Se me for possível sintetizar o impasse da situação política portuguesa numa montagem fotográfica, ela aí está. De um lado está o outrora optimista irritante, a quem se esgotaram as ideias e que passou nitidamente do prazo de validade para governante, até os amigos dele sabem isso. E do outro está o pretenso alternativo, que chegou aos 50 anos sem nunca ter ocupado um cargo governamental sequer, nem a avozinha dele se convencerá que é uma boa aposta para chefiar uma nova equipa governamental. É isso em síntese. E o Marcelo não aparece porque o Marcelo não conta. Devem-se-lhe imensas notícias que alimentam a comunicação social - que lhe está muito grata por isso - mas, ou dissolve o parlamento, ou então politicamente não conta.
30 setembro 2023
O MOSQUITO TRANSMISSOR QUE ATRAVESSOU O ALENTEJO À ALENTEJANA
Há coisa de três dias foi notícia que fora «detectado em Lisboa» o «mosquito que transmite dengue ou Zika». Tal acontecimento não era, contudo, motivo de «preocupação». Compreende-se. A notícia não tinha como objectivo alarmar desnecessariamente os leitores sobre uma questão de saúde, era apenas uma preocupação dos jornais em satisfazer a curiosidade do vasto grupo de leitores que se interessam por entomologia, o estudo dos insectos... A curiosidade é que, já há cinco anos, e precisamente por esta altura (veja-se abaixo), já o rasto daqueles mesmos mosquitos, «aproximando-se de Portugal», estava a ser objecto daquele mesmo dedicado acompanhamento pela nossa comunicação social e, presumivelmente, pelos mesmos motivos nobres - a entomologia, que todos sabemos ser uma paixão nacional... Porque dar o destaque que aqui vemos nos dois títulos às doenças de que aqueles insectos podem ser portadores, não tem nada de alarmismo, é só rigor científico. E, por falar em rigor científico, há que constatar que, se os bichos demoram cinco anos a vir da Extremadura espanhola, ou seja, na melhor das hipóteses de Badajoz, até Lisboa, então é porque vieram a pé e à alentejana...
Etiquetas:
5º Aniversário,
Inanidades,
Informação,
Sociedade
29 setembro 2023
A FRANÇA EM TRIBUNAL - O CASO DO MARECHAL PÉTAIN
Já aqui demonstrei no blogue o quanto me interessa o tema do período da ocupação (1940-44), os anos de chumbo em que a França esteve sujeita aos ditames dos alemães. E foi também por isso, mas não só, que me apressei a comprar este livro acima, acabado de publicar em Junho deste ano de autor já meu conhecido. Regressar ao tema do julgamento do marechal Philippe Pétain tem a pertinência de tentar perceber a sua pessoa, a sua conduta entre 1940-44 e o seu posterior julgamento e condenação em 1945, o que constitui um assunto controverso que ainda subsiste (e suspeito que subsistirá...) em França. E por Julian Jackson fazer, narrando as circunstâncias muito peculiares em que decorreu o julgamento (Julho-Agosto de 1945, o fim da guerra contra o Japão coincidiu com o fim do julgamento) fazer ainda assim, o leitor concentrar-se nos factos mais importantes e mais graves do que aconteceu durante aqueles anos - e, evidentemente, no apuramento das responsabilidades do réu. Porque as tendências desculpabilizadoras já fizeram com que se cunhassem termos tão absurdos como...vichisto-resistentes (abaixo - um livro de 800 páginas de que desisti da leitura a 30%! do fim). Por outro lado, este julgamento de um antigo chefe de Estado, que são sempre momentos politicamente controversos, não deixa de ter ressonâncias estranhamente modernas do outro lado do Atlântico, quando Donald Trump se prepara para quatro julgamentos e 91 acusações. Mas isso sou eu a dizer, o Julian Jackson não se refere a esse (outro) assunto sequer...
Etiquetas:
França,
Livros,
Outros Tempos
28 setembro 2023
MARQUES MENDES: VINTE ANOS A FINGIR QUE PAIRA POR CIMA DA POLÍTICA ORDINÁRIA
28 de Setembro de 2003. À época, Luís Marques Mendes ocupava a pasta dos Assuntos Parlamentares no governo de Durão Barroso e, mesmo assim, apanhamo-lo neste exercício abaixo de se demarcar dos deputados do seu próprio grupo parlamentar, num estilo de quem está na política, mas que comenta distanciadamente aquilo que de mau lá se passa, como se ele próprio lá não estivesse no meio da acção. É ainda o seu estilo de agora, foi o que usou no fim de semana passado na SIC e será o do próximo fim de semana, é um estilo que ele mantém há pelo menos vinte anos - haja quem lhe forneça o palco (a SIC) para exibir tal estilo com regularidade. Os vinte anos decorridos deram oportunidade a episódios demonstrativos de como aquele estilo é completamente falso, como todos percebemos claramente, e só para dar um exemplo, quando Marques Mendes foi apanhado/escutado a meter cunhas em prol de terceiros quando eclodiu o escândalo dos vistos gold (2014). Ele não paira por cima da política ordinária, no episódio dos vistos gold ouvimo-lo a traficar influências e suja-se porventura mais do que muitos daqueles que critica sobranceiramente. Quem quiser ver o que é a "degradação da imagem" de um agente político com assento permanente num canal de televisão, é ler os dois parágrafos depois da notícia de há 20 anos. São transcrições do jornal Público de 22 de Janeiro de 2016.
«A 26 de Agosto de 2014, Marques Mendes diz ao presidente do IRN que gostava de lhe enviar um “emailzinho” sobre um casal que conheceu em Moçambique, para ele “conseguir ver como é que se podia” resolver o problema. Salimo Abdula é “um tipo de grande prestígio, talvez o maior empresário de Moçambique”, e ainda por cima presidente da Confederação Empresarial da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que tem sede em Lisboa. Mas nem estas qualidades todas, nem a sua “fortíssima ligação a Portugal”, país em que o filho “está a estudar” e onde possui “negócios, casa e contas bancárias”, granjearam, até àquele momento, à mulher, que tem “descendência de portugueses”, a almejada nacionalidade. O comentador televisivo explica como Assunção Abdula juntou ao processo declarações de Américo Amorim e do grupo Visabeira, com quem o casal tem negócios em Moçambique. Mas nem assim. “Podemos eventualmente ir pela via da discricionariedade”, equaciona António Figueiredo. “Pois. Claro, claro”, responde-lhe Marques Mendes, recordando-se de que o IRN pediu à requerente uma declaração do Ministério da Economia. “Se for preciso eu falo com o António Pires de Lima”, disponibiliza-se o antigo líder do PSD.»
«A 17 de Outubro de 2014, Marques Mendes pergunta ao presidente do IRN se lhe pode levar uma senhora por quem também tinha intercedido. Desta vez os seus esforços não foram em vão: presença habitual nas colunas sociais da imprensa brasileira, a nora do fundador do grupo Pão de Açúcar, Geyze Marchesi Diniz, conseguiu mesmo a dupla nacionalidade. “É muito importante, porque eles vão investir muito dinheiro em Portugal”, advogara Marques Mendes quando telefonara ao presidente do IRN para saber do andamento do processo. Segundo o comentador televisivo, a ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, tinha sido alertada para a questão e também era da mesma opinião. Marques Mendes aproveitou a ocasião para pedir ajuda para a sua filha, que estava com problemas relacionados com o cartão do cidadão. António Figueiredo pede-lhe para ela ir ter com ele aos serviços. “Era uma situação de emergência”, alega hoje Marques Mendes: a rapariga ia casar e não conseguia fazer a escritura da casa sem resolver o assunto.»
Etiquetas:
20º Aniversário,
Inanidades,
Política
27 setembro 2023
OS «PADECIMENTOS» DESTE OUTRO CHEFE DE GOVERNO
27 de Setembro de 1973. Ou seja, precisamente cinquenta anos depois dos «padecimentos» do chefe do governo do poste anterior, era um outro chefe de governo, um sucessor longínquo de António Maria da Silva que, nesse serão, se dirigia aos portugueses pela televisão, numa das suas tradicionais «conversas em família». Marcello Caetano assinalava na oportunidade o quinto aniversário da sua nomeação para o cargo. Esta conversa em família do chefe do Governo - para quem a quiser ver - durará 41 minutos, ou seja, uma intervenção com menos de metade da duração da intervenção de hora e meia que o seu antecessor, António Salazar, proferira sobre política ultramarina, em 12 de Agosto de 1963, dez anos antes, nessa mesma RTP. O estilo de comunicação aprimorara-se, mas a política ultramarina era essencialmente a mesma... Cinquenta anos depois, os «padecimentos» deste outro chefe de governo era não ter nada de verdadeiramente novo para apresentar aos portugueses, apesar das expectativas reformistas que se haviam criado inicialmente à sua volta.
