Que a marinha portuguesa tem pergaminhos tão sólidos quanto antigos, desde a chegada de Vasco da Gama a Calicute em 1498, isso creio que é indiscutível. Porém, no que diz respeito à composição da nossa marinha mercante, muito longe vão os tempos do famoso Despacho 100, de Agosto de 1945, em que era o próprio Estado a definir a programação de toda a construção naval de grande porte para o decénio seguinte - previam-se 70 navios novos num total de 376.000 toneladas. O Despacho em questão, hoje tornado um marco da nossa política naval no século XX, tornou-se também famoso por ter sido a primeira ocasião em que o ministro da Marinha de então (o almirante Américo Tomás), deu expressão a uma vocação muito sua para um estilo de prosa e oratória que ainda hoje é famoso: numa certa passagem do preâmbulo lê-se que a «...promulgação do despacho número Cem da Marinha Mercante Portuguesa, a que foi dado esse número, não por acaso, mas porque ele vem na sequência de outros noventa e nove anteriormente promulgados...».
É uma época que deixará saudades nos marinheiros, mas reconheça-se que, em contraste com o que acontecia há 75 anos, a construção, preservação e manutenção de uma frota mercante deixou de ser uma prioridade estratégica nacional. Com a globalização, ele há navios a operar quase em exclusivo para o nosso mercado ostentando bandeiras de conveniência, e, em contraste, há navios que exibem o nosso pavilhão e que raramente terão sulcado águas portuguesas. Esse será precisamente o caso deste RCGS Resolute da fotografia acima, fotografia essa que já foi recolhida depois dos acontecimentos que entretanto o celebrizaram, uma proeza que, apesar de cometida à sombra da nossa bandeira das quinas, permanece desconhecida por cá. O RCGS Resolute é um pequeno navio para cruzeiros construído em 1991 num estaleiro da Finlândia (este pormenor tornar-se-á importante mais adiante). Tem 125 metros de comprimento por 18 de largura, desloca 5.900 toneladas, uma tripulação de 125 e capacidade para acomodar até 184 passageiros. Ao longo dos 29 anos de serviço o navio já teve três nomes, e só passou a navegar com a bandeira portuguesa desde 2018. Nem sequer dá para o estimarmos e considerá-lo nosso, como um Obikwelu, é como se fosse um daqueles atletas naturalizados por conveniências do próprio.
O que não invalida, por muito espúrio que seja o seu lusitanismo, que contemos a sua história. Em 30 de Março passado, o navio de cruzeiro, com uma tripulação reduzida ao mínimo (32 membros), em viagem de Buenos Aires para Curaçao, derivava ao largo da Venezuela, mas, na sua versão, em águas internacionais, enquanto reparava uma das suas máquinas. Foi nessa altura contactado e interceptado pelo navio patrulha Naiguatá da marinha de guerra venezuelana (acima) que o mandou segui-lo até à sua base naval, sob o pretexto que estava a violar águas territoriais venezuelanas. Como reacção, o capitão do Resolute terá contactado o armador, que o mandou desobedecer. E foi a partir daí que tudo se desenrolou. Os venezuelanos assumiram uma posição de intimidação, há um video (abaixo) onde se vê um dos marinheiros a disparar uma rajada de AK-47 na direcção do navio que arvora o pavilhão português. Mas depois não há mais imagens disponibilizadas pela marinha venezuelana que mostrem os momentos e as condições precisas que conduziram ao abalroamento dos dois navios - apenas as suas consequências: aparecem imagens dos dois navios enlaçados, em que aparentemente o navio de guerra venezuelano está a realizar manobras para reverter essa situação.
A questão é que, por causa da nacionalidade do RCGS Resolute, o nosso Gabinete de Investigação de Acidentes Marítimos foi encarregue de esclarecer o que acontecera em paralelo com procedimento idêntico da parte venezuelana. E é esse relatório (aqui disponível) que torna pertinente o título irónico que escolhi para este poste: O ÚLTIMO FEITO HERÓICO DE UM NAVIO DA MARINHA PORTUGUESA. Segundo as conclusões do relatório foi o navio venezuelano que, de peito feito, se atravessou à frente do Resolute «colidindo com a amura de estibordo» deste. Azar dos venezuelanos o facto do navio com que se confrontavam ter sido construído na Finlândia, com especificações de uma proa particularmente reforçada, por causa das condições de navegação no Mar Báltico, que, com muita frequência, congela no inverno... O navio de guerra venezuelano afundou-se, com todo o seu arsenal, duas peças de artilharia, uma de 76 mm, outra de 35 mm, duas metralhadoras de 12,7 mm e... um casco mais frágil do que o do seu oponente. O episódio, não sendo propriamente um feito de armas da marinha mercante portuguesa (como aqui se ironiza), é, porém, um embaraçoso feito de armas para a marinha de guerra venezuelana, naquele que terá sido o primeiro embate decisivo naquelas águas em mais de 75 anos...
Caro António
ResponderEliminarA "batalha naval" nas Caraíbas que bem descreveste, só me fez lembrar a Batalha de Lissa de 1866, em que a frota austríaca derrotou a frota italiana (mais numerosa e com melhores navios), com manobras mais agressivas que incluíram o abalroamento de um dos principais navios italianos, que afundou-se em menos de três minutos, e que foi determinante para a vitória austríaca.
Esta acção do navio patrulha venezuelano é humilhante para a marinha venezuelana, e tenho bastante curiosidade em saber o que aconteceu ao “brilhante comandante Nelson” do navio patrulha.
Um abraço
Pedro Cabral
O assunto continua a correr lá pela Venezuela. A encenação que eles fizeram depois do incidente, acusando o Resolute de trazer a bordo um batalhão de mercenários, ao bom estilo de uma reedição da Baía dos Porcos, ainda tornou tudo mais caricato. Quanto ao Nelson venezuelano, ou ele está nas boas graças do Maduro, ou desconfio que a sua próxima colocação vai ter muito a ver com esfregonas e baldes de água.
ResponderEliminarQuanto à referência que fazes à batalha de Lissa... tive que a ir ver à wikipedia, que essa é uma das guerras sobre a qual eu não sei quase nada.