Ben Bradlee (1921-2014) morreu há cerca de mês e meio. Quem já tenha esquecido de quem se tratava e dos elogios fúnebres que então lhe foram feitos, reitere-se que Bradlee era o editor do Washington Post quando este jornal se notabilizou pela cobertura do Caso Watergate. Ben Bradlee morreu nonagenário (93 anos), assim como já havia acontecido com Mark Felt, que se veio a revelar ser a Garganta Funda crucial para todo o caso e que havia morrido em 2008 com 95 anos, como se houvesse uma espécie de justiça divina que terá preservado os bons da história de Watergate cá na Terra enquanto se apressou a levar cedo os maus, condenados pelos abusos feitos sob a égide da Administração Nixon: entre estes, o procurador John Mitchell, que morreu logo na década de oitenta com 75 anos, os conselheiros presidenciais Bob Haldeman e John Ehrlichman, que morreram na década seguinte com 67 e 73 anos respectivamente, tal como aconteceu ao próprio Richard Nixon, que faleceu em 1994 aos 81 anos. A manter-se o padrão, os dois últimos grandes protagonistas entre os bons de Watergate, os jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein, só recentemente chegados aos 70 anos, ainda se contarão entre nós por muito mais tempo.
Ainda bem. Mas será que entretanto nada terá mudado na forma como o Caso Watergate é encarado? A revelação em 2005 da identidade de quem fora a Garganta Funda (e sobretudo o que fora...) Mark Felt terá mudado quase tudo nos fundamentos do que se acreditava originalmente ter sido o caso Watergate. Até aí ele fora considerado como um dos exemplos mais brilhantes do jornalismo de investigação, uma referência incontornável da excelência da profissão, uma demonstração insofismável do papel indispensável do escrutínio da informação numa democracia, que era rematado pelo aspecto deontológico adicional e não despiciendo da preservação da identidade do informador pelos jornalistas enquanto fora vontade do primeiro. Contudo, depois de se saber que a Garganta Funda era nada mais nada menos que o nº 2 da hierarquia do FBI, não será toda, mas haverá uma substancial parcela da imagem idílica que acima se escreve que teve de ser revista e completamente rescrita. Relembrem-se os factos.
Watergate começou por ser um assalto a um apartamento onde estava sediado o Comité Nacional Democrata em Washington em Junho de 1972. O nome do complexo de edifícios onde se situava o apartamento acabou por dar o nome ao Caso, e o sufixo –gate virá a ser posteriormente usado (e abusado) como sinónimo de escândalo político nos Estados Unidos e no resto do Mundo. Os assaltantes foram apanhados: eram antigos agentes da CIA e descobriu-se que os mandantes tinham ligações ao staff da Casa Branca. Nunca ficou provado que Richard Nixon teve pessoalmente conhecimento prévio do próprio assalto mas os desenvolvimentos posteriores tornaram o pormenor irrelevante. O Caso evoluiu do assalto propriamente dito para as tentativas de encobrimento das ligações dos assaltantes ao pessoal da Casa Branca, depois ao financiamento dos envolvidos no assalto, que ia desembocar em fundos pertencentes à campanha para a reeleição de Nixon. Desde o Verão de 1972, ainda Nixon não fora sequer reeleito, as pessoas ao seu redor ficaram debaixo de fogo mediático e foram caindo consecutivamente como pinos de bowling numa tentativa baldada de estancar preventivamente a investigação da dupla do Washington Post, até que o momento por eles desencadeado gerou o interesse dos próprios adversários políticos do presidente no Congresso que, dispondo de uma nova eficácia e de outros meios de coacção, acabaram por forçar a renúncia de Richard Nixon em Agosto de 1974. Isto é a síntese do enredo do filme de 1976 Os Homens do Presidente. Os grandes nomes do cinema (Robert Redford, Dustin Hoffman, Jason Robards – que acabou recebendo o Óscar) ficaram com os papéis dos bons, Bob Woodward, Carl Bernstein, Ben Bradlee. O relativamente obscuro Hal Holbrook era o actor que fazia de Garganta Funda, personagem sem qualquer densidade, e que passa uma boa parte do filme a descompor a de Redford.
