09 fevereiro 2022

O ALMIRANTE QUE DEIXOU AFUNDAR O NAVIO ACOSTADO AO CAIS

9 de Fevereiro de 1942 foi a data do afundamento por incúria e incompetência do SS Normandie no porto de Nova Iorque. Aproveito a data do 80º aniversário do acontecimento para aqui republicar um texto de Novembro de 2013 sobre esse acontecimento, apresentado num formato que não se costuma poder ler na Wikipedia.  
Esta é uma história que combina o prestígio de um almirante e a notoriedade do afundamento em pleno porto de um navio famoso, uma daquelas histórias que não se pode ler na Wikipedia, sempre zelosa em proteger as reputações dos biografados. O Almirante chama-se Adolphus Andrews (1879-1948), era um oficial da marinha norte-americana com uma daquelas folhas de serviços distintas mas de onde facilmente se deduzia ter havido um encosto de protecções políticas ao longo da carreira, com colocações como imediato (1910-11) e como capitão (1922-26) do próprio iate presidencial, o USS Mayflower, e ainda como membro do staff naval de dois presidentes norte-americanos, Warren Harding e Calvin Coolidge. Em 1941 e mesmo sob a ameaça crescente do envolvimento norte-americano na Segunda Guerra Mundial, este texano de 61 anos não constituía propriamente uma das estrelas do almirantado de Washington D.C. Em Março de 1941, a nove meses de Pearl Harbour, fora-lhe atribuído o comando do Terceiro Distrito Naval (sedeado em Nova Iorque) e a responsabilidade de comandar a, pomposamente designada, Fronteira Costeira Naval do Atlântico Norte (North Atlantic Naval Coastal Frontier).
A história do navio que se irá afundar conjuntamente com a reputação do almirante Adolphus Andrews era muito mais conhecida que esta última. O SS Normandie era um luxuoso navio de passageiros, o orgulho da marinha mercante francesa. Medindo mais de 300 metros, com um deslocamento superior a 70.000 toneladas e uma capacidade para transportar quase 2.000 passageiros, o SS Normandie era um dos maiores paquetes dessa época. Era também um dos mais velozes: na sua viagem inaugural, realizada em Junho de 1935 entre Le Havre e Nova Iorque o luxuoso navio batera o record de velocidade nas ligações entre o Velho e o Novo Continente, um feito galardoado com o privilégio de poder exibir a flâmula azul, insígnia de uma competição já centenária que envolvia não apenas navios e companhias de navegação mas também prestígios nacionais. O paquete RMS Queen Mary britânico iria roubar o distintivo ao SS Normandie francês no Verão de 1936, este iria recuperá-lo de volta no Verão seguinte de 1937, para vir a perdê-lo uma outra vez e para o mesmo RMS Queen Mary na mesma estação de 1938. Em Setembro de 1939, ao começar a Segunda Guerra Mundial, parecia que a brincadeira tinha que ser interrompida.
O SS Normandie estava acostado ao porto de Nova Iorque nessa altura e aí ficou, internado por decisão do governo norte-americano, desde o dia da declaração de guerra, 3 de Setembro de 1939, muito embora continuasse a ser mantido pela sua tripulação francesa. Entretanto, os Estados Unidos permaneciam neutrais enquanto na Europa a Alemanha derrotava a França na Primavera de 1940. Em França emergia o regime de Vichy. Quanto mais se deterioravam as relações entre norte-americanos e franceses, mais aumentavam os incentivos para que os Estados Unidos se apossassem do SS Normandie para o recondicionar internamente e convertê-lo num enorme transporte de tropas à semelhança do que os britânicos haviam decidido fazer com o seu rival RMS Queen Mary, que chegou a poder transportar 16.000 soldados numa simples viagem. A concretização da ideia, porém, só se veio a verificar depois da entrada dos Estados Unidos na Guerra em Dezembro de 1941. O governo norte-americano decidiu angariar o SS Normandie, atracado há 27 meses ao Cais 88 do porto de Nova Iorque, para o transformar num transporte de tropas gigante ao serviço da US Navy, rebaptizado simbolicamente de USS Lafayette.
É aqui que os percursos de Adolphus Andrews e do SS Normandie finalmente se encontram: uma das unidades navais que mais suscitavam as atenções mediáticas no Terceiro Distrito Naval do Almirante Andrews era o recém-baptizado USS Lafayette. A 9 de Fevereiro de 1942, menos de dois meses depois de ele ter sido angariado, desencadeou-se um incêndio no navio, provocado pelas obras de reconversão. Vários factores se conjugaram para que o incêndio se alastrasse e para que o seu combate se mostrasse ineficaz. Mas o problema que rapidamente se tornou mais evidente, até para os leigos que assistiam de longe ao combate às chamas, era que a água despejada estava a levar o navio a inclinar-se progressivamente para bombordo. Nem a feliz presença do próprio desenhador do navio, o russo Vladimir Yourkevich (1885-1964), se veio a revelar benéfica para o desfecho: as suas sugestões para que se provocasse deliberadamente uma inundação a estibordo, mesmo que a quilha do navio assentasse no fundo do porto, foram ignoradas pelo Almirante Andrews que supervisionava as operações. Doze horas depois do início do incêndio, o SS Normandie virou-se num ângulo de cerca de 80º.
A batalha que o Almirante Andrews, pessoalmente, e a US Navy, corporativamente, travaram para dissipar a notoriedade mediática de uma operação que fora particularmente mal sucedida contou com as circunstâncias favoráveis de se estar em tempo de guerra onde há segredos capazes de esconder incompetências. Mesmo assim, durante os meses que se seguiram o casco tombado do SS Normandie nas águas geladas do porto tornou-se uma das atracções turísticas da cidade de Nova Iorque. Adolphus Andrews foi demitido do seu comando do Terceiro Distrito Naval, continuando a comandar, para salvaguarda das aparências, a pomposa Fronteira Costeira Naval do Atlântico Norte. No ano seguinte, em Novembro de 1943, Adolphus Andrews, o Almirante que não tinha jeito para ser bombeiro, passou finalmente à reforma. Três meses antes disso, numa das maiores operações do género até então, o SS Normandie fora endireitado para depois ser enviado para doca seca para reparações. Mas os danos causados pelo assentamento de um dos lados do navio (lembre-se o caso recente do Costa Concórdia) e a submersão por um ano e meio da sua maquinaria tornaram a recuperação desinteressante.

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