01 junho 2008

A ESSÊNCIA DAS COISAS

Frank Capra (1897-1991) contar-se-á entre os mais bem sucedidos realizadores de cinema norte-americanos, no figurino de produção dos estúdios, modelo Hollywood, tendo sido seis vez nomeado para os Óscares e vencido por três (1934, 1936 e 1938) na categoria de realizador. Tanto ou mais relevante do que isso, Frank Capra foi o realizador d´O Filme de Natal por excelência: Do Céu caiu uma Estrela (It's a Wonderful Life, abaixo no original), datado de 1946 e estrelado por James Stewart.
Todavia, é quase desconhecida a primeira fase da carreira de Frank Capra, ainda durante os anos 20 e a época do cinema mudo, onde ele se estreou a realizar um dos filmes de maior sucesso dessa época, The Strong Man (1926), uma comédia protagonizada por uma das principais vedetas cómicas do cinema mudo de então e que, como Buster Keaton ou Harold Lloyd, viria a ser cilindrado com o aparecimento do cinema sonoro. Chamava-se Harry Langdon e hoje é um nome muito discreto da história do cinema.

The Strong Man tem uma cena de antologia, onde Harry tem de carregar uma rapariga aparentemente desmaiada (não por acaso, é a má da fita…) por umas intermináveis escadas de caracol acima, onde nem sequer se lhes vê o fim… E é do carácter do herói que ele se preste a fazer isso, sim senhor, mas da maneira que lhe dê o menor cansaço possível (à alentejana, diríamos nós…). Paulatinamente, vai-a carregando às arrecuas, sentando-se um bocadinho em cada um dos degraus da escada, para não cansar muito
Cerca de 50 anos depois, numa entrevista sobre a sua carreira, ouvi Frank Capra falar desse seu filme e do percurso descendente posterior de Harry Langdon. Uma vez, por acaso, contava, já na época do cinema sonoro, Capra passara perto de um estúdio onde se estava a fazer um daqueles filmes de terceira categoria, que reparou ser protagonizado por Langdon, onde se repetia pela enésima vez a cena da rapariga e das escadas e onde um realizador da categoria do filme repetia: Mais depressa, Harry! Mais depressa!...

Ora, concluía Capra, que dirigira a cena original, a essência daquela piada e da própria personagem de Harry Langdon (e de uma qualquer anedota de alentejanos, acrescentaria eu...) era o vagar com que toda a cena deveria ser feita. O realizador, rematava Capra, a berrar alguma coisa, devia ser: Mais devagar, Harry! Mais devagar! Mas, preso a um dos axiomas da cultura Ocidental, aquele que estabelece que Tempo é Dinheiro, o realizador acreditava que, quanto mais rápida, melhor e mais económica seria a piada...
Outro dos axiomas do Ocidente é posto em causa numa notícia publicada originalmente na imprensa indiana: em Jharkhand, um dos estados mais atrasados da Índia, situado a Nordeste (acima) e onde grassa uma revolta social de inspiração maoista (os naxalitas), a polícia local foi reforçada com a contratação de 374 cozinheiros e 195 carregadores de água. Os novos contratados serão colocados nas 145 esquadras das regiões afectadas pela insurreição e também nas unidades móveis da polícia estadual.

Parece-me que um dos objectivos invocados – fazer com que os agentes se libertem das funções culinárias – não se distinguirá muito daquela situação que ouvimos em Portugal sobre o alívio das funções administrativas da polícia, para que haja mais polícias na rua. O que difere, e isso é o tal outro axioma Ocidental, é como já está profundamente interiorizada entre nós a noção que a mão-de-obra é escassa, cara e costuma ser ineficaz. Se trocarmos os homens pelas máquinas, isso estará correcto, mas contratar mais homens não.
Ora os problemas da Índia (como os da China) não parecem ter nada a ver com a escassez de mão-de-obra. Ela é até tão abundante que as decisões para se recorrer a processos de produção automatizados costumam ter que ser devidamente justificadas, ao contrário do que sucede no Ocidente, em que a automação de procedimentos e o consequente anúncio de futuros despedimentos de pessoal das grandes empresas são até motivo para a subida das cotações das suas acções na Bolsa.

Lendo mais atentamente o conteúdo do artigo fica a saber-se quais são os problemas que este recrutamento suplementar de cozinheiros procura resolver. Um deles é o provocado pela atitude dos oficiais superiores da Polícia, que requisitam impunemente os melhores cozinheiros para o seu serviço pessoal desguarnecendo os quadros; o outro problema que se pretende resolver, é o de criar coesão nas forças policiais, obrigando os seus membros a comer conjuntamente, em vez de o fazerem separados por castas.
Como se percebeu, aquilo que, à primeira vista, nos pareceria um anacronismo do passado, habituados como estamos a este nosso mundo de fast-foods, restaurantes e cantinas, esta notícia da contratação de cozinheiros e aguadeiros pela polícia de um dos estados mais atrasados da Índia tinha uma outra lógica, que não a nossa. Antes de nos rirmos do absurdo, devemos compreendê-la. Para não fazermos a figura triste daquele realizador de terceira categoria que mandava o Harry mexer-se mais depressa

7 comentários:

  1. Bolas! Que tu saibas de história que até chateia ainda vá; que te entretenhas a esmiuçar os enredos mais incríveis e mais remotos das duas guerras mundiais, pronto, está bem; que além disso consigas ir desencantar episódios insólitos através dos quais vais, não sei muito bem como, dar porrada em alguém, ainda admito; que além disso ainda percebas de cinema e de literatura, ainda vá que não vá. Agora que tenhas a informação precisa de quantos cozinheiros e aguadeiros foram admitidos para reforçar a polícia de uma região de tal modo remota da Índia da qual nem tinha ouvido falar e AINDA POR CIMA saibas a razão de tal atitude...
    Bem, estás mesmo noutra divisão.

    ResponderEliminar
  2. Donagata, aceito e agradeço o teu extraordinário elogio porque ele está mesmo naquele limiar a partir do qual eu, e creio que todos, com excepção evidente do "Special One" José Mourinho, nos começamos a sentir desconfortáveis.

    A carinha da Maria do Sol é muito mais tranquilizadora.

    :)

    ResponderEliminar
  3. Não é para sentires qualquer desconforto, é mesmo o que eu penso!
    Olha lá, e que é que o "special one" tem mais do que tu? Não respondas que eu sei esta: dinheiro e MUIIITA MANIA!

    ResponderEliminar
  4. Fantástico.
    A primeira parte está à altura do Desdobrável da Cinemateca.
    Quanto aos cozinheiros; imaginemos só, o que seria o pessoal do “Tavares”, do “Conventual”, da “Travessa”, do “Pabe” etc., para só falar nos que têm ementa turística, a patrulhar as avenidas e ruelas da periferia lisboeta.

    ResponderEliminar
  5. Adorei seu post!

    Pessoal, essa eu tenho que recomendar, dois sites interessantíssimos: www.meus3desejos.com.br e www.videoflix.com.br.

    Abs.

    ResponderEliminar