05 novembro 2018

HUMOR AO ESTILO DE JACQUES TATI

A crónica acima, publicada há poucos dias na página da Associação Capazes, é para ser lida da mesma forma como se vê um filme de Jacques Tati. É divertida, faz rir, mas não tem punch-lines e não está acompanhada de um auxiliar (costuma ser o riso enlatado) que nos indique onde estão as passagens mais cómicas. Contém «histórias que acontecem a toda a hora nas nossas casas e nas nossas escolas, onde nós, adultos – bem intencionados – desrespeitamos os limites pessoais e os “nãos” das nossas crianças». A mais caricata é a do «Rodrigo» que tem a fralda cagada mas que está confortável na merda e que, qual bácoro na pocilga, resiste aos esforços da «auxiliar da creche» para lhe limpar o cu. Previsivelmente, é a história favorita da caixa de comentários, muitos deles coprologicamente cómicos também. Mas as histórias da Madalena que não quer dar um beijinho ou a da Catarina que não quer vestir o casaco também são boas. Porém, a tese de fundo é que as crianças desde as mais tenras idades têm opiniões e vontades, às quais se deve atribuir valor em qualquer circunstância... A diferença substancial das histórias e da tese da crónica para os gags sucessivos de um filme de Tati é que este sabia que estava a encenar um mundo delirante (de tecnologia em Playtime ou do tráfico automóvel em Trafic), enquanto que a autora Mikaela Övén acima parece genuinamente convencida que o mundo delirante onde as crianças pensam como pessoas razoáveis e responsáveis existe mesmo.

7 comentários:

  1. O sujeito atomizado, sem substância social e moral, sujeito de direitos que o protegem de toda a alteridade, vista sob o signo da ameaça, do assédio, da contaminação, da violência, é uma bela criação do actual estádio do capitalismo. Um conceito abstracto de "eu" e um conceito abstracto de sociedade (espaço regulado segundo o princípio de limitação mútua, em que a sacrossanta autonomia - cuja origem parece residir apenas em si mesma - não pode ser beliscada) servem muito bem uma sociedade do conformismo e, cada vez mais, neofascista. Que fará o sujeito que viu respeitado o seu direito de não cumprimentar com beijos a avó quando, na idade adulta, o patrão o obrigar a lamber-lhe o cu sob pena de o despedir?

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  2. Tenho mais do que uma respeitável discordância com o comentário supra, anónimo. Em primeiro lugar porque os disparates proferidos pela cronista não são uma «criação do actual estádio do capitalismo». O capitalismo não foi para aqui chamado, a não ser por quem gosta de invocar aqueles argumentos compactos e põe nomes que considera antipáticos (neofascista também é bom...) a tudo o que discorda. Em segundo lugar, e sobretudo, porque a disfuncionalidade do indivíduo criado segundo estas "regras" se irá notar não apenas nas consequência para si, mas sobretudo para os que o rodeiam, muito antes de se tornar adulto e de chegar, como refere o exemplo acima, ao mundo laboral.

    Mas, para responder de forma concreta à "pergunta" do comentário: à terceira vez, e depois de ser despedido duas vezes, o sujeito aprende à sua própria custa a lamber o cu ao patrão. É o que acontece sob o capitalismo... e sob o socialismo. Mas isso é o menos e o menos importante, isto é um daqueles casos de rede social em que, quando se aponta um exemplo disparatado, há alguém que o vem implicitamente justificar, escrevendo outro de uma "razoabilidade" simétrica.

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  3. Para que fossemos caoazes de entender a cronica (e alguns comentários a mesma) seria porventura necessário recorrer a uma tradução cultural que, pese embora a continuada disseminação de epistemologias do sul, o comum mortal do norte insiste em não utilizar, quiçá porque não lhe vislumbra utilidade nenhuma.

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  4. Não tinha visto o problema de uma perspectiva Norte-Sul, mas não sei se terá escapado ao meu prezado interlocutor A Costa que a autora da crónica se chama Mikaela Övén, ou seja, que a "tradução cultural" por ela expressa é coisa do Norte, e bem do Norte...

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    1. Touché! Com efeito, podemos ver a ascendência da Mikaela como uma contradição... Mas é também possível (mera suposição) que a frequência de cursos onde predominam teorias de Quintela a tenham influenciado.

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  5. Há quem prefira - eu sou um deles - substituir a expressão "tradução cultural" por "bullshitismo", uma outra expressão do Norte, Norte mesmo Norte, setentrional em relação à Galiza...

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    1. "Touché" novamente. Mas sim, julgo estarmos de acordo que a expressão "bullshitismo" pode perfeitamente substituir a daquele tipo de traduções...

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