07 setembro 2020

«QUOUSQUE TANDEM ABUTERE PATIENTIA NOSTRA?»

7 de Setembro de 1990. Por esta época, à beira do desaparecimento (que ocorrerá no final daquele ano), o Diário de Lisboa já deixara de ser o jornal comunista hard-liner que o notabilizara nos anos que se seguiram ao 25 de Abril. Mas, mesmo assim, a transfiguração não fora assim tão grande para que não se lesse com alguma surpresa uma notícia assaz benigna sobre as deambulações do secretário de Estado da Cultura de Cavaco Silva, Pedro Santana Lopes, por terras de Itália. Assaz benigna e assaz superficial, como característico do visado, a notícia dava conta do conteúdo de um discurso seu em que defendia «a melhor articulação dos programas europeus Média-92, «Eureka-Audiovisual» e «Eurimages», e o seu alargamento a terceiros países com afinidades linguísticas». Nada a contradizer, mas dá para contrapor que, por mês e por essa Europa fora, haveria de haver para aí e em média uma meia dúzia de discursos proferidos por governantes portugueses (do mesmo governo de Cavaco Silva) em que se diziam aquele mesmo género de truismos pan-europeus e defendiam outras irrelevâncias parecidas. Nunca se soube como Santana Lopes conseguia promover-se assim, onde os outros nunca o conseguiram, embora a essência do próprio Santana Lopes apareça expressa num outro parágrafo da notícia, não o do discurso, evidentemente: Na cerimónia de gala estiveram figuras de destaque da vida mundana de Itália e estrelas internacionais de cinema como Omar Shariff, Stefana Sandrelli e Elsa Martinelli. (...) Nisso é que Pedro Santana Lopes era imbatível! Mas o verdadeiro valor desta evocação de há trinta anos só adquire todo o seu significado quando a contrapomos a esta outra notícia abaixo do semanário O Diabo deste fim de semana transacto. Passaram-se entretanto trinta anos e o jornal está conotado com a outra extremidade do espectro político em relação ao Diário de Lisboa, mas o formato como é noticiada a passagem de Pedro Santana Lopes pelo partido (Aliança) que entretanto formou à sua volta, revela-se, afinal, tão surpreendente, pela mesma indulgência, como a sua passagem por Veneza o fora. E isso num jornal em que, pela sua própria matriz ideológica, se costuma ser implacável para traições, defecções e outros gestos demonstrativos de falta de honra e pundonor. Pois bem aqui abaixo, conforme retirei da página 3 daquele semanário onde já li tanta gente ser crucificada por bem menos, Pedro Santana Lopes aparece absolvido de ainda ter enrolado um bom punhado de tansos: «O dr. Santana Lopes não vai recandidatar-se à presidência da Direcção Política Nacional (...) Tem disponibilidade para continuar no partido, mas ainda não está definido qualquer lugar ou posição». Há trinta anos, os comunas maravilhavam-se com o glamour dos smokings; agora, são os fachos que, depois de abandonar um partido que se propusera unir para fundar outro que agora abandona, não lhe encontram qualquer falta de carácter. Quousque tandem? - perguntaria Cícero.

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