28 fevereiro 2020

POR DETRÁS DO TÍTULO GARRAFAL COM A PALAVRA REFORMA AGRÁRIA

28 de Fevereiro de 1970. A realização de um colóquio no Instituto Superior de Agronomia tornava-se pretexto para que o Diário de Lisboa, navegando as correntes permissivas do marcelismo, destacasse em primeira página e em letras garrafais a expressão mais ou menos proibida de Reforma Agrária. O que se escrevia sobre o mencionado colóquio, sobretudo se aclarado pelo que hoje sabemos sobre os intervenientes, é digno de ser analisado, cinquenta anos depois. A mesa dos trabalhos era, como previsível, dominada por pessoas de esquerda. «A sessão, organizada pela Associação de Estudantes, foi presidida pelo professor Henrique de Barros» (que virá a ser deputado constituinte, eleito pelo PS e presidente da Assembleia Constituinte de 1975 a 1976), os dois conferencistas eram «o eng.º Carlos Silva, chefe do Departamento de Sociologia do Centro de Estudos de Economia Agrária, e o eng.º Blasco Hugo Fernandes, publicista.» (sobre o primeiro não encontrei referências on-line, mas sobre o segundo, o 25 de Abril virá a confirmá-lo como um poputchik* na órbita do PCP) A acrescer, «foi lido, por um membro da Associação, o texto de um autor cujo nome não foi divulgado». (prometia...)

A abrir a sessão, Henrique de Barros declarou «Pertenço ao número de professores que acreditam na utilidade das Associações de Estudantes, desde que sejam representativas.» O jornalista considerou a intervenção seguinte, do eng.º Carlos Silva, «burilada e extensa», lida «em tom monocórdico». A do eng.º Blasco Hugo Fernandes «recordou as noções de "modo de produção", "forças produtivas" e "relações de produção"». (ou seja, embora o jornalista não o tivesse escrito, a típica langue de bois marxista-leninista...) Mas estas terão sido apenas as actuações da primeira parte, antes da banda principal ir tocar. «A comunicação do autor anónimo tomou como ponto de partida a denúncia do conceito do desenvolvimento corrente em sociedades capitalistas.» E o jornalista que cobriu o colóquio chegou ao ponto de citar o anónimo em discurso directo: «É preciso eliminar qualquer ideia de reforma agrária que sirva a todos. Uma reforma serve sempre os interesses de uma classe.» E prosseguia num apanhado histórico de «várias experiências de reforma agrária - da hitleriana (?) e da mussoliniana (??) à cubana e à da República Democrática da Coreia (!!!)»**.  Depois «abordou o actual estado das relações (e das tensões) sociais no campo português.» E regressando ao discurso directo: «Em 59-61 apenas 25% do rendimento do sector agrícola foi afectado a salários: actualmente o rendimento do trabalhador agrícola é equivalente a 5,2 contos por ano». (e é este último número que é recuperado para o título da contracapa - acima, do lado direito - o que é notável se levarmos em conta que, se alguém o quisesse cientificamente contestar, o responsável pelo seu cálculo fora... um anónimo)

Mas o espectáculo não acabara. «Após as intervenções da mesa um grupo de estudantes pediu a palavra para, em tom antidiscursivo, contestar as comunicações apresentadas pelos eng.º Carlos Silva e Blasco Hugo. O prof. Henrique de Barros tentou moderar-lhes o ímpeto e o eng.º Blasco Hugo Fernandes designou-os por "jograis". Depois do incidente, o colóquio prosseguiu tal como tivera início, com pouco dinamismo e com muito formalismo». Ou seja, e se me é permitida a interpretação, a malta estava lá para fazer choldra e nem o gajo do PCP (ou sobretudo ele...) escapava. A esta distância percebe-se que a Associação de Estudante aproveitara e malbaratara a ocasião para um confronto ideológico entre a esquerda mais clássica e a extrema esquerda urbana maoista que então despontava. A propósito de maoismo, hoje sabemos - então não se sabia - que aqueles mesmos anos de 1959-61, citados na comunicação do anónimo, haviam sido a época de uma grande reforma nos campos na China... e de uma grande fome na China. São as ironias que estas evocações revelam...
* também designados pela expressão compagnon de route: individuo cujas simpatias políticas são consonantes com as do partido comunista, embora não seja militante.
** Os pontos de interrogação (?) servem para comentar o que não existiu, as reformas agrárias na Alemanha nazi e na Itália fascista; os pontos de exclamação (!) para comentar o que, existindo, nunca teve importância alguma, como sejam as reformas agrárias nas terras da dinastia dos Kim, a Coreia do Norte.

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