25 julho 2009

UMA HISTÓRIA DENTRO DE UMA GRANDE HISTÓRIA COM VÁRIAS PEQUENAS HISTÓRIAS LÁ DENTRO

Ainda a propósito da enorme epopeia que foi a vitória dos soviéticos contra os alemães na Frente Leste durante a Segunda Guerra Mundial, ocorreu-me a oportunidade de aqui contar, naturalmente de uma forma muito reduzida, a história do Cerco de Leninegrado, um cerco a que os alemães submeteram deliberadamente a cidade durante quase 900 dias (mapa abaixo), com a intenção confessa de a vergar pela fome, nunca de a capturar. A História do Cerco de Leninegrado é uma história que, para efeitos de propaganda, teria um conteúdo tão ou ainda mais épico quanto a muito mais conhecida história da Batalha de Stalinegrado, tanto mais que incluiria todos aqueles pequenos episódios de heroísmo do cidadão comum(*), ao contrário do puro embate militar que ocorreu em Stalinegrado, cidade de onde a população civil fora previamente evacuada. Mas, por se tratar de Leninegrado, a grande rival de Moscovo, há muitas partes da história do seu cerco que precisaram de ser retocadas. Leninegrado, então chamada Petrogrado, é que fora o local da Revolução de Outubro de 1917 que levara os bolcheviques ao poder. Mas estes decidiram transferir a capital da União para Moscovo em 1918 e começaram a partir daí a pagar o preço dessa decisão com a antipatia dos seus cidadãos.
A partir da década de 1920, a mais cosmopolita, desenvolvida, sofisticada e rebaptizada Leninegrado (1924) assumiu-se como uma espécie de sede da oposição ao poder central (tanto quanto se pode ser oposição com tanta democracia e liberdade…). A cidade era a base de poder de Grigori Zinoviev (1883-1936, acima), um dos rivais de Staline para a sucessão de Lenine. Zinoviev veio a ser substituído por Sergei Kirov (1886-1934, abaixo).
Kirov foi assassinado em circunstâncias misteriosas em 1934, sendo o acontecimento o detonador das célebres purgas que devastaram o aparelho do Partido Comunista durante os cinco anos seguintes. Alega-se que Staline estaria implicado no assassinato de Kirov em quem ele veria um potencial rival(**). O seu sucessor a dirigir Leninegrado, Andrei Zhdanov (1896-1948, abaixo), pertencia já à nova geração bolchevique, fiel à Staline.
Se o lugar de Zhdanov nunca pareceu invejável, tornou-se ainda menos em Setembro de 1941, quando a cidade se viu cercada pelos exércitos alemães (abaixo), dispostos a levar os seu habitantes à inanição. Como estava a acontecer por toda a União Soviética a falta de preparação das autoridades para as contingências da Guerra revelou-se: as reservas alimentares da cidade, concentradas todas num só local, foram o primeiro alvo da aviação alemã
Mas, apesar de cercada, Leninegrado não estava isolada do resto da União Soviética e podia ser reabastecida através de um complicado e acidentado circuito logístico que atravessava o Lago Ladoga, cujas costas ainda eram parcialmente controladas pelos soviéticos (mapa abaixo). Embora as prioridades logísticas fossem naturalmente as militares, o grande problema da cidade desde o princípio foi o abastecimento alimentar.
No primeiro Inverno do cerco, o de 1941-42, o racionamento para cada habitante não qualificado de Leninegrado – dependentes e trabalhadores não fabris – chegou a baixar para os 125 gramas de pão diários. Enquanto isso, o circuito logístico pelo Lago Ladoga (que entretanto gelara) passou a ser feito em camiões (abaixo). Mesmo assim, tomando em atenção as prioridades militares, o volume de tráfego continuava a ser insuficiente...
Na cidade cercada, tanto a morte como os mortos, a maioria dos quais devido à inanição, tornaram-se uma fatalidade e uma banalidade (abaixo). Com aquele seu particular gosto pelas estatísticas as autoridades soviéticas registaram 96.694 mortes no mês de Janeiro e 96.072 no de Fevereiro de 1942. Mas, com a sociedade abeirando-se de um colapso, certamente que nem todos os óbitos eram devidamente reportados.
Algo que afectou perniciosamente a moral dos cidadãos foi a percepção de haver um tratamento injustamente preferencial dado aos quadros do Partido ou da Administração ou aos membros dos serviços de segurança (KGB), àquilo que várias décadas mais tarde veio a ser designado pelo nome colectivo de Nomenklatura… Mas refira-se que esta censura popular nunca incidiu sobre os militares, mais bem abastecidos que a população.
O cerco veio a ser levantado a 27 de Janeiro de 1944 tendo durado precisamente 872 dias. Contudo, a situação alimentar da cidade, mercê de um aperfeiçoamento contínuo dos circuitos logísticos e da produção própria de alimentos nunca mais voltou a ser tão desesperada como no primeiro Inverno. Mas dentro desta história com um final, apesar de tudo, feliz, vale a pena contar ainda outra, menor, que começa em Dezembro de 1941.
Em 24 de Dezembro foram descobertos vários panfletos contestatários escritos à mão numa das estações ferroviárias de Leninegrado. Quem os escrevera intitulava-se O Rebelde: Cidadãos abaixo um regime que nos deixa a morrer à fome. Estamos a ser roubados por canalhas que nos enganam, que guardam a comida e nos deixam passar fome. Devemos agir. Exijamos mais pão às autoridades distritais. Abaixo estes líderes!
No seguimento do incidente o KGB colocou a estação sob vigilância e começou a patrulhar os arredores. Entretanto, a escrita de 18.000 ferroviários foi comparada com a dos panfletos. Não se encontrou nada. Dali a nove meses uma carta anónima endereçada a Zhdanov queixando-se da distribuição de comida foi interceptada. A letra era a do Rebelde. Da identificação das especificidades do envelope resultou que mais 1.023 autores de cartas e suas famílias fossem interrogadas pelo KGB. Não encontraram o Rebelde.
O Rebelde continuou mandando cartas e o KGB investigando pistas que podiam levar a ele: foi a escrita de 13.000 habitantes de dois distritos da cidade, foram 27.860 registos militares, foi a escrita de 5.732 empregados de algumas fábricas seleccionadas, até que, em 12 de Dezembro de 1943, a mês e meio do fim do cerco, chegaram a um operário metalúrgico de 50 anos chamado Sergei Luzhkov que, confrontado, confessou ser o Rebelde. Agira sozinho.
Como escreveria o António Vilarigues: Pensem nisto. Constate-se a dimensão dos recursos que, numa cidade sitiada e esfomeada, foram dedicados à investigação das actividades de alguém cuja actividade sediciosa não passava de escrever panfletos contestatários e mandar cartas insolentes aos responsáveis políticos. Não concebo explicações entre o filosófico e o rebuscado nem jogos de semântica para que aquilo se assemelhe sequer a democracia ou a liberdade...
(*) Que os britânicos usaram com os bombardeamentos (a blitz) das suas cidades, por exemplo. (**) Nunca se encontraram provas que suportassem essa alegação. No entanto, existem-nas a comprovar o incómodo que a popularidade de Kirov causava em Staline.

