Há um hábito instalado entre nós que atribuiu uma espécie de canonização automática a qualquer recém-falecido. É um hábito que me irrita superiormente pelos excessos aonde obriga a chegar a hipocrisia. Há qualquer coisa de visceralmente cúmplice na atitude, como se esperássemos que, quando fosse a nossa vez, se fizesse o mesmo por nós, como se o Julgamento Final afinal existisse e se pudesse aldrabar Deus com umas palavrinhas simpáticas enviadas cá de baixo. Morre o defunto e, com ele, parece que também morre a Verdade a seu respeito. Quando acontece com figuras públicas, os artigos de jornal que o noticiam tornam-se ridículos pelas omissões escancaradas aos aspectos controversos da notoriedade de quem morreu. Aconteceu hoje com Miguel Veiga, personalidade cujos predicados os sítios do costume dão nota (elogiosa), mas também conhecido por ter uma concepção bizarra do conceito de propriedade intelectual, envolvido em mais do que um escândalo por plágio. É uma outra forma de ser ladrão e houve até dois a quem, notoriamente, se abriram as portas do Céu, porque acreditaram em Jesus Cristo. Mas talvez o melhor tivesse sido noticiar a morte de Miguel Veiga mais sobriamente porque, a partir do momento em que se decide elogiar o defunto, a Verdade obrigará também a denegri-lo.
José António Saraiva, Eu e os políticos p.104
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