Etiquetas:
50º Aniversário,
Outros Tempos,
Televisão
OS «PADECIMENTOS» DO CHEFE DE GOVERNO
27 de Setembro de 1923. O sr. António Maria da Silva, presidente do ministério, estava doente. E mesmo a cem anos de distância, esta notícia que dá conta dos seus «padecimentos» deixa grandes desconfianças de que se trata de uma notícia plantada para fazer o frete ao governo. Por não mencionar nenhuma doença em concreto, apenas que se agravara, por dar tanto ênfase ao repouso «absoluto» ter sido prescrito pelo «médico assistente», e finalmente por antecipar com tanta segurança qual será a duração do «absoluto repouso».
Etiquetas:
100º Aniversário,
Informação
26 setembro 2023
PUBLICIDADE INSÍPIDA INODORA E INCOLOR
Adalberto Campos Fernandes tem a capacidade de agregar palavras, formando lugares comuns que depois encadeia, produzindo textos de belo aspecto formal embora sem qualquer conteúdo. Melhor do que isso, como chairman de uma organização de que nunca se ouvira falar, consegue a proeza de a promover no Público sem ter de pagar pelo espaço publicitário que ocupa. O mundo está feito para este género de espertos: este é o dos espertos que parecem que pensam em coisas. Vai-se a ver, são sempre as mesmas palavras, o que se altera um bocadinho é a ordem por que são escritas. Não nos esqueçamos que este senhor dizia, ainda aqui há um ano, numa das suas raras frases inteligíveis, que «Estamos a viver um dos melhores momentos da saúde em Portugal».
SE LÁ NEVASSE, O JORNAL OBSERVADOR CAÍA LOGO DE CU...
Esta "notícia" do Observador é uma daquelas notícias que não existe, porque as conclusões que pretende passar aos leitores assentam nos resultados de uma sondagem, sondagem essa que tanto poderá estar certa quanto errada. No caso específico do Observador e da situação política espanhola, o mais provável é que esteja errada, já que aquele mesmo jornal passou o mês de Julho a publicar sondagens para as eleições do dia 23 daquele mês, que depois se verificaram estar todas erradas (abaixo, desde 1 de Julho até às de 17 de Julho, em qualquer delas prognosticava-se a maioria do PP com o Vox, o que, para grande desgosto da malta do Observador, não se veio a verificar nas urnas...).
Se as sondagens de Julho do Observador tivessem estado certas, a situação política actual de Espanha não era a que se verifica: Feijóo não estaria entalado em fazer passar o seu governo - mas está! Portanto, se aquele jornal fosse mais do que uma folha de propaganda, não arriscava induzir conclusões baseadas em sondagens sobre eleições virtuais (e mesmo com alterações da representação no Congresso), expediente esse que já se demonstrou ser um fiasco total, mesmo quando essas eleições nem eram virtuais. Como dizia a letra da famosa canção, não chega a ser uma questão do se cá nevasse fazia-se cá ski, o Observador nem chegava a skiar, caía logo de cu...
OS FOGUETES DE ESCAPE OU EMERGÊNCIA
(Republicação)
Não sei se repararam que existe na extremidade superior de qualquer foguetão com naves tripuladas, aquilo que à distância pela sua espessura pareceria serem antenas e que afinal são um pequeno mas poderoso foguete, designado por foguete de escape (na designação norte-americana, na fotografia acima instalado numa nave Apollo) ou de emergência (usando a designação russo-soviética, abaixo numa nave Soyuz). Mas, seja qual for a designação, não se costuma dar por ele: é uma daquelas picuinhices (suponho que Eduardo Catroga lhe chamaria pentelhos…) de entusiasta pela astronáutica.
O dia 26 de Setembro de 1983 não foi um dia memorável (embora tivesse todas as condições para o ter sido…) e a agência de notícias TASS teria uma oportunidade de preencher a agenda noticiosa mundial com mais um lançamento bem-sucedido de uma nave espacial tripulada soviética. Porém, a minuto e meio antes da hora prevista para esse lançamento, quando se procedia ao abastecimento do foguetão, uma válvula defeituosa provocou um derrame de combustível que imediatamente se incendiou. Abaixo, as imagens registadas do acidente não são particularmente esclarecedoras…
…mas percebe-se que decorreram uns vinte segundos até que um sistema suplementar (o ordinário fora danificado pelo incêndio) fizesse acionar o foguete de emergência lançando aceleradamente (14 a 17 G) a Soyuz com os dois cosmonautas (Titov e Strekalov) até aos 2 km de altitude, para depois regressarem ao solo, como abaixo se explica, a mais de 5 km da plataforma. Foi a única vez em que aqueles foguetes foram accionados a sério. E fica a pequena nota que o primeiro gesto dos cosmonautas quando recuperaram o controlo da nave foi desligar o gravador de voz por causa dos palavrões…
Etiquetas:
40º Aniversário,
Astronáutica,
Rússia
O DIA EM QUE NÃO COMEÇOU A III GUERRA MUNDIAL
(Republicação)
Existem vários livros e filmes contando os dias quentes do Outono de 1962 em que, por causa da colocação dos mísseis soviéticos em Cuba, Kennedy e Khrushchev (os dois Ks), os Estados Unidos e a União Soviética estiveram à beira de uma Guerra Mundial que provavelmente degeneraria num conflito nuclear. Em contraste, quase ninguém terá ouvido falar do Tenente-Coronel Stanislav Petrov, um oficial do Ramo da Defesa Aérea soviética (ПВО) que evitou que aquelas mesmas duas superpotências se tivessem envolvido acidentalmente num outro conflito nuclear em 26 de Setembro de 1983…
Este outro Outono quente de 1983 começara a aquecer a 1 de Setembro em consequência do episódio em que interceptores soviéticos haviam abatido um Boeing 747 da companhia aérea sul-coreana que, vindo dos Estados Unidos para a Coreia, se desviara da rota, o que causou a morte das 269 pessoas que seguiam a bordo (23% eram norte-americanas). É fácil imaginar quais as consequências que este acontecimento provocou nas relações – sempre tensas! – entre os dois países e a tensão acrescida que ainda pairaria no ar na noite de 25 para 26 de Setembro de 1983, quando o tenente-coronel Petrov entrou de serviço.
Costuma ser assim: muitas vezes, os acontecimentos importantes são condicionados por pormenores irrelevantes: Petrov não devia ali estar, mas fora convocado à última da hora para substituir um camarada que adoecera. As suas funções, enquanto estava de turno, eram vigiar uma panóplia de ecrãs mostrando imagens em directo (via satélite) das regiões do Midwest dos Estados Unidos onde estavam localizados os silos com os mísseis transportando as armas nucleares do inimigo e reportar mal acontecesse alguma anomalia: o tempo que medeia entre a descolagem e o impacto no destino ronda os 12 minutos!
Meia hora depois da meia-noite, aquilo que se imagina que os profissionais do ramo mais devem temer aconteceu mesmo: um aviso luminoso vermelho a piscar conjugado com um ensurdecedor sinal sonoro! O computador acabara de o informar que, de acordo com as informações disponíveis, nos Estados Unidos tinham acabado de lançar um ICBM¹. Ainda Petrov, tão assustado quanto intrigado (parecia haver algo de errado nas imagens que lhe chegavam via satélite), avaliava a situação e já dois, três, quatro, cinco avisos disparavam por sua vez, correspondentes à saída de outros tantos ICBMs.
O que estava a faltar na colecção de sinais dos outros monitores diante de Petrov eram as imagens térmicas que assinalariam a combustão dos mísseis recém-lançados… Ou seja, os outros indicadores à sua disposição estavam a mostrar que nada acontecera... Por outro lado, os segundos continuavam a passar e os americanos não haviam lançado mais nenhum ICBM para além dos cinco assinalados, o que contrariava todos os preceitos que haviam ensinado a Petrov no caso de haver um primeiro ataque nuclear: o atacante iria empregar todos os meios que pudesse, antes que eles fossem sujeitos a retaliação.
Se os Estados Unidos tinham centenas de mísseis, porque iriam começar uma Guerra lançando apenas cinco? – perguntou-se. Numa sociedade que em nada encorajava a tomada de decisões e num regime famoso por executar quem as tomava erradas, há algo de milagroso na decisão rápida do Tenente-Coronel Stanislav Petrov, considerando que o incidente não passava de um falso alarme do sistema de alerta nuclear soviético. As dúvidas tiraram-se dez minutos depois e, mais do que os imaginar, é possível ver uma réplica de como eles poderão decorrido, a partir da cena abaixo, retirada do filme WarGames...
