09 junho 2018

AS BLASFÉMIAS DE ANTÓNIO FILIPE ou O PASSADO DO MARXISMO-LENINISMO FOI UMA DOUTRINA MUITO DIFERENTE DA QUE HOJE ELE PREGA

Bernardino Soares é o desgraçado de quem as redes sociais - e eu também - sempre se riem por causa das suas famosas hesitações quanto à natureza democrática do regime norte-coreano, mas qualquer entrevista de um intelectual comunista (no caso foi António Filipe) reveste-se sempre de passagens de bom humor montypythoniano - i.e. de grande sofisticação intelectual, cuja compreensão só está ao alcance de alguns. A entrevista torna-se mais interessante porque o entrevistador tem a chancela do Observador, um projecto político travestido de jornal, que é reputado por usar precisamente os mesmos métodos de distorção da verdade e de reescrita da história dos comunistas.
Mais do que a história da Coreia do Norte, o que se percebe pela leitura da entrevista é a História do próprio marxismo-leninismo que acaba levando alguns valentes sacolejões à conta da inspiração de António Filipe para o comunismo do século XXI. O internacionalismo proletário, a fidelidade a um centro coordenador, tornou-se uma coisa demodée. A construção do socialismo passou a poder ser feita à discrição do partido comunista local, bem longe vão os tempos de Stalin e a sua ruptura com Tito (acima) e a consequente expulsão dos comunistas jugoslavos do Cominform, por estes terem pretendido preservar a autonomia do seu partido em relação às directivas vindas de Moscovo.
Trinta anos passados, já o PCP se legalizara e António Filipe se tornara num adolescente, e essa mesma questão de adaptação dos modelos de socialismo em função da realidade local estava ainda em cima da mesa, agora com a controvérsia do Eurocomunismo, que na notícia abaixo de há 41 anos é "vivamente atacado" (na pessoa de Santiago Carrillo, secretário geral do PCE) pela agência noticiosa da União Soviética. A mesma União Soviética que, por cá e como se descobre agora por mais este sacolejão histórico de António Filipe, o PCP afinal nunca quis "decalcar como modelo". Haja quem se lembre, a propósito do tema, do alinhamento de Álvaro Cunhal e das suas fidelidades.
Finalmente, registe-se esta habilidade de António Filipe ao emparelhar distraidamente cultos de personalidade, como se o do imperador do Japão ou o da família real britânica desculpasse o culto de personalidade dos Kim da Coreia do Norte. Não tem nada a ver uma coisa com outra: é que as duas monarquias não são marxistas-leninistas, nem têm a pretensão de defender a igualdade dos homens. São coerentes. O marxismo-leninismo é que manteve sempre uma relação incomodada com o culto da personalidade, condenado pelo XX Congresso do PCUS em 1956, mas sobranceiramente descartado por cá por Álvaro Cunhal, que sempre gostou de paparicos.

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