14 agosto 2006

PROVA DE VIDA

Depois de ontem ter assistido a um documentário na televisão sobre Fidel Castro e Cuba, apercebi-me que a memória já me traía sobre certos aspectos como via na altura a disputa da guerra – fria entre o ocidente e o leste, e a imagem que tínhamos (quando pudemos passar a tê-la…) dos tais países ditos socialistas.

Diga-se que os tais países socialistas eram indubitavelmente diferentes. Segundo me recordo, havia um deles (talvez a Hungria) onde, por uns tempos, não havia televisão durante um dos dias da semana. A razão para tal já não recordo, mas asseguro que teria sido científica, o socialismo nestas suas decisões mais anacronicamente experimentais, escudava-se sempre atrás de uma ciência.

Mas a minha primeira impressão dos países de Leste (também envolvendo Cuba) é do verão de 74, quando toda a sociedade portuguesa estava ansiosa de se requalificar em socialismo e os jornais e revistas procuravam satisfazer essa ânsia publicando reportagem atrás de reportagem sobre esses sítios onde, ao lado dos países conhecidos (Alemanha, França), parecia que também se vivia tão bem.

Mas, dá para perceber a esta distância temporal, por muito que fosse a inexperiência e a ingenuidade políticas, quem quisesse ver a realidade por detrás das reportagens (sempre encomiásticas) e as lesse mais atentamente encontraria nelas algo que já lhe era familiar do Portugal de antes do 25 de Abril: as realidades encenadas para a fotografia e as manifestações organizadamente espontâneas.

Recordo particularmente uma legenda a uma fotografia saída na Vida Mundial, numa dessas tais reportagens, onde por debaixo de uma fotografia de miúdas gorduchas de 5 ou 6 anos de fardas iguais se podia ler crianças sadias e bem alimentadas de um externato de Sófia(Bulgária). Assim simplesmente.

Podia ter sido a minha imaginação de adolescente que se chocou com aquela descrição tão sóbria, típica talvez de um socialismo demasiado científico, que, com uma pequena adaptação do sujeito, se poderia aplicar a uma vara de porcos: porcos sadios e bem alimentados de uma exploração agro-pecuária nos arredores de Sófia…

Mesmo que de uma forma subconsciente, neste exemplo, era chocante a forma como se qualificava distanciadamente o bem-estar das crianças pelo seu aspecto exterior (saúde e alimentação)em vez de dar o devido relevo à sua felicidade – afinal, era uma preocupação que as distinguiria dos porcos… Mas, é claro, a verdade é que muitas destas reportagens se destinavam apenas a converter convertidos…

Passados um bom par de anos, o autismo no diálogo entre os simpatizantes dos dois blocos antagónicos (os comunistas e os que o não eram) crescera a um ponto tal que, dentro do bloco dos simpatizantes dos países socialistas (comunista), já na defensiva, havia mais preocupação em animar as próprias hostes do que em efectuar mais trabalho de proselitismo.

Só assim se compreende que, quando por essa altura foi lançado o matutino O Diário, um jornal completamente alinhado e destinado aos comunistas mais indefectíveis, se tenha escolhido para o promover um dos slogans publicitários mais permeáveis à sua utilização irónica pela parte contrária: a verdade a que temos direito!

Como Cunhal, que fingia não perceber a ironia feroz com que do outro lado se troçava das suas expressões recorrentes (as mais amplas liberdades democráticas…) ou das suas metáforas (a União Soviética é o sol da Terra…), dentro da equipa que escolheu o slogan parece que ninguém quis ter o grau de distanciamento suficiente para antever a ridicularização evidente que os outros, do outro lado, iriam fazer dele…

É esta gramática muito própria dos comunistas, complementada por um espírito nostálgico de ocaso, que tem acompanhado muitos dos seus defensores ao longo de todo o episódio recente de Fidel Castro, de quem hoje, como num refém de um rapto, os jornais publicam a fotografia segurando o jornal do dia. Simbólico, porque não tendo sido raptado, pode-se considerar Fidel um refém, nem que seja do regime que criou...

Sem comentários:

Enviar um comentário