Trata-se de uma coincidência mas, nesse mesmo Outono de 1983 estava a ser lançado o filme WarGames onde o enredo gira precisamente à volta dos problemas de um sistema de alerta nuclear norte-americano... Como é tradicional nos filmes de Hollywood, o filme acaba bem. A carreira do tenente-coronel Petrov é que nem por isso: veio a aposentar-se prematuramente. E o Outono de 1983 manteve-se quente até ao fim, até à realização dos exercícios Able Archer 83 pela NATO, que simulavam precisamente um engajamento nuclear, e se desenrolaram perante membros do Pacto de Varsóvia de sobrolho franzido.
¹ Acrónimo em inglês para Míssil Balístico InterContinental.
Este outro Outono quente de 1983 começara a aquecer a 1 de Setembro em consequência do episódio em que interceptores soviéticos haviam abatido um Boeing 747 da companhia aérea sul-coreana que, vindo dos Estados Unidos para a Coreia, se desviara da rota, o que causou a morte das 269 pessoas que seguiam a bordo (23% eram norte-americanas). É fácil imaginar quais as consequências que este acontecimento provocou nas relações – sempre tensas! – entre os dois países e a tensão acrescida que ainda pairaria no ar na noite de 25 para 26 de Setembro de 1983, quando o tenente-coronel Petrov entrou de serviço.
Costuma ser assim: muitas vezes, os acontecimentos importantes são condicionados por pormenores irrelevantes: Petrov não devia ali estar, mas fora convocado à última da hora para substituir um camarada que adoecera. As suas funções, enquanto estava de turno, eram vigiar uma panóplia de ecrãs mostrando imagens em directo (via satélite) das regiões do Midwest dos Estados Unidos onde estavam localizados os silos com os mísseis transportando as armas nucleares do inimigo e reportar mal acontecesse alguma anomalia: o tempo que medeia entre a descolagem e o impacto no destino ronda os 12 minutos!
Meia hora depois da meia-noite, aquilo que se imagina que os profissionais do ramo mais devem temer aconteceu mesmo: um aviso luminoso vermelho a piscar conjugado com um ensurdecedor sinal sonoro! O computador acabara de o informar que, de acordo com as informações disponíveis, nos Estados Unidos tinham acabado de lançar um ICBM¹. Ainda Petrov, tão assustado quanto intrigado (parecia haver algo de errado nas imagens que lhe chegavam via satélite), avaliava a situação e já dois, três, quatro, cinco avisos disparavam por sua vez, correspondentes à saída de outros tantos ICBMs.
O que estava a faltar na colecção de sinais dos outros monitores diante de Petrov eram as imagens térmicas que assinalariam a combustão dos mísseis recém-lançados… Ou seja, os outros indicadores à sua disposição estavam a mostrar que nada acontecera... Por outro lado, os segundos continuavam a passar e os americanos não haviam lançado mais nenhum ICBM para além dos cinco assinalados, o que contrariava todos os preceitos que haviam ensinado a Petrov no caso de haver um primeiro ataque nuclear: o atacante iria empregar todos os meios que pudesse, antes que eles fossem sujeitos a retaliação.
Se os Estados Unidos tinham centenas de mísseis, porque iriam começar uma Guerra lançando apenas cinco? – perguntou-se. Numa sociedade que em nada encorajava a tomada de decisões e num regime famoso por executar quem as tomava erradas, há algo de milagroso na decisão rápida do Tenente-Coronel Stanislav Petrov, considerando que o incidente não passava de um falso alarme do sistema de alerta nuclear soviético. As dúvidas tiraram-se dez minutos depois e, mais do que os imaginar, é possível ver uma réplica de como eles poderão decorrido, a partir da cena abaixo, retirada do filme WarGames...
¹ Acrónimo em inglês para Míssil Balístico InterContinental.
Etiquetas:
40º Aniversário,
Armamento,
Estados Unidos,
Estratégia,
Filmes,
Rússia
25 setembro 2023
ESTE É MAIS UM DAQUELES QUE ACHA QUE SÃO TODOS PARVOS À SUA VOLTA
Em quatro dias, foi só preciso realizarem-se as eleições, para que Miguel Albuquerque desse uma cambalhota e retirasse a sua promessa solene de não governar se a coligação que encabeçava não obtivesse maioria absoluta. Seria questão de se impor politicamente por manter a palavra dada, mas não se lhes consegue explicar em que é que consistem questões de princípio. André Ventura e os do Chega não os têm (princípios), mas a verdade é que eles também não. É por isso que, por muitas denúncias que façam, os eleitores acabam por não acreditar nas manobras para se demarcar daquela outra gente.
QUANDO DONALD TRUMP ABANDONOU A SUA ZONA DE CONFORTO...
(Republicação adaptada)
25 de Setembro de 2018. Por uma vez, Donald Trump foi à assembleia geral da ONU proferir um discurso diante de uma plateia que não estava preventivamente encenada para endossar incondicionalmente aquilo que ele dizia... e foi o que se viu. As suas gabarolices foram acolhidas com gargalhadas contidas... que explodiram ao primeiro pretexto. Houve quem comparasse o episódio com o do sapato de Khrushchev. Concedendo atenuantes ao sapato...
Etiquetas:
5º Aniversário,
Internacional
24 setembro 2023
O ALDRABÃO GASTRÓNOMO
O que a reportagem original da revista Sábado comprovou (título: Oeiras já pagou 139 mil euros em 1.441 "almoços de trabalho") é que Isaltino Morais saiu da Carregueira visivelmente magrinho e debilitado (como se vê abaixo), mas que também nitidamente mostrando pouco arrependimento quanto àquilo que fizera para lá ter ido parar (fraude fiscal, abuso de poder, corrupção passiva, conforme se recorda acima).
A habilidade de Isaltino Morais consistiu em reagir às acusações da Sábado desconversando, em jeito de paródia, com uma lista gastronómica. Nesse mesmo registo, vale a pena repegar na foto acima e ler a crónica do Inimigo Público da semana passada, para comprovar, por sua vez, que «O empadão de atum do refeitório da prisão da Carregueira» não seria assim tão bom quanto isso. Não lhe terá deixado saudades!
O facto de (continuar a) ser aldrabão não impede Isaltino Morais de possuir competências muito próprias. No vídeo acima, e como bom gastrónomo, ele explica - com propriedade - a maneira correcta de confeccionar uma alheira. Não lhe perguntaram, mas tenho a certeza que noutro tutorial ele poder-nos-ia explicar como abrir uma conta na Suíça em parceria com um parente qualquer só para fugir aos impostos.
E, para retomar o assunto e a notícia inicial (o aumento de afluência aos restaurantes oeirenses por causa disto tudo), nesse outro caso não seria surpreendente uma corrida de depósitos aos bancos suíços porque o Isaltino tinha explicado os truques.
E, para retomar o assunto e a notícia inicial (o aumento de afluência aos restaurantes oeirenses por causa disto tudo), nesse outro caso não seria surpreendente uma corrida de depósitos aos bancos suíços porque o Isaltino tinha explicado os truques.
A PROCLAMAÇÃO DA INDEPENDÊNCIA DA GUINÉ BISSAU COM A CAPITAL EM MEDINA DO BOÉ
A 24 de Setembro de 1973, em Madina do Boé, o PAIGC proclamou unilateralmente a independência da Guiné-Bissau, uma iniciativa ousada de desafio ao poder político e militar português, presente então na que considerava a sua província da Guiné com um contingente militar rondando entre 25 a 30.000 homens. Embora raramente se fale nisso nos dias que correm, ainda hoje permanece a controvérsia associada à verdadeira localização da cerimónia que assinalou aquela proclamação. Para a cerimónia foi convidada – e era indispensável que isso acontecesse para que ela produzisse o efeito desejado – a imprensa estrangeira que daria a devida cobertura e notoriedade à declaração unilateral. Do lado português comentava-se que a povoação de Madina do Boé, que o PAIGC identificou como aquela onde a cerimónia teria tido lugar, havia sido evacuada e que a cerimónia fora uma farsa. Mais do que deserta, sendo uma área desprovida de arvoredo e sobrevoada regularmente pela aviação portuguesa, teria sido muito difícil (no mínimo) deslocar e concentrar naquela povoação os meios humanos que se viam a participar na cerimónia. Décadas depois, a identificação do local (ver o princípio do video acima) terá passado para um mais rigoroso Lugajole, Boé*. A diferença de 40 km em linha recta (ver o mapa abaixo) era significativa embora ambas as duas partes tivessem razão: as cerimónias haviam tido lugar em território da Guiné, mas não na povoação. Para a coreografia montada pelo PAIGC se tornava importante que a proclamação tivesse tido lugar numa povoação que, a partir daquela data, passasse a constituir, ainda que virtualmente, a capital do estado recém proclamado.
