15 novembro 2013

O TESOURO «DEGENERADO»

Esta é mais uma daquelas interessantes histórias modernas que desaparece por detrás dos cabeçalhos. Começa em Hildebrand Gurlitt (1895-1956), que foi um comerciante de arte alemão nascido numa daquelas famílias vocacionadas: o avô era pintor, o pai era um arquitecto e historiador de arte, tinha um irmão musicólogo, a irmã pintava, um tio-avô era compositor, o tio e um primo direito eram seus concorrentes. Calhou estar no local e ter os contactos certos quando o III Reich se começou a desfazer de pinturas que considerava degeneradas (acima e abaixo) e foi um dos que recebeu a permissão de Joseph Goebbels para transaccionar as obras apreendidas assim como outras adquiridas sob coacção a proprietários judeus. No final da Segunda Guerra Mundial, quando as autoridades aliadas que ocuparam a Alemanha foram pelo espólio artístico que ele acumulara durante os anos de guerra (sobretudo em França), Gurlitt explicou-lhes que a maior parte dele desaparecera incinerado em Fevereiro de 1945, quando do bombardeamento de Dresden que praticamente destruíra todo o centro da cidade – com a casa – onde Gurlitt nascera. A história termina provisoriamente por aí: Gurlitt mudou-se para a Baviera (Dresden ficara na zona de ocupação soviética, que viria a tornar-se na República Democrática Alemã), continuando a dedicar-se ao comércio de arte até vir a falecer num desastre de automóvel em 1956 com 61 anos.
A história recomeça mais de 50 anos depois, em Setembro de 2010, quando o septuagenário filho de Hildebrand, Rolf Nicolaus Cornelius Gurlitt (1932- ), foi identificado num comboio vindo da Suíça por funcionários aduaneiros alemães na posse de uma importância significativa mas não escandalosa de numerário (9.000 €). Aquilo que se seguiu foi o resultado de uma investigação desencadeada porque o excêntrico Rolf Gurlitt parecia não existir nos complexos e sofisticados sistema fiscal e de segurança social da Alemanha. E foi a preocupação com eventuais evasões fiscais que fez com que fosse executado um mandato que levou depois à descoberta de 1.400 quadros de autores famosos num discreto apartamento seu de Munique. A colecção – que parece ser a que Hildebrand Gurlitt dera como desaparecida em 1945 – é a parte mais espectacular da notícia. São 121 peças emolduradas e 1.258 por emoldurar de uma profusão de autores, onde aparecem tanto nomes degenerados como clássicos¹. E, para dar um valor a uma colecção que tem literalmente um valor incalculável, avançou-se com um número de mil milhões de €. O interesse informativo da história não se fica por aqui, projecta-se para o futuro e para qual virá a ser o destino de cada uma das peças da colecção, a começar pelas questões associadas à propriedade das obras, consideradas as condições anómalas em que aquelas terão sido adquiridas – se o foram… – por Hildebrand Gurlitt.
Mas existem outros aspectos interessantes desta história que não tenho visto devidamente explorados pela comunicação social. A começar pela discrição de Rolf Gurlitt, que se viu detentor de uma descomunal fortuna em arte aos 24 anos, mas que optou por viver uma vida moderada, vendendo de quando em vez, através dos processos obscuros que viriam a ser a sua perdição, uma das obras da herança, para ir pagando as contas, mas sem mostras de ostentação, nem de egoísmo: após a descoberta do espólio no apartamento em Munique, o cunhado de Gurlitt, Nikolaus Fraessle, viúvo da sua única irmã Renate, veio confessar que também ele tinha 22 quadros da colecção em sua casa em Estugarda. E a outra conclusão interessante tem a ver com o totalitarismo do Estado. Não apenas o totalitarismo do III Reich quando se julgou competente para definir aquilo que era a Arte, ao mesmo tempo que transigia nomeando pessoas como Hildebrand Gurlitt para transaccionar a tal Arte que não o era. Mas sobretudo o totalitarismo do aparelho de Estado da actual República Federal da Alemanha que, ao (não) descobrir nos seus ficheiros a existência de Rolf Gurlitt, se permitiu investigar e intrometer-se na sua vida (até então pacata) sob o pretexto de uma potencial evasão fiscal… É sempre preferível que este tesouro degenerado seja conhecido do Mundo, mas reconheça-se que a sua descoberta resulta de um acaso mas também de um abuso.
¹ Por ordem alfabética, alguns, com aqueles indiscutivelmente degenerados assinalados: Barlach, Beckmann, Canaletto, Chagall, Courbet, Dix, Dürer, Klee, Kokoschka, Liebermann, Kirchner, Macke, Marc, Matisse, Munch, Nolde, Picasso, Renoir, Schmidt-Rottluff, Spitzweg e Toulouse-Lautrec.

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