6 comentários:

  1. A censura foi sempre um grande aliado das ditaduras - tanto na nossa como na soviética.
    Quanto à fundação de "Leninegrado", quando Pedro grande a fundou foi a capital marítima, liberal, mercantil, expansionista, face à obscura e continental Moscovo.
    É natural que as coisas não mudassem assim tanto.
    Por momentos ainda pensei que São Petersburgo (até por ser mais pequena) voltasse a ser capital da Rússia.

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  2. Francamente são estas pequenas/grandes histórias da História que eu gosto de aqui vir ler. Está espectacular.
    E, francamente, concordo contigo, não há jogos de semântica, que consigam disfarçar o que aquilo era de facto. Uma ditadura cruel.

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  3. Eu já suspeitava que irias gostar destas pequenas histórias intimas dentro dos grandes acontecimentos, Donagata.

    Achas que vale a pena continuar a contar a hístória de Zhdanov e dos seus acólitos?

    É que vai acabar mal. Aliás, as histórias no tempo de Estaline tendiam a acabar sempre mal...

    Como cantava o Sérgio Godinho: "Uns acabaram de maca e outros ainda mais deitados, o coveiro que o diga..."

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  4. Excelente post, mais uma vez, e sim, eu gostaria de saber o resto da história de "Zhdanov e dos seus acólitos".

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  5. E claro, tal como a Sofia não só acho que vale a pena contares a história de Zhdanov e dos seus acólitos, como ficaria muito defraudada se o não fizesses.
    E tu não me queres ver defraudada, pois não?
    Se acabaram ainda mais deitados é porque estavam todos sobre um campo minado.Com "minas" que eles criteriosamente colocavam. Azar o deles!

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  6. Já estás menos defraudada, Donagata?

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