Na prática, desprovido do valor simbólico que os entrevistados acima lhe atribuem, embora hoje o assunto seja relativamente irrelevante, o local das cerimónias foi um acampamento na mata que se montou e desmontou. O PAIGC nunca teria condições de defender convencionalmente um objectivo tão tentador para o inimigo quanto uma capital de localização que fosse conhecida por ele. O PAIGC tinha uma enorme capacidade de perturbar a administração colonial através da guerrilha, mas não tinha qualquer capacidade de instalar uma administração alternativa à dos portugueses. As consequências da manobra do ponto de vista político foram, contudo, espectaculares. Por exemplo, quatro dias depois, a proclamação aparecia na página 3 do New York Times (abaixo). E em consequência do interesse da imprensa norte-americana pelo tema, a imprensa dos restantes países ocidentais seguiu-a e a censura em Portugal deixou de tentar bloquear a cobertura do assunto pela nossa imprensa (mais abaixo), embora controlasse os conteúdos, evidentemente.
* Há ainda quem proponha um local para a realização da cerimónia ainda mais distante. Vendu Leidi, mesmo sobre a fronteira com a Guiné Conakry.
Etiquetas:
50º Aniversário,
Guiné-Bissau,
Informação,
Outros Tempos
23 setembro 2023
A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA SOCIAL ITALIANA
23 de Setembro de 1943. Benito Mussolini fora derrubado dois meses antes. O governo italiano que lhe sucedera rendera-se oficialmente aos Aliados duas semanas antes. Os alemães haviam ocupado o país e haviam resgatado Mussolini uma semana e meia antes. Este último fora instado pelos seus libertadores a constituir um novo governo fascista para a Itália que eles controlavam (ver mapa). O novo governo de Mussolini não passará de um embuste, uma instituição política que só subsistirá por se encontrar na órbita da Alemanha. Exemplo disso, embora a notícia acima apareça como emitida da capital, Roma, a maioria dos ministros e ministérios que Mussolini acabara de nomear irão alojar-se na pequena cidade nortenha de Salò, que emprestará o seu nome à designação oficiosa mais conhecida do novo regime: República de Salò.
Etiquetas:
80º Aniversário,
Itália,
Segunda Guerra Mundial
22 setembro 2023
DE ARREMESSADOR DE MICROFONES A ESPADACHIM DAS ARÁBIAS
Como disse o presidente Marcelo ainda outro dia, no Canadá, todos somos arremessadores de microfones, todos somos também, um poucochinho, espadachins das arábias...
JORNALISMO DE FICÇÃO
Destaque da primeira página do Correio da Manhã de hoje para uma sondagem que dá como estando «à frente na corrida a Belém» dois «corredores» (Passos Coelho e António Guterres) que não manifestaram, até agora, qualquer intenção de vir a «correr» na dita «corrida» e sobre os quais existem vários argumentos ponderosos para que não o venham a fazer sequer. Isto é o que se deve chamar ficção jornalística. Não há nenhum facto noticioso, é dar relevo a situações que nem sequer existem. Nem virão a existir, muito provavelmente. Em tese, há a vontade dos portugueses em escolher aqueles que consideram os seus melhores representantes. Mas também há que contar com a vontade daqueles poucos portugueses passíveis de serem escolhidos em se fazerem candidatos para aqueles mesmos cargos. E é preciso conjugar essas duas vontades para que haja tema. O que há neste caso é sobretudo a vontade dos jornalistas portugueses em irem ocupando espaço e tempo mediático antecipando assuntos que só virão a ter lugar daqui por quase dois anos e meio e com contornos que ainda não se conhecem. Isto é jornalismo? Não.
«O GORRO ATÉ AOS PÉS» E «A EXPLICAÇÃO QUE NÃO EXPLICA» NADA
Há cinco anos, e antecipando a recondução, dada como garantida, da procuradora Joana Marques Vidal as duas capas abaixo do jornal Expresso, de duas edições consecutivas, eram a demonstração de um «gorro enfiado até aos pés» a toda a comunicação social portuguesa. Nem em ocasião tão flagrante, os jornalistas deixam de tentar o expediente de fingir que nada aconteceu, insultando a inteligência e a memória dos seus clientes... As televisões e os jornais nunca o tentaram sequer, e o fiasco nunca foi explicado aos leitores, mas, por causa da sua reputação, o episódio tem um suspeito principal: Marcelo Rebelo de Sousa.
Etiquetas:
5º Aniversário,
Incompetência
21 setembro 2023
«AO VIVO DE NOVA IORQUE»: TRÊS MINUTOS E MEIO DE "CONVERSA PARA BOI DORMIR"
Há quatro meses havia sido notícia que Lula da Silva ficara "chateado" com Vladimir Zelensky porque "o tinha deixado pendurado" numa cimeira. Para Lula, será importante mostrar ao Mundo que Zelensky presta atenção ao que o brasileiro tem para dizer sobre a invasão da Ucrânia, e para Zelensky é importante mostrar que a importância que o ucraniano lhe dispensa é sofrível, é o mínimo acima do limiar da má educação. Os dois, para colmatar o episódio de há quatro meses, e para não ficarem com a fama de mal educados, encontraram-se agora em Nova Iorque. Só mesmo os media brasileiros (e alguns portugueses por arrasto) deram relevância prévia ao encontro. E escolhi este vídeo da CNN Brasil que me parece eloquentemente simbólico do quanto nada havia para noticiar. São três minutos e meio em que a repórter, «ao vivo de Nova Iorque», nada consegue dizer de substantivo sobre o conteúdo das conversações, deixando a suspeita que nada havia de importante para dizerem pessoalmente um ao outro - é aquilo que os brasileiros classificam como "uma conversa para boi dormir". Conversa tão oca que, mesmo em três minutos e meio, o boi adormece logo. Este género de jornalismo é mesmo uma merda de perda de tempo!
Etiquetas:
Brasil,
Informação,
Internacional,
Ucrânia
QUANDO O «VILÃO» DA HISTÓRIA DA BOMBA ATÓMICA AINDA NÃO O ERA...
21 de Setembro de 1953. A capa da revista Time exibe na sua primeira página Lewis Strauss, figura associada às pesquisas nucleares dos Estados Unidos e recentemente recuperada para a notoriedade como o vilão do filme Oppenheimer
«JOTINHAS (A)PARTIDÁRIOS» DE HÁ QUARENTA ANOS
Esta notícia abaixo de 21 de Setembro de 1983, refere-se às dificuldades encontradas por alguns dos escolhidos em serem eleitos para os órgãos para que haviam sido propostos originalmente pelos partidos políticos. Na eleição participavam os (então) 250 deputados, pediam-se maiorias qualificadas de ⅔ dos deputados presentes e o destaque da notícia vai para as dificuldades com que os antigos ministros Ângelo Correia e Vaz Portugal se estavam a deparar para a sua eleição para o Conselho Superior de Defesa Nacional e para o Conselho Nacional do Plano, respectivamente. Mas o que a notícia tem de interessante, quando lida a esta distância de quarenta anos, não se prende com essas figuras de maior grandeza da política de então, mas de outras, mais secundárias, que também tinham as suas dificuldades em que os deputados os elegessem para a composição do Conselho da Comunicação Social: Nandin de Carvalho, escolhido pelo PSD, Manuel Gusmão pelo PCP e... Paulo Portas pelo CDS. A presença do irrevogável futuro vice-primeiro-ministro neste elenco de potenciais conselheiros sobre comunicação social não deixa de ser surpreendente, e mesmo inexplicável, para quem se aperceber que, à data, Paulo Portas acabara de completar 21 anos e tinha uma experiência correspondente a essa idade como jornalista... E a função era fazer parte de um órgão intitulado Conselho da Comunicação Social. Indicado para ocupar o lugar pelo CDS. Se destaco este episódio, é para comprovar que o fenómeno do patrocínio ascensional acelerado de jotinhas dos partidos não é um fenómeno assim tão degenerado, que só ocorre nos tempos modernos, como Pacheco Pereira o costuma descrever. Embora aceite que, no caso de Portas, não se trate de um jotinha completamente convencional como o foi, por exemplo, Passos Coelho. Porém, e como se comprova, o fenómeno já existia há 40 anos, no tempo em que aquele mesmo Pacheco Pereira estava ainda em trânsito da extrema esquerda até ao PSD, onde só chegou em meados da década de 80. Andava noutra, preocupado com a sua própria carreira. Voltando à escolha de um jovem de 21 anos, dá-me que pensar sobre o que seria a robustez dos quadros do CDS liderado por Lucas Pires, ou que é seriam os patrocínios recebidos pelo próprio Portas, para que o partido se visse assim forçado a tomar a opção de escolher um puto como ele para ocupar aquele cargo. Porque, acreditar em jovens prometedores que desabrocham espontâneos, eu só conheço o Mozart, que era aliás uma criança prodígio...