Na realidade, é hoje evidente que Mark Felt fez muito mais do que só orientar as investigações e descompor a dupla de jornalistas. Em Maio de 1972, um mês antes do Caso Watergate começar, J. Edgar Hoover, que fora o director do FBI durante 48 anos, morrera. O seu adjunto Clyde Tolson tinha 72 anos, já tivera um AVC e uma saúde debilitada desde então e era com legítimas esperanças que, aos 58 anos, o nº 3 da organização, Mark Felt, esperava vir a ser nomeado para aquele poderoso cargo. Mas Richard Nixon não lhe ia dar essa satisfação. Com a morte de Hoover, ele conseguira finalmente aquilo que fora a ambição de vários dos seus antecessores, nomeadamente Kennedy e Johnson: ter um homem de confiança à frente do FBI. O acumular dos anos havia tornado a organização num feudo pessoal de Hoover, dirigido por homens que lhe eram devotados e com uma concepção muito própria de missão, que incluía a espionagem interna e em benefício dos poderes do próprio Hoover. J. Edgar Hoover sabia os podres de todos os poderosos e só isso explica que se tenha mantido em funções até à sua morte aos 77 anos (pelo critério acima sugerido da idade de morte, ele será um dos maus...). Ao escolher Louis Patrick Gray, um outsider vindo do departamento de Justiça para seu sucessor, o presidente Nixon pretenderia apenas exercer o seu controle sobre uma estrutura considerada de há muito rebelde à Casa Branca, qualquer que fosse o ocupante. Mas as coisas não se passaram bem assim: Gray só ocupou o cargo interinamente durante menos de um ano, veio a ser uma das vítimas colaterais do Caso Watergate por se ter envolvido na cobertura dada aos assessores de Nixon e, ironicamente, foi ele quem defendeu veementemente Felt quando se suspeitou de que o seu adjunto é que era a Garganta Funda – terá sido por isso que morreu em 2005 com uns provectos 89 anos...
Do outro lado, Mark Felt sentira a nomeação do seu novo chefe como, além de uma injustiça, uma inaceitável politização do FBI, aquilo que Hoover tanto fizera por evitar. Como ele é que era o homem da casa, foi ele que dirigiu efectivamente a organização entre a morte de Hoover e Junho de 1973, quando se retirou. Nessa altura, o Caso Watergate já vencera a inércia inicial, saíra das notícias da imprensa para as investigações de comissões no Congresso, os inimigos de Nixon cheiravam o seu sangue, o seu dinamismo deixara de ser imprescindível. O método seleccionado para aqueles que o FBI elegia como seus inimigos era torná-los em vítimas de selectivas fugas de informação para a comunicação social. As fontes eram os cuidadosos dossiers mantidos pelo FBI a respeito da vida de todos aqueles que eram politicamente importantes. A origem da fuga mantinha-se imperiosamente secreta. Os alvos, que eram, na esmagadora maioria das vezes, culpadíssimos daquilo de que estavam a ser acusados publicamente, não tardavam a cair fragorosamente diante da exposição mediática. Ao eleger Richard Nixon, Mark Felt, motivado também muito provavelmente por razões pessoais, apenas levou o processo ao patamar máximo da política americana: tornou o próprio presidente num alvo. Aquilo que Kennedy e Johnson temiam e que os impedira de remover Hoover do lugar. E não se pense que Felt se sentiria indignado pelos métodos dos homens do presidente: ele próprio veio posteriormente a ser condenado (e amnistiado - por Reagan) por ter autorizado outras escutas e outros arrombamentos enquanto dirigente do FBI.
