13 fevereiro 2007

OS LATINOS DOS BALCÃS

É lógico que os livros de história nos contem o que se sabe sobre determinado assunto. E, quando não se sabe ao certo, contam-nos as deduções e especulações que se podem fazer sobre o mesmo. São raros, impopulares e desinteressantes os livros em que o autor se concentra, qual amigo da onça, em destacar a ignorância que grassa sobre um tema. Mas às vezes, torna-se oportuno, como quando se fala do povoamento dos Balcãs.

Actualmente, quase toda a península balcânica é habitada por povos que empregam idiomas eslavos. Num passado longínquo, há 2.000 anos, quando os romanos ali estabeleceram a sua soberania isso não acontecia: as descrições feitas pelos romanos dos povos da região não contém elementos que nos façam reconhecer neles antepassados dos eslavos, enquanto, por exemplo e pelo mesmo critério, não há dúvidas em classificar aqueles que encontraram a habitar a Alemanha como antepassados dos germânicos.

A fronteira norte dos Balcãs sob domínio romano seguiu, durante algum tempo, o curso do rio Danúbio. Depois, no começo do Século II da nossa era, no reinado de Trajano (98-117), o Império Romano tem um último assomo expansionista e a Dácia – a região da actual Roménia - foi conquistada e tornou-se província romana. Uma província romana sui generis, porque não lhe conhecemos os contornos geográficos precisos, embora consigamos reconstituir as estradas que a atrvessavam (abaixo).

Não tendo os historiadores possibilidade de descrever com detalhe o que na época aconteceu, sabemos todavia quais as implicações do que aconteceu: naquela região existe hoje um país onde a população emprega um dos cinco idiomas neo-latino mais falados na Europa, o romeno. E, ao contrário dos outros quatro mais (castelhano, português, francês e italiano) que predominam na Europa Ocidental em regiões adjacentes, este encontra-se numa região conquistada tardiamente e geograficamente isolado por largas centenas de quilómetros de todos os outros.

Existem várias teorias para explicar o fenómeno. A que prefiro, justifica-o primeiro pela necessidade do repovoamento do território depois da conquista, o que foi feito, sob direcção romana, mas por populações compósitas de origens diversas de regiões de dentro ou fora do Império, o que as levou à adopção de um idioma de referência para comunicação – naturalmente o latim, da potência administrante – que evolui para uma forma simplificada de comunicação: um crioulo.

A ser assim, teria sido um fenómeno a que já assistimos repetido nos tempos modernos, em territórios povoados maioritariamente por escravos, como foram os casos de Cabo Verde (português), do Haiti (francês) ou da Jamaica (inglês). Só que, em vez de ilhas isoladas, o fenómeno desenvolveu-se numa região que é um dos corredores de invasão por excelência da Europa para os povos vindos das estepes asiáticas. Muitos povos vieram por ali a passar, mas a população que lá ficou guardou sempre o mesmo idioma matricial.

Entre 250 e 270 d.C., cerca de um século e meio se havia passado sobre a conquista da Dácia, a região balcânica era submetida à pressão de populações designadas por godas (segundo a descrição, de origem germânica) que, derrotando os exército romanos em 251, na Batalha de Abrittus, a mantiveram, até serem derrotadas definitivamente em 268, na Batalha de Naissus. Perante as circunstâncias, o dispositivo de defesa romano deixou de incluir a Dácia (275), o que se considera o fim do período de domínio romano.

Supõe-se que, na época e nos séculos seguintes, alguma parte das populações que viviam a norte do Danúbio se mudaram para regiões meridionais sob controlo romano, trazendo consigo o seu idioma porque toda a península balcânica permaneceu uma região turbulenta nesse período. De entre essas famílias latinas de origem balcânica vale a pena destacar romanos de nomeada como foram os casos - para nomear apenas três - do Imperador Constantino (século IV), de Aécio, o General de quem este blogue reclama a herança (Século V) e do Imperador Justiniano (Século VI).