Etiquetas:
40º Aniversário,
Política,
Sociedade
20 setembro 2023
O FURACÃO NIGEL 2
Mesmo que este outro furacão Nigel venha a atingir as ilhas britânicas, nunca conseguirá deixar o rasto de destruição que foi alcançado pelo seu homónimo Nigel (Farage) na sequência da forma como ele (e outros) conseguiu(ram) persuadir uma maioria da opinião pública do Reino Unido a votar a favor do Brexit, em Junho de 2016. O futuro veio demonstrar que ninguém ali fazia a mínima ideia como implementar aquilo que anunciavam como sendo a melhor solução para o Reino Unido: a saída da União Europeia. Concretizá-la saldou-se - e continua a saldar-se - por um fiasco e agora a habilidade consiste em responsabilizar outros e negar publicamente as consequências políticas, económicas e sociais da decisão. Comparado com o Nigel original, este furacão Nigel 2 não há de ser nada, apesar do mau aspecto da foto acima - a do lado esquerdo... A do lado direito é de um gajo perpetuamente contente consigo próprio.
CONVERSA ENTRE GEORGES SIMENON E IAN FLEMING (1963)
(Republicação)
Recentemente, e por duas coisas, tive ocasião de me referir a aventuras de James Bond, 007. Valerá o pretexto para invocar o seu criador, o britânico Ian Fleming, e uma interessante conversa que ele manteve há uns 60 anos, na única vez em que ele se encontrou com outro grande autor de literatura policial, o belga Georges Simenon, criador do Comissário Maigret. As intervenções de Fleming (à direita na fotografia abaixo) estão assinaladas a azul, as de Simenon (à esquerda) a vermelho e as minhas notas a preto e em itálico.
– Estou decepcionado. Pensava, até agora, que era o maior e, pela primeira vez, fui derrotado. Por um americano. (Fleming está a referir-se a Edward S. Aarons, um autor de ficção de espionagem norte-americano que, com o seu herói Sam Durell, o desalojara e a James Bond – pontualmente – do primeiro lugar entre as preferências naquele mercado. Hoje percebe-se que se tratava de uma insignificância: ninguém se lembra de Aarons, nem do seu herói)
– Joguei uma partida de golfe esta manhã mas, sempre que jogo, penso à noite: Por que errei aquele lance? E procuro descobrir o erro, que me leva quase uma hora de sono. No dia seguinte repito o lance mas sai ainda pior…
– Creio que nos tornámos demasiado conscientes. É pena. É preciso ser autómato, adquirir o senso da repetição. Considero o golfe um excelente meio de relaxamento.
– É o único desporto possível depois dos sessenta anos e como já os tenho…
– Pois eu tenho cinquenta e cinco.
– O senhor é um rapaz. (Fleming viria a morrer um ano depois…)
– Li os seus primeiros livros em 1939, numa viagem que fiz a Moscovo. Tinha parado em Amesterdão ou Haia. Na banca da estação havia uma verdadeira colecção daquelas belas capas que o senhor tinha então… capas fotográficas. Levei três ou quatro para Moscovo e adorei os seus romances. Portanto creio que, se não fossem as capas, não os teria comprado senão alguns anos depois. A capa, na minha opinião, é muito importante. Os editores sabem isso.
– Oh se sabem!... Preocupam-se enormemente com isso, sobretudo nos Estados Unidos. Estudam as capas, às vezes durante semanas e experimentam cinco, seis ou sete diferentes.
– Eles não lhe dão a oportunidade de as discutir?
– Sim, mas não me importo com isso. Na verdade, não me preocupo com o livro depois de terminado.
– É verdade? Não se preocupa com a apresentação nem com a impressão?
– Absolutamente.
– Pois eu dou muita importância a isso.
– O livro sai da minha vida quando deixo a minha casa em Épalinges. (este diálogo teve aí lugar, na casa que Simenon mandara construir perto de Lausanne na Suíça, onde se costumava refugiar para escrever as suas obras)
– Joguei uma partida de golfe esta manhã mas, sempre que jogo, penso à noite: Por que errei aquele lance? E procuro descobrir o erro, que me leva quase uma hora de sono. No dia seguinte repito o lance mas sai ainda pior…
– Creio que nos tornámos demasiado conscientes. É pena. É preciso ser autómato, adquirir o senso da repetição. Considero o golfe um excelente meio de relaxamento.
– É o único desporto possível depois dos sessenta anos e como já os tenho…
– Pois eu tenho cinquenta e cinco.
– O senhor é um rapaz. (Fleming viria a morrer um ano depois…)
– Li os seus primeiros livros em 1939, numa viagem que fiz a Moscovo. Tinha parado em Amesterdão ou Haia. Na banca da estação havia uma verdadeira colecção daquelas belas capas que o senhor tinha então… capas fotográficas. Levei três ou quatro para Moscovo e adorei os seus romances. Portanto creio que, se não fossem as capas, não os teria comprado senão alguns anos depois. A capa, na minha opinião, é muito importante. Os editores sabem isso.
– Oh se sabem!... Preocupam-se enormemente com isso, sobretudo nos Estados Unidos. Estudam as capas, às vezes durante semanas e experimentam cinco, seis ou sete diferentes.
– Eles não lhe dão a oportunidade de as discutir?
– Sim, mas não me importo com isso. Na verdade, não me preocupo com o livro depois de terminado.
– É verdade? Não se preocupa com a apresentação nem com a impressão?
– Absolutamente.
– Pois eu dou muita importância a isso.
– O livro sai da minha vida quando deixo a minha casa em Épalinges. (este diálogo teve aí lugar, na casa que Simenon mandara construir perto de Lausanne na Suíça, onde se costumava refugiar para escrever as suas obras)
– E as correcções? Quem faz as correcções dos seus livros? É o seu editor ou envia-as para sugestões?
– Não.
– Ninguém as faz?
– Não.
– Cometo por vezes erros estúpidos. Corrigem-nos por mim.
– O meu editor não tem autorização para mudar uma vírgula, nem mesmo de sugerir modificações.
– Para mim é indispensável, pois muitas vezes adquiro vícios: uma palavra, por exemplo, que uso em demasia. Neste momento atravesso uma fase má, pois emprego constantemente a palavra justamente. Estava justamente a cinco milhas…. Estava justamente a entrar para o carro. Não paro de usar a palavra.
– Tenho exactamente o mesmo vício, mas a palavra muda com o romance. Num livro emprego demais a palavra mas e, em outro, talvez. E gasto três dias a cortar todos os talvez…
– Tudo isso faço eu também constantemente. E faz-me descobrir certas coisas… Tenho no meu editor, William Flomer, um óptimo leitor. É um grande poeta e um homem extremamente gentil. Disse-me, há pouco tempo, que nunca uso o ponto de exclamação. No meu último livro, polvilhei-o de pontos de exclamação. E anteontem dedicaram-me um tópico no New York Times. Fleming é não só um escritor medíocre, disseram, mas tem ainda a mania pueril de empregar pontos de exclamação por toda a parte. Creio que um mínimo de assistência da parte de um bom leitor pode servir de auxílio. Quantas pessoas lêem os seus manuscritos antes de irem para a impressão?
– A minha mulher lê o que escrevo em cada dia mas não faz qualquer correcção. Nem comenta.
– Não.
– Ninguém as faz?
– Não.
– Cometo por vezes erros estúpidos. Corrigem-nos por mim.
– O meu editor não tem autorização para mudar uma vírgula, nem mesmo de sugerir modificações.
– Para mim é indispensável, pois muitas vezes adquiro vícios: uma palavra, por exemplo, que uso em demasia. Neste momento atravesso uma fase má, pois emprego constantemente a palavra justamente. Estava justamente a cinco milhas…. Estava justamente a entrar para o carro. Não paro de usar a palavra.
– Tenho exactamente o mesmo vício, mas a palavra muda com o romance. Num livro emprego demais a palavra mas e, em outro, talvez. E gasto três dias a cortar todos os talvez…
– Tudo isso faço eu também constantemente. E faz-me descobrir certas coisas… Tenho no meu editor, William Flomer, um óptimo leitor. É um grande poeta e um homem extremamente gentil. Disse-me, há pouco tempo, que nunca uso o ponto de exclamação. No meu último livro, polvilhei-o de pontos de exclamação. E anteontem dedicaram-me um tópico no New York Times. Fleming é não só um escritor medíocre, disseram, mas tem ainda a mania pueril de empregar pontos de exclamação por toda a parte. Creio que um mínimo de assistência da parte de um bom leitor pode servir de auxílio. Quantas pessoas lêem os seus manuscritos antes de irem para a impressão?
