06 janeiro 2007

STANISLAW WIELGUS E UM DILEMA TÃO VELHO QUANTO A IGREJA

Nos princípios do Século IV da nossa era, quase 100 anos antes do nascimento de Aécio, reinando sobre o império Constantino-o-Grande (272-337), pôs-se o problema do tratamento a dar aos cristãos que haviam abjurado da sua fé durante as grandes perseguições que haviam sido desencadeadas por Diocleciano e Galério, antecessores de Constantino no trono.

As grandes perseguições são capazes de ter incidido na coacção física dos seguidores do cristianismo, conforme narram os relatos (cuja preservação esteve, recorde-se, durante o meio milénio seguinte, nas mãos de cristãos militantes: os monges…) mas, deduzindo da eterna natureza humana, também terão incidido na arte de persuadir as elites para a inconveniência da manutenção de tais práticas (cristãs).

Restaurada por Constantino a aceitabilidade da prática do cristianismo, e mesmo até a sua conveniência, pôs-se o problema da forma como tratar aqueles que haviam traído a sua fé. No Norte de África triunfou uma corrente de pensamento mais rigorosa, conhecida por Donatismo (a partir do nome do seu fundador, Donato, o Bispo de Cartago), que se mostrava completamente implacável para aqueles que designava por traditores.

Os traidores eram membros do clero que se haviam conformado com as exigências das autoridades, denunciado companheiros de fé ou entregue textos sagrados para destruição. Na sua opinião, não haveria penitência que os redimisse, nem os sacramentos conferidos por aqueles que assim se tivessem comportado e tivessem voltado à prática religiosa seriam válidos. A disputa prolongou-se por mais de 200 anos e o Donatismo tornou-se no embrião de uma Igreja norte-africana que depois não se desenvolveu.

Mas o dilema que esteve na sua génese parece reaparecer agora decalcado na controvérsia associada à nomeação de Monsenhor Stanislaw Wielgus como novo Arcebispo de Varsóvia, que entretanto foi denunciado na comunicação social polaca como antigo informador da polícia política no tempo do regime comunista. E os desmentidos, a princípio indignados mas pouco substantivos, pareceram começar, gradualmente, a perder força, até à admissão dos factos pelo próprio.

Não me interessando particularmente pelos assuntos internos da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR), equiparo o meu interesse neste episódio, àquele com que acompanhei as revelações que Kurt Waldheim, mesmo sendo austríaco, havia sido um empenhado oficial da Wehrmacht e um membro de organizações nazis e como ele havia forjado quase toda a sua biografia para o período decorrido entre 1942 e 1945.

Como aconteceu com Waldheim, que foi Secretário-Geral da ONU durante dez anos sem que nada se soubesse publicamente do seu passado pouco abonatório (o que é um dos maiores pontos de interrogação da história mundial recente... e não envolve ovnis!), também com Wielgus me desconforta a ideia que a divulgação desta sua faceta menos agradável da sua pessoa só agora aconteça (a serem verdadeiras as acusações, Wielgus foi aquilo a que se dá a designação popular - e o estatuto moral - de um bufo…), quando já há sete anos que ele se tornou Bispo de Plock.

Por muito prestigiados que sejam (e são-no) os cargos que foram ocupados por Kurt Waldheim ao longo da sua carreira (Secretário-Geral da ONU e Presidente da República da Áustria*), e embora os dois batam de longe, em notoriedade e prestígio, o futuro cargo de Monsenhor Wielgus, qualquer deles não tem a dimensão espiritual e moral que devem acompanhar o titular da maior arquidiocese daquele que é reconhecido como o maior país socialmente católico da Europa.

Houvesse o tal Espírito Santo que, conforme costumam dizer os membros da Igreja nestas ocasiões, iluminasse aqueles que são nomeados, e ainda seriam permitidas algumas expectativas quanto à decisão final de Stanislaw Wielgus sobre a aceitação do cargo. Ele lá saberá o que fez e porque o fez e porque não confessou publicamente - senão agora - que o tinha feito. É indiscutível que há episódios da história recente da Polónia (1945-89) que têm uma complexidade que ainda hoje nos escapa. Walesa e Jaruzelski, por exemplo, não são os personagens de filme de Western que a propaganda da época nos desenhou.

Não havendo Espírito Santo, ficam-nos os precedentes históricos como orientação do que poderá vir a acontecer: em 314, no Concílio de Arles, convocado por Constantino, o rigor dos donatistas (cujos bispos estavam em minoria) em relação aos membros do clero que haviam sido mais flexíveis acabou por ser condenado… Não é em todas, mas há coisas em que a Igreja Católica sempre soube ser pragmática!

* A Mário Soares só falta o primeiro daqueles cargos…

Adenda de 7 de Janeiro: Afinal, sempre haverá Espírito Santo (ou algo que funcione por ele...), porque, para minha surpresa, Monsenhor Wielgus acabou por renunciar à sua nomeação. Ainda bem. Na religião, como na política, é sempre salutar encontrar situações onde a prática acaba por coincidir com a doutrina - mesmo que coagida por agentes exteriores... Mas ficaram-me duas dúvidas:

Como se confrontaria na sua consciência, antes deste episódio, Monsenhor Wielgus com os factos que hoje o levaram ou o forçaram à sua demissão? Que efeitos políticos se pretendem para a Polónia actual com esta demissão, quando se fica a saber que as oportunas denúncias foram originárias de jornais próximos da Direita polaca, actualmente no poder?

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