02 novembro 2016

PARÁBOLA A PROPÓSITO DE UMA FOTOGRAFIA DE UM GAFANHOTO GIGANTE

Em outros tempos, nomeadamente quando esta fotografia foi feita (na legenda lê-se 1937), só uma minoria culta se aperceberia da fraude da montagem. Era preciso uma certa cultura, da sustentada, da científica, para saber que os insectos não crescem até àquelas proporções: não possuem endosqueleto nem pulmões. Podia-se chegar à mesma conclusão de uma outra forma, sabendo alguma coisa de dinossauros e de paleozoologia: nas centenas de milhões de anos com que conta a História da Vida na Terra, nas formas mais díspares que ela terá assumido, nunca se encontraram vestígios fósseis de insectos gigantes; logo, algo justificaria essa ausência, porque certamente não se teria estado à espera todos esses milhões de anos para que os gafanhotos desatassem subitamente a crescer! Outros ainda, numa perspectiva exclusivamente visual, detetariam a montagem feita com o gafanhoto ampliado por causa da luminosidade e da incidência da luz que se nota ser ligeiramente distinta entre o caçador e a presa. Mas a prosaica realidade é que para a esmagadora maioria daqueles a quem se pusessem dúvidas quanto à verosimilhança do tamanho do bicho e da legitimidade da fotografia, poucas hipóteses teriam de as esclarecer, o que seria pretexto para intermináveis discussões à mesa de um café. Quando pequeno, assisti a bastantes, do meu avô, desde o sistema solar aos cogumelos. Terá sido a propósito delas que terei fixado cedo a expressão Em terra de cegos quem tem um olho é rei. Os leitores do século XXI não imaginam o que é viver com aquele impasse: têm à disposição algo com que os seus antepassados nunca sonharam: uma enciclopédia ao alcance dos dedos: a Wikipedia esclarece-nos em minutos que o maior ortóptero que se conhece é um grilo que vive na Nova Zelândia e que pode atingir os 10 centímetros de comprimento. O que torna o bicharoco da foto numa evidente falsificação. Hoje é assim tão fácil esclarecer as dúvidas factuais. Mas é precisamente essa facilidade que dá toda uma outra importância à atitude que precede o esclarecimento: levantar as dúvidas. A sociedade moderna dá-nos os meios que nos obrigam a ser muito mais exigentes e muito mais inteligentes. Isso em si devia ser magnífico, teríamos uma sociedade melhor em resultado de uma melhor cidadania, mas há ocasiões em que me questiono se a maioria de nós, mesmo não tomando consciência do fenómeno, não preferiria continuar com o rame-rame do futebol e das outras coisas do costume e não se sentirá desconfortável por esta responsabilidade acrescida...

1 comentário:

  1. Que me desculpem, leitores e autor, mas há comentários que me chegam discretos e que eu tenho imenso gosto em tornar públicos:

    «A propósito do teu texto, crítico como sempre, como diz argutamente um amigo meu: " em terra de cegos não é quem tem um olho que é rei, é quem diz que tem um olho, porque os outros são cegos e não vêem..." Julgo aplicar-se várias das tuas ironias! Um abraço.»

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