Para completar o triângulo, falta rever o Caso da perspectiva de onde foi sempre visto: a do Washington Post. Sabe-se que as fugas de Mark Felt abrangeram inicialmente outros órgãos de informação de projecção nacional, nomeadamente a revista Time. Terá sido o entusiasmo e a qualidade demonstrados pela jovem dupla Woodward/Bernstein que o levou a investir no Washington Post? Já não é possível sabê-lo, mas registe-se aqui que aquilo que a juventude da dupla Woodstein não procuraria acautelar, competiria à maturidade e responsabilidade do editor Ben Bradlee, também ele conhecedor da origem das fugas. Porque existiu no processo um pormenor extremamente incómodo de que Bradlee não podia deixar de se aperceber (se não o soubesse já): as informações com que Felt orientava os jornalistas nunca poderiam ter resultado da sua actividade pessoal e/ou da sua cobrança de alguns favores pessoais dentro do FBI. Os pormenores sobre as actividades clandestinas do aparelho forjado à volta de Nixon ou as conexões financeiras da sua máquina eleitoral só poderiam resultar de um exercício de monitorização continuada, o que equivale a reconhecer que na base das fugas que estavam a alimentar o sucesso do Caso Watergate, e com ele a notoriedade e as vendas do Washington Post, estava a actividade de espionagem - ilegal - desenvolvida pelo FBI. Pior do que isso, pelo calendário das informações essa actividade parecia ter existido desde sempre, não fora desencadeada por uma hipotética preocupação de Mark Felt em querer usar a organização que dirigia para escrever direito por linhas tortas. Os factos que se davam a conhecer consubstanciavam a ideia de que o FBI andara em cima de Nixon desde sempre, como se se tratasse de uma rotina.
É evidente que Richard Milhous Nixon era uma pessoa tão pouco recomendável que é impossível vê-lo como uma vítima e que o processo que acabou por culminar com a sua resignação nunca poderá ser levado à conta de uma injustiça. É defensável que Bradlee tenha considerado essa a componente prioritária do Caso Watergate e sacrificado todo um ror de regras deontológicas em prol da exposição de um presidente que ele consideraria um mau carácter, quiçá pernicioso para a América. No meio de tanto poder discricionário – a começar pelo de Felt – é totalmente arbitrário mas pode ser, apesar disso, compreensível. Mas tem que haver uma explicação melhor do que essa ou a da inércia para que a situação de meia-verdade vivida pelos implicados do Washington Post se tenha depois perpetuado por mais de trinta anos depois disso. Havia dois aspectos importantíssimos que se escondiam por detrás do anonimato de Garganta Funda e que de imediato sobressairiam para debate com a revelação da sua identidade: a) como os jornalistas se prestaram a ser instrumentalizados quando duas organizações do poder entraram em conflito não declarado; b) como se (não) podem comportar os serviços de informações e segurança interna numa democracia quando existe falta de controle legítimo. E é improvável que qualquer dos três jornalistas não se apercebesse antecipadamente do impacto da revelação, das transformações que os seus papéis na história do Caso Watergate iriam sofrer nessa eventualidade, das perguntas a que poderiam vir a ser submetidos, da profunda revisão estrutural que todo o Caso teria de sofrer.
Tal como aconteceu, foi preciso chegar a 2005 para, com a revelação da identidade de Mark Felt, aqueles que ainda tivessem interesse pela substância da história compreendessem por fim que no Washington Post se havia enterrado uma história importante – a de que um organismo de segurança interna promovera activamente a destituição de um presidente - para que outra subsistisse – a de que o presidente destituído era um escroque. Nove anos depois da revelação da identidade de Garganta Funda, seis anos depois da morte de Mark Felt, mês e meio depois da morte Ben Bradlee é significativo perceber como a corporação do jornalismo se dispõe a tentar preservar a imagem imaculada de Watergate. A maioria dos textos que se dispõem a rever o Caso Watergate considerando, como aqui faço, as profundas implicações da identidade do informador não são de colegas de Woodstein, dupla entretanto elevada pelos seus méritos à condição de ícones da profissão. Mas que estão sujeitos, por causa da identidade de Felt, a uma obrigatória revisão em baixa. Mas foi ao ler algumas evocações a propósito da morte recente de Ben Bradlee (de que cito apenas um exemplo) que me apercebi como ainda subsiste forte uma certa ilusão de que, quanto ao Caso Watergate, nada se terá passado nos últimos dez anos e que tudo continua como sempre se ensinou: uma história do faroeste com os cowboys bons no jornal e os índios maus na Casa Branca.
Excelente post.
ResponderEliminar