03 outubro 2006

RETOMAR BAFATÁ AO PAIGC - 2




(em continuação)

Conhecendo-se as condições geográficas da Guiné-Bissau, procurando dar maior relevo às missões da Armada Portuguesa, mas também por questões de comodidade logística, privilegiaram-se as localidades mais costeiras para as sedes dos batalhões do corpo expedicionário. Nomes de aquartelamentos que em alguns oficiais generais ainda lhes fazia recordar memórias vivas do seu tempo de subalternos: Bissau, Mansoa e Tite, na zona central, um outro triângulo mais alargado, próximo das fronteiras, composto por Ingoré, junto à fronteira com o Senegal, Catió, no Sul, próximo da fronteira com a Guiné, e Gabu, no Leste, a única unidade destacada francamente para o interior.
O processo de negociações entre as autoridades da UNAMGB e os variados representantes que se apresentaram como interessados na reconstrução começou a correr mal desde o início. Por um lado, o ostracismo a que foi votado o PAIGC, mesmo os seus elementos mais moderados que seriam os últimos resíduos da máquina estatal, levou a que os membros da organização e o que dela restava se passassem decididamente para a oposição.
Os fulas, que haviam sido os aliados preferenciais dos portugueses na época colonial e que haviam sofrido fortemente por isso depois da independência, preferiram desta vez adoptar uma postura mais cautelosa, não deixando, entretanto, de se prepararem para a fase posterior à da retirada da UNAMGB, formando as suas milícias, cujo treino e equipamento se foi fazendo de uma forma gradualmente mais descarada. Desta vez não seriam apanhados desprevenidos num eventual ajuste de contas.
Restando o PRS, o grupo da maior etnia guineense (balanta), faltava a todo o processo de negociações os participantes que lhe conferissem a representatividade necessária para que o processo previsto de transferência de poder da UNAMGB para uma administração local fosse eficaz.
Os primeiros incidentes desencadearam-se depois de uma enorme multidão se ter juntado procurando ser contratados pela UNAMGB. A informação era falsa, como depois se veio a provar, mas os boatos que correram, em que era sempre o outro grupo que era beneficiado pelas contratações, em detrimento daquele por onde o boato corria, ocasionou manifestações de protesto, que se transformaram rapidamente em conflitos inter-étnicos. Para os dominar tiveram que ser empregues as forças militares.
O PAIGC, aproveitando a situação, decidiu capitalizar a insatisfação gerada pelo impasse da situação política, reacendendo também as animosidades da época colonial contra os portugueses que constituíam as forças que asseguravam a segurança. As forças militares portuguesas começaram a ser atacadas quando em missão de patrulha, de uma forma esporádica, a princípio, depois de uma forma cada vez mais metódica. Os ataques ocasionaram as primeiras baixas e as autorizações para ripostar em quaisquer circunstâncias.
Os repórteres de TV passaram a ter cada vez mais motivos de reportagem até que a banalização dos incidentes os retirou do horário nobre das televisões. Seguiu-se depois a época alta dos repórteres integrados quando acompanharam várias operações que haviam sido montadas para a captura dos guerrilheiros: em Mansabá, em Farim e em Bafatá. O maior sucesso deste conjunto de operações foi a captura do ex-Presidente, que vivia escondido nos arredores de Gabu.
Ainda assim, os serviços de informações militares calculavam que as forças de guerrilha ainda contassem com cerca de 700 guerrilheiros e que estes se tinham vindo a especializar em acções de terrorismo urbano e em abater alvos seleccionados, sejam eles membros da administração civil da UNAMGB, sejam adversários políticos guineenses.
Estes últimos tinham vindo a responder expandindo as suas milícias. Os seus efectivos já se contavam por milhares. Embora não estivessem particularmente bem equipadas, a sua atitude em relação aos portugueses era, na melhor das hipóteses, neutral. Os conflitos entre as milícias tinham tendência para se multiplicar perante a ausência de qualquer força policial. Havia uma certa relutância em expor as tropas a eventuais baixas sofridas em acções de interposição entre contendores. Importado da cena internacional, nem mesmo o factor religioso estava ausente do xadrez político da Guiné-Bissau, onde se mistura uma substancial minoria muçulmana (cerca de 45% da população) com uma outra metade que professa as suas religiões tradicionais[1].
Em Lisboa, os responsáveis financeiros ensaiam soluções para transferir a maior parte dos custos da UNAMGB para a ONU, os militares tentam descortinar a forma de conseguir proceder à rotação das forças destacadas na Guiné-Bissau e os políticos procuram achar a fórmula diplomática mágica que permita a Portugal retirar-se da aventura guineense sem perder a face.
No Quartel-General de Bissau, onde reinam as preocupações para se manterem abertos corredores por onde se possa proceder ao reabastecimento terrestre dos aquartelamentos do interior, está-se a montar mais uma operação para retomar Bafatá ao PAIGC… pela terceira vez.
