09 maio 2006

TOURADA

O Festival da Canção da RTP de 1973 foi disputadíssimo e terminou com a vitória de uma canção intitulada Tourada, com música e interpretação de Fernando Tordo e letra de Ary dos Santos.

Se a intelectualidade normalmente primava em piscar o olho ao público, passando-lhe a sua mensagem subtilmente, diante do olhar bovino da censura, nesta canção a letra é de uma subtileza taurina e não deixa dúvidas que está a gozar e até com quem está a gozar.

Foi um escândalo. Embora a tourada não faça parte dos famosos 3 efes que se diz terem sido os pilares do regime (fado, futebol e Fátima), tem a sua sociologia própria, muito hierarquizada, que não achou piada nenhuma ao acontecimento e colocou os maiores obstáculos à carreira posterior da canção. Eis a letra:

Não importa sol ou sombra
camarotes ou barreiras
toureamos ombro a ombro
as feras.
Ninguém nos leva ao engano
toureamos mano a mano
só nos podem causar dano
e esperas.
Entram guizos, chocas e capotes
e mantilhas pretas
entram espadas, chifres e derrotes
e alguns poetas
entram bravos, cravos e dichotes
porque tudo o mais
são tretas.
Entram vacas depois dos forcados
que não pegam nada.
Soam brados e olés, dos nabos
que não pagam nada
e só ficam os peões de brega
cuja profissão
não pega.
Com bandarilhas de esperança
afugentamos a fera
estamos na praça da Primavera.
Nós vamos pegar o mundo
pelos cornos da desgraça
e fazermos da tristeza graça.
Entram velhas doidas e turistas
entram excursões
entram benefícios e cronistas
entram aldrabões
entram marialvas e coristas
entram galifões de crista.
Entram cavaleiros à garupa
do seu heroísmo
entra aquela música maluca
do passodoblismo
entra a aficionada e a caduca
mais o snobismo
e cismo...
Entram empresários moralistas
entram frustrações
entram antiquários e fadistas
e contradições
e entra muito dólar muita gente
que dá lucro as milhões.
E diz o inteligente
que acabaram
as canções…

Reparem que a certa altura se faz menção aos peões de brega, cuja profissão não pega. Não sei se pegaria naquela altura, no estertor do regime e na figura de Cazal Ribeiro, o deputado ultra, encarregado de dar troco e neutralizar as intervenções na Assembleia Nacional dos membros pertencentes à ala liberal.
Hoje, é olhar para figuras como Guilherme Silva e agora para Vitalino Canas para reconhecer que a profissão de peão de brega está longe de se extinguir. E sempre tem a sua utilidade, embora o Dr. Teixeira dos Santos a devesse considerar como profissão de desgaste rápido para efeitos de tributação de IRS…

3 comentários:

  1. O mal é que a profissão não é de desgaste rápido.
    Pelo contrário, é confortável, generosa e pouco exigente. Por isso, eles nunca mais saem de lá.
    Vão rodando, passam do banco de suplentes (oposição) para o terreno de jogo, regressam ao banco e, quando se fartam, já têm a reforma no bolso (rápida e merecida) e um lugar num qualquer instituto ou Direcção Geral.

    De desgaste rápido, coitadinhos, é a profissão de futebolista. Mineiros? Pescadores? Construção civil? Bela vida, meus senhores, bela vida...

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  2. O desgaste rápido a que me refiro é na credibilidade pessoal do "peão de brega" que se presta a fazer aquelas cenas gagas. Nunca mais pode ser alguém na cena política!

    Se o Vitalino Canas se cruzasse comigo e me dissesse "olhe que tem a braguilha aberta", eu nem baixava os olhos, ficava à espera de uma segunda opinião...

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  3. Nessa perspectiva, todos eles têm o futuro assegurado, com uma especialidade em que são imbatíveis:
    contorcionismo.

    Ou a substituir aquele boneco entretanto desaparecido :
    o sempre-em-pé.

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