– A minha mulher lê o que escrevo em cada dia mas não faz qualquer correcção. Nem comenta.
– A minha mulher também lê os meus livros e da mesma maneira também não me diz nada e isso atormenta-me.
– Não me separo dos meus manuscritos. Quando estão corrigidos, em vez de dactilografá-los, são fotocopiados, e são as fotocópias que vão para o editor. Assim o manuscrito não me sai de casa. Prefiro pequenos erros a uma correcção impessoal.
– Mas o senhor tem um francês maravilhoso. Leio os seus livros em francês sempre que posso. O senhor tem um dos mais belos estilos que conheço na Língua francesa.
– Alguns críticos franceses acham que não tenho estilo nenhum! E têm razão, pois durante quarenta anos procurei evitar tudo o que cheire a literatura. Tento ser simples.
– O senhor sempre foi simples. Tenho a impressão de que, digamos em cem anos, será um dos grandes autores clássicos franceses. Sempre sustentei isso. O senhor será o Balzac de…
– Para mim será o mesmo, porque já não estarei vivo…
– O senhor escreveu romances de verdade. Todos os seus livros são romances de suspence, enquanto eu escrevo coisa diferente, acção sem psicologia – salvo o bandido, que às vezes exige psicologia para explicar porque é mau. Mas não procuro marcar os meus personagens em profundidade, como o senhor. Não li toda a sua obra, apenas cerca de cinquenta livros.
– Sei aquilo que o senhor escreve mas, para ser sincero, nunca li coisa alguma, por uma boa razão: aos vinte e cinco anos decidi não ler mais romances. Não li mais nenhum desde 1928. Nenhum. Tenho, no entanto, muitos amigos que são escritores. Mandam-me livros com dedicatórias. Mas conheço os seus livros pelas críticas, e por isso conheço-os bem.
– Já escreveu alguma coisa sobre a Suíça?
– Não. Raramente escrevo sobre a região em que vivo. Preciso esperar o momento de fazê-lo. Foi necessário deixar passar quase seis ou sete anos, por exemplo, para escrever sobre os Estados Unidos. O senhor está em Traflagar Square ou nos Campos Elíseos. Procure descrevê-los, por exemplo, em cem palavras. Impossível. Encontrará detalhes demais. Escreverá três páginas em vez de cem palavras. Mas se está no Tanganica a sonhar com um copo de cerveja em Traflagar Square ou nos Campos Elíseos, dirá o essencial em duas frases. E é por isso que prefiro conservar-me distante do campo de acção.
– Muito justo. Escrevo todos os meus livros na Jamaica. Não consigo praticamente escrever noutro lugar – porque há um vazio e eu só posso escrever nesse vazio. Não posso fazê-lo em Inglaterra – a vida que levo ali simplesmente não me permite. Os meus amigos não se interessam pelo que escrevo. Pensam que posso fabricar livros em cinco minutos e que, de qualquer modo, não é literatura. E isso não merece nenhuma simpatia.
– Aqui, corto todo o contacto com o exterior quando trabalho num romance. Ninguém vem, nem mesmo parentes, e eu não vou à cidade nem à aldeia. Passeio pelo jardim, conto os passos e sei quantos quilómetros ando por dia para tomar ar.
– Quanto dura isso?
– Depende do tamanho do romance. Mas não é só isso. Depende também se escrevo um livro à razão de um capítulo por dia ou se, como fiz no último, escrevo num dia o capítulo à mão e passo-o a limpo, no dia seguinte, à máquina. Para alguns livros, escrevo um capítulo à mão na parte da tarde e passo-o à máquina, às seis horas da manhã seguinte. Chamo a isso escrever um livro em duas sessões, por dia. Mas, alguns romances, escrevo-os à mão de manhã e de tarde – à razão de um só capítulo – e bato-os à máquina no dia seguinte, o que me toma o dobro do tempo. Um romance a duas sessões toma-me entre oito e onze dias, e um romance numa sessão, cerca de vinte e dois a vinte e quatro dias. A revisão requer de três dias a uma semana. Detesto a revisão.
– Esse trabalho não me aborrece muito. Sei que o livro está terminado, a obra pronta, e então posso ter prazer em reler.
– Acho lamentável ter de ler os meus livros. Tenho a impressão de que não têm qualquer interesse e que ninguém os vai ler. É tudo tão aborrecido, tão confuso, tão pouco concludente! Detesto ter de fazer a revisão.
– Pois eu chego directamente à máquina e não olho para trás antes de chegar ao fim da página. De contrário, ficaria tão horrorizado enquanto escrevia, acharia tudo aquilo um palavreado tão pavoroso, que seria incapaz de continuar. Perderia logo a cadência se fosse corrigir o que tivesse escrito na véspera.
– Compreendo. Deixo isso sempre para mais tarde. Trabalho até o livro estar acabado. Por isso, gosto da máquina de escrever: não se volta atrás e conserva o ritmo. O senhor falava de estilo ainda há pouco. Acho que o ritmo é a definição do estilo. O estilo vem do ritmo, como na música ou na pintura. É uma questão de ritmo, de cor. Se escrevemos e voltamos atrás, perde-se o ritmo.
– E perdemos a cadência. Acho a cadência muito importante. Creio que nos livros que encerram algum mistério os leitores querem ir sempre para diante. Não querem parar de repente para perguntar o que faz o herói ou por que o faz.
– Sim, é ainda mais importante no género de livros que o senhor escreve do que nos meus.
– Quantos anos tem Maigret?
– Não tem idade. Nos meus romances continua com os seus cinquenta e três anos. Quando comecei, há trinta anos, tinha cinquenta e cinco. Gostaria de envelhecer aos poucos também. Seria maravilhoso. Quando comecei, eu tinha vinte e cinco e ele está sempre com cinquenta e três.
– Bond tem cerca de trinta e cinco anos. Infelizmente, tive de noticiar a sua morte para o meu próximo livro. (You Only Live Twice) Oh! Era apenas uma morte prematura, mas fui obrigado a revelar alguns factos que o situam entre os trinta e oito ou tinta e nove anos de idade. Tive essa dificuldade para lhe dar uma idade precisa. O senhor pensa em continuar Maigret?
– Muito raramente. Como o senhor sabe, escrevi dezoito livros sobre Maigret, um após outro, só para aprender como se escreve um romance. Um dia parei e disse: acabou-se. E então escrevi romances de verdade. Mas, sete anos mais tarde, recebi tantas cartas que resolvi retomá-lo, para me divertir. E como o senhor sabe, há muito tempo inútil entre dois romances. Resolvi então escrever mais ou menos um Maigret por ano. Questão de sentimentalismo. De exercício também.
– A sua ambição é escrever um grande romance?
– Não um grande romance literário. Um grande romance, simplesmente.
– Não quer escrever qualquer coisa como Guerra e Paz?
– Não. E o senhor?
- Eu não tenho a menor ambição de fazer um grande romance. Quando esgotar James Bond, creio que paro de escrever. Estou quase no fim da carreira.
– Para mim seria muito divertido viver sem escrever.
– Na realidade, para mim também seria.
– Quando passo dois meses sem escrever quase fico doente. Perco a confiança em mim mesmo. Sinto-me sem raízes, completamente perdido.
– O senhor tem a impressão de estar a progredir à medida que escreve?
– Não sou muito ambicioso mas, em cada romance, sinto que aprendi alguma coisa. Ou me aproximo de uma meta colocada um pouco mais além do que a que existia quando escrevia o romance anterior. O meu problema é encontrar uma história cada vez menos artificial, menos cheia de aventuras e de ideias convencionais, para penetrar mais profundamente na carne do homem. Tal o meu objectivo mas, em certo sentido, ele é inacessível. Não sou Deus e portanto…
– Acha necessário encontrar muitas pessoas, tem necessidade de procurar muito, para entrar mais em contacto com a vida, para escrever mais sobre a vida?
– Actualmente não. Vejo poucas pessoas. Sirvo-me da lembrança das que já encontrei. Vejo-as de longe, agora. Aprendo mais sobre o homem com os meus filhos do que com as crianças que vêm cá a casa. Todas as crianças nos ensinam muita coisa.
– E rejuvenescem-nos também, porque nelas vimos muito da nossa própria mocidade.
– Para mim, o romancista completo é aquele que percorre toda a existência. Aos vinte anos, por exemplo, exprime ideias sobre a vida de um jovem de vinte anos. Mas aos trinta anos, ainda que conserve a mesma personagem, a mesma situação, tem-se um livro completamente diferente. A mesma coisa aos quarenta e aos cinquenta, aos sessenta e aos setenta anos. É por isso que Goethe é tão grande: percorreu uma existência.