Antes que toda esta ficção acabe numa derrota clamorosa para os portugueses, permita-me o leitor terminá-la por aqui. Em África, já basta Alcácer Quibir. Também não terá sido justo criar mais vicissitudes ficcionadas para o povo da Guiné-Bissau, que as tem vivido bem reais.
Se algumas das situações que foram descritas até podem transmitir qualquer coisa de familiar ao leitor, haverá outras que lhe poderão parecer absolutamente inverosímeis: forças armadas portuguesas sem quaisquer carências de material? Desde quando?
A verdade é que toda a narrativa anterior não é uma ficção total, trata-se antes uma adaptação. As forças militares portuguesas na Guiné-Bissau reproduzem à escala e com as necessárias adaptações pontuais a actual intervenção norte-americana no Iraque.
É evidente que, à primeira vista, quase tudo separa o Iraque da Guiné-Bissau. Em primeiro lugar e em lugar de destaque os recursos petrolíferos. Depois a História. A Mesopotâmia foi um dos berços da civilização. Bagdade foi capital do Califado árabe. A sociedade iraquiana é profundamente mais sofisticada do que a da Guiné-Bissau. Mas também se tornou imperioso escolher um país bastante mais pequeno para tornar credível a intervenção de um país da dimensão de Portugal.
É também evidente que foi bastante forçado atribuir às forças portuguesas uma riqueza em meios materiais que, perante a situação actual e perante a tradição histórica, até pode ser considerada irónica.
Quanto às cláusulas especiais de um novo Direito Internacional que serviram para cobrir legalmente a intervenção portuguesa, elas tornam-se dispensáveis quando se trata do caso dos Estados Unidos. Por muito que isso desagrade aos seus rivais mais directos, são eles que criam as suas próprias cláusulas.
Mas ver as coisas a decorrerem a uma escala mais pequena, envolvendo o nosso país, dá-lhes um toque como se fosse mais íntimo e uma melhor compreensão de como certos episódios se tornam absurdos.
A descrição do desembarque do corpo expedicionário português em Bissau não corresponde a qualquer acção no Iraque mas à que ocorreu em Mogadíscio, na Somália, enquanto a cena do aeroporto se inspira nas imagens transmitidas durante a chegada das primeiras forças australianas a Dili.
Mas a situação política é decalcada da situação iraquiana com o PAIGC a fazer o papel do Partido Baas dos Sunitas, os fulas e os balantas a aparecerem respectivamente no lugar dos curdos e dos xiitas. O Presidente é, evidentemente, inspirado na figura de Saddam Hussein, com o retoque de Mugabe, que mencionámos antes.
Os efectivos nomeados, bem como as unidades envolvidas, estão em proporção geográfica e demográfica aos que existem actualmente no Iraque. As esquadrilhas de F-16 norte-americanas também lá estão para intimidar a vizinhança síria e iraniana.
Usou-se de alguma liberdade na escolha dos locais de aquartelamento, mas a reconquista de Bafatá não é mais do que uma metáfora das sucessivas reconquistas de Fallujah ou de Tall Afar por parte dos marines norte-americanos.
São essas reconquistas sucessivas de territórios supostamente já pacificados que não deixam de ser um prenúncio de uma situação militar que se pode considerar melindrosa. Se os norte-americanos perderem a guerra, ou se se vierem embora para evitarem estar lá quando for a altura de a perder (o que estrategicamente dará no mesmo), isso acontecerá mais por erros próprios do que pela força da oposição com que tiveram de se defrontar.
Regressando à parte ficcionada, o que a tornou menos credível, foi a descrição da condução política do processo, conjugado com o esforço para criar um ambiente de ausência de qualquer empatia entre as tropas portuguesas e a população local.
No que diz respeito a este último aspecto, os portugueses e os guineenses terão sempre a língua comum e, mesmo na ausência dela, haverá sempre o Benfica e o Sporting a fazer a ponte entre eles. É mesmo muito difícil imaginá-los encarando-se e ignorando-se mutuamente. Não está no feitio nem de uns nem de outros.
Os norte-americanos deixaram a sociedade iraquiana chegar à anarquia total durante a fase das operações; depois disso têm-se queixado da falta de intérpretes de arábico vindos dos Estados Unidos, e, já agora, mesmo as suas estrelas do basebol e basquetebol nada dizem aos iraquianos – ao contrário das estrelas de futebol, mas estas, por sua vez, os americanos não sabem quem são. Não deixaram saudades na Coreia, não deixaram saudades no Vietname, provavelmente não as deixarão no Iraque.
Quanto à condução política do processo desta ficção pode ser visto como um exemplo para estudo de como não se deve proceder em situações similares. Como talvez acontecerá no futuro com o original iraquiano onde se inspirou. Será desejável e útil para os norte-americanos é que os resultados desses estudos não venham a ser tratados da mesma forma que foram os estudos da Guerra do Vietname.
Também em Portugal se deve preservar e estudar os arquivos das campanhas coloniais. Feito o cômputo global, há observadores externos que pensam que nos saímos relativamente bem[2] delas. Para a nossa pequena história de ficção, fica a convicção que, com o know-how que ainda existe entre nós e que não devemos perder, a condução político-militar do processo ter-nos-ia evitado afinal ter que retomar Bafatá ao PAIGC.

