19 junho 2008

KLIMENT VOROSHILOV, A INCOMPETÊNCIA EM LUGAR DE DESTAQUE

Há figuras históricas que são tão más, que ninguém se dá ao trabalho de as recuperar. Mau neste caso tem um significado mais vasto do que o moral. Há livros sobre Hitler ou Staline que os condenam inapelavelmente como pessoas mas que lhes reconhecem competência como profissionais. Aliás, não é em vão que ambos mantiveram os seus cargos até ao fim das suas vidas. O conceito de mau a que me refiro acima é feito de uma combinação de maldade com mediocridade, como acontece, por exemplo, com a imagem que ficou para a posterioridade dos imperadores romanos Calígula, Nero ou Cómodo. E ao afirmar-se que Kliment Voroshilov é mau, é um mau medíocre, tal como eles.

Kliment Voroshilov foi um Marechal da União Soviética, proeminente mas não importante durante todo o período do stalinismo. Nascido em 1881 na Ucrânia e de origem humilde, com muito pouca educação formal – o próprio confessava que tinha apenas dois anos de escolaridade (embora o fizesse numa época em que era vantajoso apresentar pergaminhos proletários) – veio a tornar-se num revolucionário profissional dos quadros do Partido Social-Democrata russo, tendo participado nos seus Congressos de 1906 (Estocolmo) e 1907 (Londres), onde conheceu Lenine e Staline. As suas relações com o segundo iriam desempenhar um papel crucial na sua futura carreira.
Em 1917, Voroshilov era o exemplo do militante dedicado mas tinha pouca formação escolar e era estúpido; compensava isso com uma inquestionável coragem física e foi assim que, sem qualquer preparação militar prévia, acabou como comandante do novo exército proletário. Foi sob o seu comando (genuinamente, porque Voroshilov seguia à frente das suas tropas) que as cargas da cavalaria vermelha conquistaram a estratégica cidade de Tsaritsyn no rio Don, as glórias do feito recaíram sobre o comissário político local (Staline), a cidade veio depois a receber o seu nome, Stalinegrado, e Kliment Voroshilov passou a receber um apadrinhamento político para o resto da sua vida.

A verdade é que o percurso restante de Voroshilov durante a Guerra Civil (1917-22) é uma luta constante contra o princípio de Peter. Quanto mais o Exército Vermelho aumentava e se sofisticava, mais se notavam as insuficiências de Voroshilov para os cargos para que era promovido. Mesmo assim, a protecção política de EStaline sempre se manteve e, para além de ter sido nomeado Comissário (ministro) para a Guerra em 1925, foi um dos cinco primeiros Marechais da União Soviética (acima, ao centro) em 1935. Mas também foi um dos dois daqueles cinco que conseguiram sobreviver às Grandes Purgas que abalaram a União Soviética durante a segunda metade dessa década*
Staline podia permitir-se o luxo de mostrar toda a gratidão a quem, manifestamente, não tinha envergadura intelectual para lhe fazer sombra. Era a única pessoa viva a que Staline permitia um pequeno culto de personalidade que rivalizasse com o seu, mas apenas dentro da instituição militar: para além de uma classe de blindados baptizados com o seu nome, Iosif Stalin (abreviado para IS), havia uma outra classe denominada KV, de acordo com as iniciais do Marechal (acima)… O pior eram os desempenhos do Comissário para a Guerra quando havia mesmo guerra… Colocado à frente da invasão soviética à Finlândia no inverno de 1939-40, a iniciativa revelou-se um fiasco total.

Mais tarde, depois do começo da Operação Barbarosa em Junho de 1941, o comando de Voroshilov na Frente de Leninegrado tornou a revelar-se um outro fiasco monumental, que nem mesmo o pormenor folclórico de ter comandado pessoalmente um contra-ataque contra blindados alemães armado apenas da sua pistola regulamentar pôde disfarçar. O Marechal passou o resto da guerra ocupando postos honoríficos enquanto as vicissitudes da Guerra iam criando novos Marechais por força do mérito que iam demonstrando no comando de operações. No fim da Guerra, a União Soviética contava com vários Marechais-heróis, mas Voroshilov era considerado um daqueles Marechais políticos, de fachada.
Foi a esse título que ele se tornou útil depois da morte de Staline (1953), ao apoiar a facção que afastou Beria e conquistou o poder. Mas pouco mais tarde, na sequência do XX Congresso do PCUS (1956), vamos encontrá-lo no campo dos opositores a Khrushchev, que se veio a servir depois dele como uma espécie de tambor para bater durante o XXII Congresso (1961), para demonstrar tudo o que de mal houvera durante a época stalinista. Recuperado depois durante o período Brejnev (1966), Kliment Voroshilov veio a falecer como um clássico membro da gerontocracia soviética em 1969, com 88 anos, estúpido mas dedicado como sempre fora. Um genuíno Forrest Gump soviético.

* Nessas purgas, além de 3 dos 5 Marechais, desapareceram 15 dos 16 Comandantes de Exército, 60 dos 67 Comandantes de Corpo de Exército, 136 dos 169 Comandantes de Divisão e 221 dos 397 Comandantes de Brigada, e entre as patentes da Armada, todos os 4 Almirantes, todos os 6 Vice-Almirantes e 9 dos 15 Contra-Almirantes.

5 comentários:

  1. Gostei! Sobretudo dessa parte do "estúpido mas dedicado". Sucesso garantido.

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  2. Conheço uma data de KV ...
    Medram ... E como realça a donagata o sucesso é garantido.
    :)

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  3. Ora aqui está mais um digno representante de uma qualquer brigada do reumático, curvado ao peso das condecorações.

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  4. Na Rússia, Klim ainda é muito conhecido, respeitado e admirado.

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  5. Quanto a este último comentário, gostaria de retorquir que, na Rússia, havendo 145 milhões de russos, com certeza há quem pense tudo e o seu contrário, por muito disparatado que seja...

    Autores de referência que, depois de 1991, tenham avaliado o desempenho militar de Kliment Voroshilov de forma favorável é que são mais difíceis de encontrar, ao contrário do que acontece com outros Marechais da União Soviética...

    Bem pelo contrário, as críticas a seu respeito são severíssimas... Mas quererá o comentador que se assina Tenente Sudoplatov ilustrar-nos com essas fontes?...

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