– Sim, creio que Goethe é o único homem completo da História. Não se pode ver um erro nele. Pretendem os psicólogos que a maioria dos génios sofreu de alguma perturbação ou de deformidades físicas. Beethoven era surdo. Há outros exemplos. Mas nada de semelhante se pode encontrar em Goethe. Tinha uma saúde perfeita. Viveu muito. A sua vida sexual era normal. Interessou-se por mil coisas, inclusive pela polinização das flores…
– …e estudou também o olho e tudo.
– Já escreveu uma peça de teatro?
– Não, escrevi uma peça, mas tirada de um dos meus romances.
– E foi representada?
– Sim, na França, na Inglaterra, na América. Mas foi há catorze anos. Não me sinto atraído pelo teatro.
– E pelo cinema? Já pensou em escrever para cinema?
– Nunca cuidei disso. A minha mulher vende os direitos dos meus livros e nunca vejo os produtores e os actores.
– Isso também não me interessa. Consultam-me, dou a minha opinião durante o café, por exemplo, e é tudo.
– Nem vou ver os filmes tirados dos meus livros. (é mentira: em As Memórias de Maigret, Simenon põe Maigret a apreciar o trabalho dos actores que o interpretaram...)
– Viu algum dos filmes de TV inspirados nos seus livros e que estão a passar na Inglaterra? (série da BBC, 1960-63)
– Não me separo dos meus manuscritos. Quando estão corrigidos, em vez de dactilografá-los, são fotocopiados, e são as fotocópias que vão para o editor. Assim o manuscrito não me sai de casa. Prefiro pequenos erros a uma correcção impessoal.
– Mas o senhor tem um francês maravilhoso. Leio os seus livros em francês sempre que posso. O senhor tem um dos mais belos estilos que conheço na Língua francesa.
– Alguns críticos franceses acham que não tenho estilo nenhum! E têm razão, pois durante quarenta anos procurei evitar tudo o que cheire a literatura. Tento ser simples.
– O senhor sempre foi simples. Tenho a impressão de que, digamos em cem anos, será um dos grandes autores clássicos franceses. Sempre sustentei isso. O senhor será o Balzac de…
– Para mim será o mesmo, porque já não estarei vivo…
– O senhor escreveu romances de verdade. Todos os seus livros são romances de suspence, enquanto eu escrevo coisa diferente, acção sem psicologia – salvo o bandido, que às vezes exige psicologia para explicar porque é mau. Mas não procuro marcar os meus personagens em profundidade, como o senhor. Não li toda a sua obra, apenas cerca de cinquenta livros.
– Sei aquilo que o senhor escreve mas, para ser sincero, nunca li coisa alguma, por uma boa razão: aos vinte e cinco anos decidi não ler mais romances. Não li mais nenhum desde 1928. Nenhum. Tenho, no entanto, muitos amigos que são escritores. Mandam-me livros com dedicatórias. Mas conheço os seus livros pelas críticas, e por isso conheço-os bem.
– Já escreveu alguma coisa sobre a Suíça?
– Não. Raramente escrevo sobre a região em que vivo. Preciso esperar o momento de fazê-lo. Foi necessário deixar passar quase seis ou sete anos, por exemplo, para escrever sobre os Estados Unidos. O senhor está em Traflagar Square ou nos Campos Elíseos. Procure descrevê-los, por exemplo, em cem palavras. Impossível. Encontrará detalhes demais. Escreverá três páginas em vez de cem palavras. Mas se está no Tanganica a sonhar com um copo de cerveja em Traflagar Square ou nos Campos Elíseos, dirá o essencial em duas frases. E é por isso que prefiro conservar-me distante do campo de acção.
– Muito justo. Escrevo todos os meus livros na Jamaica. Não consigo praticamente escrever noutro lugar – porque há um vazio e eu só posso escrever nesse vazio. Não posso fazê-lo em Inglaterra – a vida que levo ali simplesmente não me permite. Os meus amigos não se interessam pelo que escrevo. Pensam que posso fabricar livros em cinco minutos e que, de qualquer modo, não é literatura. E isso não merece nenhuma simpatia.
– Aqui, corto todo o contacto com o exterior quando trabalho num romance. Ninguém vem, nem mesmo parentes, e eu não vou à cidade nem à aldeia. Passeio pelo jardim, conto os passos e sei quantos quilómetros ando por dia para tomar ar.
– Quanto dura isso?
– Depende do tamanho do romance. Mas não é só isso. Depende também se escrevo um livro à razão de um capítulo por dia ou se, como fiz no último, escrevo num dia o capítulo à mão e passo-o a limpo, no dia seguinte, à máquina. Para alguns livros, escrevo um capítulo à mão na parte da tarde e passo-o à máquina, às seis horas da manhã seguinte. Chamo a isso escrever um livro em duas sessões, por dia. Mas, alguns romances, escrevo-os à mão de manhã e de tarde – à razão de um só capítulo – e bato-os à máquina no dia seguinte, o que me toma o dobro do tempo. Um romance a duas sessões toma-me entre oito e onze dias, e um romance numa sessão, cerca de vinte e dois a vinte e quatro dias. A revisão requer de três dias a uma semana. Detesto a revisão.
– Esse trabalho não me aborrece muito. Sei que o livro está terminado, a obra pronta, e então posso ter prazer em reler.
– Acho lamentável ter de ler os meus livros. Tenho a impressão de que não têm qualquer interesse e que ninguém os vai ler. É tudo tão aborrecido, tão confuso, tão pouco concludente! Detesto ter de fazer a revisão.
– Pois eu chego directamente à máquina e não olho para trás antes de chegar ao fim da página. De contrário, ficaria tão horrorizado enquanto escrevia, acharia tudo aquilo um palavreado tão pavoroso, que seria incapaz de continuar. Perderia logo a cadência se fosse corrigir o que tivesse escrito na véspera.
– Compreendo. Deixo isso sempre para mais tarde. Trabalho até o livro estar acabado. Por isso, gosto da máquina de escrever: não se volta atrás e conserva o ritmo. O senhor falava de estilo ainda há pouco. Acho que o ritmo é a definição do estilo. O estilo vem do ritmo, como na música ou na pintura. É uma questão de ritmo, de cor. Se escrevemos e voltamos atrás, perde-se o ritmo.
– E perdemos a cadência. Acho a cadência muito importante. Creio que nos livros que encerram algum mistério os leitores querem ir sempre para diante. Não querem parar de repente para perguntar o que faz o herói ou por que o faz.
– Sim, é ainda mais importante no género de livros que o senhor escreve do que nos meus.
– Quantos anos tem Maigret?
– Não tem idade. Nos meus romances continua com os seus cinquenta e três anos. Quando comecei, há trinta anos, tinha cinquenta e cinco. Gostaria de envelhecer aos poucos também. Seria maravilhoso. Quando comecei, eu tinha vinte e cinco e ele está sempre com cinquenta e três.
– Bond tem cerca de trinta e cinco anos. Infelizmente, tive de noticiar a sua morte para o meu próximo livro. (You Only Live Twice) Oh! Era apenas uma morte prematura, mas fui obrigado a revelar alguns factos que o situam entre os trinta e oito ou tinta e nove anos de idade. Tive essa dificuldade para lhe dar uma idade precisa. O senhor pensa em continuar Maigret?
– Muito raramente. Como o senhor sabe, escrevi dezoito livros sobre Maigret, um após outro, só para aprender como se escreve um romance. Um dia parei e disse: acabou-se. E então escrevi romances de verdade. Mas, sete anos mais tarde, recebi tantas cartas que resolvi retomá-lo, para me divertir. E como o senhor sabe, há muito tempo inútil entre dois romances. Resolvi então escrever mais ou menos um Maigret por ano. Questão de sentimentalismo. De exercício também.
– A sua ambição é escrever um grande romance?
– Não um grande romance literário. Um grande romance, simplesmente.
– Não quer escrever qualquer coisa como Guerra e Paz?
– Não. E o senhor?
- Eu não tenho a menor ambição de fazer um grande romance. Quando esgotar James Bond, creio que paro de escrever. Estou quase no fim da carreira.
– Para mim seria muito divertido viver sem escrever.
– Na realidade, para mim também seria.
– Quando passo dois meses sem escrever quase fico doente. Perco a confiança em mim mesmo. Sinto-me sem raízes, completamente perdido.
– O senhor tem a impressão de estar a progredir à medida que escreve?
– Não sou muito ambicioso mas, em cada romance, sinto que aprendi alguma coisa. Ou me aproximo de uma meta colocada um pouco mais além do que a que existia quando escrevia o romance anterior. O meu problema é encontrar uma história cada vez menos artificial, menos cheia de aventuras e de ideias convencionais, para penetrar mais profundamente na carne do homem. Tal o meu objectivo mas, em certo sentido, ele é inacessível. Não sou Deus e portanto…
– Acha necessário encontrar muitas pessoas, tem necessidade de procurar muito, para entrar mais em contacto com a vida, para escrever mais sobre a vida?
