado a lado numa aliança objectiva com a segunda subordinada à primeira. Os trajectos políticos sempre decepcionantes de parlamentares comunistas como Carlos Brito, Octávio Teixeira ou António Filipe transmitem-nos a desconfiança que todos estes anos ensinaram o PCP a saber viver no parlamento, mas que o partido continua a ser, no seu âmago, incorporando o fantasma de Cunhal, um partido extraparlamentar.
¹ Também se podem identificar nas bancadas Jorge Miranda (7), Diogo Freitas do Amaral (8) e Basílio Horta (9).
² O absentismo de Cunhal foi calculado a partir da consulta metódica dos diários das sessões.
² O absentismo de Cunhal foi calculado a partir da consulta metódica dos diários das sessões.
É muito importante que, nesta época em que se tenta incensar a figura de Álvaro Cunhal, que não se esqueçam as outras vertentes da sua vida política, sendo uma delas o desprezo pelo Parlamento, a Casa da Democracia. Aliás Álvaro Cunhal era antifascista durante a ditadura e foi antidemocrata em plena democracia. Convém que não se reescreva a História, com as tentativas de apagamento da ideologia totalitária que Álvaro Cunhal, como SG do PCP, defendia e tentou implementar em Portugal.
ResponderEliminarParabéns pelo post.