[1] Quid 2004, p.1144.

[2] Contra-Insurreição em África, John P. Cann, Atena 1998.

5 comentários:

  1. Excelente como sempre, caro a. teixeira! De facto logo desde o início como que adivinhei o objectivo desta tua ficção... Faz de facto compreender o que se passa no Iraque "do ponto de vista americano", e como mesmo desse ponto de vista houve erros estratégicos e de planeamento clamorosos...

    ResponderEliminar
  2. Os norte-americanos têm um exército profissionalizado com um tremendo poder de combate, muito dispendioso em custos de equipamento e ainda mais em custos de operação, ideal para intimidar os russos e dissuadir os chineses em arranjarem um igual.

    Todavia, se quiserem ocupar outros países e engajarem-se em combater guerrilheiros(contra-subversão) precisariam de um OUTRO exército, menos sofisticado, com outra doutrina de acção e com muito mais efectivos...

    Como isso parece não ser possível então precisariam de arranjar aliados... Mas, para isso, seria preciso cativá-los...

    ResponderEliminar
  3. Pois... e é isso que eles ainda não perceberam. O 11 de Setembro não lhes ensinou assim tanta coisa. Perceberam finalmente que o mundo mudou, mas não que já não é preciso dissauadir os russos (embora quanto aos chineses o argumento se mantenha...). A 11 de Setembro de 2001, o Pentágono e a CIS ainda mantinham inúmeros tradutores de russo, mas tradutores de árabe quase não se encontravam... hoje, cinco anos depois e uma invasão falhada e outra a deslizar para lá, parece que não aprenderam o suficiente. Ou recusam-se a aprender, o que é pior.
    Já agora, partilho da tua ideia que os americanos precisariam de um outro exército com outra doutrina de acção, mas não com mais efectivos nem menos sofisticado, exactamente ao contrário, acho que no tipo de guerra em que se vêm e verão envolvidos mais que o número a tecnologia bélica será determinante. Ou seja, em vez de um batalhão, um pequeno grupo mas enviado para missões de localização escolhida cirurgicamente. Mas não sou nenhum Nuno Rogeiro nem nenhum Loureiro dos Santos...

    ResponderEliminar
  4. Sem sombra de dívida que o post é mesmo uma ficção, embora capaz de atingir plenamente o resultado pretendido pelo autor. De facto, a capacidade máxima que, actualmente, Portugal tem para projectar forças terrestres não ultrapassa o escalão brigada, o que corresponde a um número de efectivos que oscilará entre os 3 e 4 mil.
    LS

    ResponderEliminar
  5. Trata-se mesmo de ficção.

    O que se passa com os efectivos, acontece também com o material: não há esquadrilha de F-16 modernizados (nem sequer desencaixotados...), nem nova arma individual, nem Grupo de Aviação Ligeira...

    Se fosse mesmo a sério as Forças Armadas portuguesas iriam esmerar-se naquilo em que são genetica e historicamente muito fortes, embora não haja nem doutrina nem nenhum manual sobre o tema: capacidade de improvisação!

    ResponderEliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.