10 março 2006

QUANDO OS NETOS SE COMEÇAM A FARTAR DO AVÔ

Queixa-se Mário Soares na sua biografia da descortesia e da desconsideração de Álvaro Cunhal quando, na cerimónia de um dos funerais de estado, de Brejnev ou Andropov, em Moscovo, Cunhal, sentindo-se a jogar em casa, passou por ele sem lhe passar cartão.

É com essa queixa em mente que convém analisar a atitude de ontem de Soares, quando se escapou à cerimónia de apresentação de cumprimentos ao presidente recém-empossado.

No limite, até se poderia compreender a atitude de Soares, se ele estivesse ali apenas no papel do veterano reformado da república, a assistir à tomada de posse de um sucessor seu de que notoriamente não gosta, cumprindo os serviços mínimos. Não seria do mais politicamente correcto, mas Soares tem um estatuto que lhe permite mandar os vigilantes activos do politicamente correcto a um certo sítio.

A grande diferença está no facto de Soares ter estado a assistir à cerimónia de tomada de posse de um seu adversário político que o derrotou fragorosamente num acto eleitoral. E aí, qualquer tolerância para o acto de Soares esvai-se num ápice. A disputa política em Portugal tem uma certa gramática e certos protocolos a que ninguém, nem mesmo Soares, se pode furtar.

Penso poder interpretar que a atitude de Cunhal em Moscovo se poderá dever ao facto de ele não ter nenhum apreço pessoal por Soares e que ali o podia demonstrar, longe do palco da cena política portuguesa. No entanto, passados uns anos, lá estava Cunhal a instruir os militantes comunistas a votar Soares…

E pensará Soares que esta coisa de engolir sapos estará só reservada aos outros?