Mas a pressão demográfica junto das fronteiras deve ter continuado a fazer-se sentir – há diversas teorias para as suas causas - pois passados quase precisamente cem anos depois da retirada da Dácia, nas chamadas Segundas Guerras Góticas (entre 377 e 382), os godos (de novo) obtiveram uma significativa e simbólica vitória na Batalha de Adrianopla (378), que colocou pela primeira vez o poder romano em sérias dificuldades estratégicas.

Ultrapassadas essas dificuldades, o poder romano nunca mais se voltou a exercer no interior como outrora. Há quem considere que na Europa romana se fazia sentir uma forte regressão demográfica – o que acentuava as dificuldades de lidar com a pressão das hordas de invasores – e que esse fenómeno era ainda ampliado nas regiões balcânicas pela instabilidade suplementar que a região havia sofrido com as invasões dos godos – a que se seguiriam muitas outras invasões.

Como acontece com muitas outras regiões do Império (a Grã-Bretanha, por exemplo), as regiões interiores dos Balcãs entram, a partir dos finais do Século IV, numa era em que praticamente desaparecem dos registos históricos. Apenas se pode especular, quando, onde e o que terá estado por detrás da vitalidade expansionista dos povos eslavos que, omissos dos registos da história até então, vieram a ocupar mais de metade da Europa nos cerca de 500 anos seguintes.

A expansão dos eslavos é um daqueles episódios da História sobre o qual, mesmo podendo ele ter sido aproveitado como uma epopeia para propósitos ideológicos (na Rússia adorariam), não há praticamente nenhuns documentos históricos. Contudo, num mapa, os resultados daquela expansão estão à vista: Rússia, Ucrânia, Bielorrússia, Polónia, República Checa, Eslováquia, Bulgária, Macedónia, Sérvia, Montenegro, Bósnia Herzegovina, Croácia e Eslovénia.

Muito do que se sabe foi deduzido a partir do estudo dos tipos sanguíneos*. O poblema é que, não se sabendo quase nada sobre os eslavos, tão pouco se sabe quais teriam sido as condições especiais terão permitido que outros grupos culturais não eslavos, como os magiares na Hungria e os romenos na Roménia, lhes tenham conseguido resistir ao ímpeto expansionista e terem hoje estados nacionais.

O mapa de cima - que considero generoso demais quanto à difusão do romeno pela Ucrânia... - informa-nos que hoje há quem use idiomas derivados do latim nos Balcãs tanto a Norte como a Sul do Danúbio. Segundo os linguistas eles evoluíram de forma diferenciada há tempo suficiente para que as versões do Norte e do Sul já não sejam inteligíveis entre si (um locutor de uma das línguas seja percebido por quem conheça a outra). Como se vê também pelo mapa, os linguistas desdobram os idiomas do Sul em três versões distintas: Aromaniano (a verde), Megleno-Romeno (a amarelo) e Istro-Romeno (a vermelho).

Este último idioma, falado na Croácia junto à fronteira italiana e resultante provável da reinstalação de gentes da Dácia em terras imperiais, não deve ser confundido com o Dalmácio, um outro idioma neo-latino que foi utilizado coloquialmente pelas cidades mercantis das costas orientais do Adriático (na Croácia actual) durante a Idade Média, mas que está hoje extinto (extinguiu-se no Século XIX), provavelmente absorvido pelo italiano, no esforço que os seus linguistas desenvolveram nessa época - a unidade italiana data de 1861 - para criar uma norma onde coubessem todos os dialectos italianos.

* Curiosamente, os romenos compartilham com os seus vizinhos muitas das caracterísiticas sanguíneas que se crê identificarem os povos eslavos...

3 comentários:

  1. Ótima explanação! é um assunto complexo, muitas questões ainda em aberto mas o autor conseguiu "destrinchar" com muita maestria e simplicidade. Parabéns!

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  2. Bom texto, felicito-o pela bela explanação. Ajudou a entender um pouco daqueles povos.

    gladsonpendragon.blogspot.com

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