É reconfortante descobrir que a fotografia acima pôde desencadear as memórias e a disposição para uma maravilhosa história aparecida no Âncoras e Nefelibatas sobre um pai boa pessoa, que arranjou uma porção de problemas ao seu casamento para desaparecer por um par de dias em Agosto de 1974 para uma caçada no Alentejo. A história começara semanas antes, quando de outra caçada, essa legítima, que fora interrompida pelo aparecimento de dois pides evadidos de Alcoentre, surpreendidos a comer abóboras ainda verdes com os meios que a natureza lhes dera. Esta outra caçada destinava-se a fazer os foragidos atravessarem clandestinamente a fronteira para Espanha numa inversão assaz irónica do enredo de Cinco Dias, Cinco Noites de Álvaro Cunhal.
Se os temos lá matado não se perdia nada que eles eram uns malandros que desgraçaram prá’í a vida a tanta gente.
E a mim não ma desgraçaram porque não calhou, que ainda pensaram em judiar comigo.
É pá, mas porra!
Os homes a comerem abóboras às mãos juntas que é coisa que a gente dá aos porcos!
Tal era a fome, pois que fartura nã traziam eles nenhuma…, todos rasgados dos matos e das silvas dos rios…
Tivemos dó deles.
Sem me parecer aspirar a quaisquer pretensões literárias, mas porque se lhe reconhece aquele travo de autenticidade e se vai sempre a tempo de não deixar apagar a memória, aprecie-se o contraste entre a severidade compadecida da atitude e do depoimento acima e a ternura distraída invocada pela poesia abaixo de José Carlos Ary dos Santos nas quadras que são por ele declamadas previamente à interpretação de Fernando Tordo do Fado de Alcoentre, fado esse que tem por tema precisamente a fuga dos 89 pides, o lote de onde faziam parte os dois comedores de abóboras.
Mas enquanto homens lutavam com uma entrega total
Outros homens conspiravam contra o novo Portugal
Essas hienas que apertavam o garrote da tortura
Enquanto a Democracia se distraía em ternura
Esses homens que hoje saem da prisão em liberdade
Cães que rosnam, cães que traem, e passeiam na cidade
Que se passa? Então isto não é uma ameaça?
Ali andou mãozinha de reaça. Deixaram fugir mais oitenta e nove…
Que se passa? Então isto não é uma ameaça?
Ali andou mãozinha de reaça. Deixaram fugir mais oitenta e nove…
Os pides desceram pela corda alegremente. Os guardas andavam passeando em Alcoentre.
E a esquerda levou com mais um corno pela frente. Esta maldade não se faz à gente.
Que merda!
Que se passa? Então isto não é uma ameaça?
Ali andou mãozinha de reaça. Deixaram fugir mais oitenta e nove…
Que se passa? Então isto não é uma ameaça?
Ali andou mãozinha de reaça. Deixaram fugir mais oitenta e nove…
As grades foram todas serradas a preceito. A fuga aproveitou-se do que era imperfeito.
E a esquerda, por causa da vergonha deste feito, pode apanhar uma bala no peito…
Que merda!
Que se passa? Então isto não é uma ameaça?
Ali andou mãozinha de reaça. Deixaram fugir mais oitenta e nove…
Que se passa? Então isto não é uma ameaça?
Ali andou mãozinha de reaça. Deixaram fugir mais oitenta e nove…
Quem foram os que de fora das grades ajudaram? Quem foram os que dentro das grades os armaram?
A esquerda não esquece tubarões que a torturaram. Não pode perdoar se a enganaram.
Que merda!
Que se passa? Então isto não é uma ameaça?
Ali andou mãozinha de reaça. Deixaram fugir mais oitenta e nove…
Que se passa? Então isto não é uma ameaça?
Ali andou mãozinha de reaça. Deixaram fugir mais oitenta e nove…
Agora, a vigilância é tudo o que nos resta. Pr’ós pides, a vida na prisão… era uma festa.
E a esquerda tem mais do que razão quando protesta, pois pode apanhar um tiro na testa…
Que merda!
Que se passa? Então isto não é uma ameaça?
Ali andou mãozinha de reaça. Deixaram fugir mais oitenta e nove…
Que se passa? Então isto não é uma ameaça?
Ali andou mãozinha de reaça. Deixaram fugir mais oitenta e nove…
Refira-se, para rematar, que teorias da conspiração sobre aquela fuga há para todos os gostos: veja-se esta que até dispensa fascistas.
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