– Actualmente não. Vejo poucas pessoas. Sirvo-me da lembrança das que já encontrei. Vejo-as de longe, agora. Aprendo mais sobre o homem com os meus filhos do que com as crianças que vêm cá a casa. Todas as crianças nos ensinam muita coisa.
– E rejuvenescem-nos também, porque nelas vimos muito da nossa própria mocidade.
– Para mim, o romancista completo é aquele que percorre toda a existência. Aos vinte anos, por exemplo, exprime ideias sobre a vida de um jovem de vinte anos. Mas aos trinta anos, ainda que conserve a mesma personagem, a mesma situação, tem-se um livro completamente diferente. A mesma coisa aos quarenta e aos cinquenta, aos sessenta e aos setenta anos. É por isso que Goethe é tão grande: percorreu uma existência.
– Sim, creio que Goethe é o único homem completo da História. Não se pode ver um erro nele. Pretendem os psicólogos que a maioria dos génios sofreu de alguma perturbação ou de deformidades físicas. Beethoven era surdo. Há outros exemplos. Mas nada de semelhante se pode encontrar em Goethe. Tinha uma saúde perfeita. Viveu muito. A sua vida sexual era normal. Interessou-se por mil coisas, inclusive pela polinização das flores…
– …e estudou também o olho e tudo.
– Já escreveu uma peça de teatro?
– Não, escrevi uma peça, mas tirada de um dos meus romances.
– E foi representada?
– Sim, na França, na Inglaterra, na América. Mas foi há catorze anos. Não me sinto atraído pelo teatro.
– E pelo cinema? Já pensou em escrever para cinema?
– Nunca cuidei disso. A minha mulher vende os direitos dos meus livros e nunca vejo os produtores e os actores.
– Isso também não me interessa. Consultam-me, dou a minha opinião durante o café, por exemplo, e é tudo.
– Nem vou ver os filmes tirados dos meus livros. (é mentira: em As Memórias de Maigret, Simenon põe Maigret a apreciar o trabalho dos actores que o interpretaram...)
– Viu algum dos filmes de TV inspirados nos seus livros e que estão a passar na Inglaterra? (série da BBC, 1960-63)
– Vieram até aqui para me mostrarem dois e gostei muito.
– Muito bem feitos.
– Sim.
– O actor é bom.
– Muito bom. Rupert Davies. Veio visitar-me.
– Consideram-no excelente em Inglaterra.
– Certamente cada leitor faz uma ideia própria da personagem. É por isso que são sempre contraproducentes os livros com ilustrações porque não correspondem ao que o leitor imagina.
– O senhor dá importância aos críticos?
– Não. A minha mulher mostra-me, às vezes, um ou dois artigos, e é só. Não os leio.
– A mim interessam-me tanto os maus artigos como os bons. Às vezes encontra-se alguém que elogia e nós sentimo-nos satisfeitos. Mas os maus artigos interessam da mesma maneira, porque muitas vezes levantam uma crítica legítima e aproveito para lê-los. Avalio as minhas obras com bastante humildade.
– Muito bem feitos.
– Sim.
– O actor é bom.
– Muito bom. Rupert Davies. Veio visitar-me.
– Consideram-no excelente em Inglaterra.
– Certamente cada leitor faz uma ideia própria da personagem. É por isso que são sempre contraproducentes os livros com ilustrações porque não correspondem ao que o leitor imagina.
– O senhor dá importância aos críticos?
– Não. A minha mulher mostra-me, às vezes, um ou dois artigos, e é só. Não os leio.
– A mim interessam-me tanto os maus artigos como os bons. Às vezes encontra-se alguém que elogia e nós sentimo-nos satisfeitos. Mas os maus artigos interessam da mesma maneira, porque muitas vezes levantam uma crítica legítima e aproveito para lê-los. Avalio as minhas obras com bastante humildade.
...OUTRA ONDA
Depois de ontem ter aqui publicado uma onda a enrolar-se, embora feita de rocha, hoje é dia de uma outra onda, na mesma fase, mas esta genuína. A fotografia é de Anthony Friedkin.
UM QUADRO QUE NOS DIZ MUITO MAIS SOBRE A MOÇÃO DE CENSURA DO CHEGA DO QUE MUITA PROSA IRRELEVANTE
Se as contas do quadro estiverem certas, então houve dois deputados do Chega que faltaram à votação da sua própria moção de censura, já que o partido conta com 12 parlamentares eleitos. Houve também um outro ausente na Iniciativa Liberal (8). E ainda dois na bancada socialista (120). Mas os recordistas em faltas de comparência foram mesmo os 15 deputados ausentes do PSD (77). Não consigo explicar a atitude dos primeiros, os do Chega. E presta-se à especulação a razão de tantas ausências entre os últimos, os do PSD.
Adenda: A sério? No Diário de Notícias preferem não dar qualquer destaque jornalístico ao facto de dois deputados do Chega não terem estado presentes no parlamento precisamente no dia em que o seu partido apresentava uma moção de censura? Não acharam estranho? Procuraram uma explicação para as duas ausências ou nem se incomodaram, porque as acharam triviais? E preferem, em alternativa, concentrarem-se no assunto seguinte da agenda (que, por acaso, dá mais jeito ao governo...), e destacarem as ausências na bancada do PSD? Têm instruções para não arrear com muita força no Chega, é?
19 setembro 2023
A LIBERTAÇÃO DOS PRISIONEIROS QUE NINGUÉM SABIA PRESOS
Não se pode dizer que a questão dos prisioneiros norte-americanos que estavam detidos no Irão fosse um assunto com presença destacada no noticiário internacional. E percebe-se a delicadeza da negociação para a sua libertação, obrigada a preservar essa discrição. O que me parece completamente despropositado é o contraste da atitude que os media haviam mantido - e bem - até agora com estas celebrações pela sua libertação que põem as audiências perante a circunstância de não saber muito bem o que se está a celebrar como um grande sucesso. Tanto mais que, dos cinco americanos que foram libertados, apenas três estão a ser identificados, os outros dois permanecem incógnitos por razões que, no meio de tanta efusividade, ninguém se incomoda a perguntar nem a esclarecer. Se o objectivo da notícia é querer que se embarque no regozijo por se ter alcançado tal resultado, para celebrar a vitória com esta veemência teria sido melhor ter dado outra notoriedade ao jogo enquanto ele decorria... Assim, fica com aspecto de Carnaval fora de época.
Etiquetas:
Inanidades,
Informação,
Internacional
«WAVE ROCK»
Esta fotografia data de Setembro de 1963 e mostra uma curiosa formação rochosa (wave rock: onda rochosa) existente numa pequena povoação a 300 km a Leste da cidade de Perth, a capital da Austrália Ocidental. Como se percebe, a onda é gigante: tem 15 metros de altura e estende-se por mais de 100 metros. Apesar da espectacularidade, a sua localização remota condiciona muito o fluxo de turistas que atrai: pouco mais de 100.000 por ano.
Etiquetas:
60º Aniversário,
Austrália,
Fotografia
18 setembro 2023
AS «PRODIGIOSAS» CAPACIDADES QUE OS SATÉLITES ESPIÕES NÃO TÊM - APESAR DAS TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO
A história original conta-se em poucas linhas. Na tarde de Domingo, um piloto norte-americano que realizava um voo que se supõe ser de rotina, teve que se ejectar, por causas não divulgadas. O aparelho, que descolara de uma base no estado da Carolina do Sul, pertencia ao Corpo de Fuzileiros, e estes agora desconhecem o local onde a aeronave se despenhou. Daí terem lançado um apelo público, já que se tratava de um F-35B, o avião de combate mais caro do mundo, avaliado em cerca de €166 milhões a unidade! Mais do que o seu custo, a importância da recuperação da aeronave inclui sobretudo a questão da preservação das tecnologias que a equipa. Mas tudo isto é o óbvio desta história.
Porque há que recuperar dela também (e sobretudo) o desmentido de um mito muito propalado: a de que há satélites espiões a controlar todos os recantos do planeta e de que dificilmente há algo que se passa que escape a certos níveis de gestão de informação (nomeadamente dos Estados Unidos!). Fosse isso verdadeiro e nenhuma justificação haveria para esta notícia. Porque o trajecto do avião acidentado teria sido monitorizado e, provavelmente, a sua recuperação ter-se-ia processado secretamente, pois não se pode acreditar que seja de bom grado que no Corpo de Fuzileiros dos Estados Unidos (USMC) dêem a bandeira de confessar que perderam um avião e, ainda por cima, admitirem que não sabem onde é que os destroços estão...
Subscrever:
Mensagens (Atom)