Entre os anos de 412 e 444 da era cristã, já o Império Romano se habituara a contar com dois Imperadores, a Sé de Alexandria foi ocupada por uma personalidade muito interessante, um Patriarca* chamado Cirilo (378-444), combinando, como era frequente nesses tempos primordiais da Igreja, as facetas de um eminente teólogo com as de um político determinado. Entre as controvérsias teológicas em que se envolveu, a mais importante que desenvolveu foi com Teodoro (350-428), o Bispo de Mopsuestia (então uma grande cidade, hoje uma pequena povoação na Turquia oriental), que pertencia à geração anterior à sua, próxima de São João Crisóstomo (349-407), que fora o reverenciado Patriarca de Constantinopla.
Procurando sintetizar sem desvirtuar a tese mais controversa de Teodoro, para ele a redenção da Humanidade dependia da perfeição e da obediência de Cristo como homem. A identidade de Jesus com Deus consistia no acordo em amor entre a Sua vontade e a do Pai. Para Teodoro, essa união de Deus e homem em Cristo para que se formasse uma pessoa única de forma alguma queria destruir ou qualificar a dualidade permanente das duas naturezas unificadoras. Cirilo opunha-se a esta interpretação e, num comentário seu ao Evangelho de São João, criticou, embora sem nomear, os que consideravam Cristo como o exemplo supremo de inspiração profética e graça e assim falavam de duas naturezas distintas.
Estas divergências interpretativas, permaneciam circunscritas à teoria, quando na Corte Romana de Constantinopla, se escolheu Nestório (386-451), um monge sírio, discípulo de Teodoro, para Arcebispo da Cidade no ano de 428. Nestório também mostrava ter uma determinação semelhante à de Cirilo, e as potencialidades de conflito dos dois egos, numa época em que a proeminência relativa das respectivas Sés estava muito longe de estar estabelecida, era infinda. Foi o que aconteceu, embora a causa da divergência, para que a audiência a pudesse acompanhar, se concentrasse no emprego da expressão Mãe de Deus quando aplicada a Maria, aceite por Cirilo, condenada por Nestório, que preferia Mãe de Cristo.
No Concílio de Éfeso de 431, o bloco de bispos egípcios e ocidentais (incluindo o de Roma) por detrás de Cirilo conseguiu manobrar melhor do que o dos sírios e orientais por detrás de Nestório, acabando o Concílio com a excomunhão do último e da sua doutrina, conhecida por nestorianismo, que continuou a ser aceite entre as comunidades cristãs que ficavam para lá das fronteiras do Império Romano, (no actual Iraque). Estes problemas cristológicos ainda iriam provocar mais outras divisões no cristianismo, separando o mundo cultural que se exprimia em grego do que se exprimia em copta (no Egipto), os dois do que se exprimia em siríaco (Síria) e os três, mas já não por causa de Cristo, do Ocidente latino (1054).
O tempo, especialmente quando visto nesta perspectiva secular ou milenar – passaram-se quase 1600 anos… – parece ter aquela virtude de reduzir as confrontações teóricas mais acesas às suas devidas proporções. Hoje é apenas um círculo muito restrito o que se dedica ao aprofundamento das controvérsias cristológicas, que ainda consegue compreender o que separava as opiniões daqueles homens cujos debates levavam àquelas rupturas impiedosas e, sobretudo, há a tranquilidade de se saber que delas não resultam consequências de profundo impacto político para outros milhões de pessoas que nem as sequer conseguem acompanhar. O que não invalida que outros temas tenham sido empregues com o mesmo propósito.
O blogue Água Lisa tem estado a relatar em interessantes episódios (1,2,3,4 e 5) os trabalhos daquilo que se assemelha por demais a uma espécie de Concílio Comunista que se realizou há uns 40 anos. É verdade que se trata de um período 40 vezes mais curto do que o que nos separa da controvérsia de Éfeso, mas a analogia é fortíssima, desde a disputa da ascendência relativa das dioceses (Moscovo versus Pequim) e sobretudo a dos seus titulares (a disputa que verdadeiramente interessava: quem mandava na igreja, Brejnev ou Mao?), até aos mesmos pretextos de interpretação dos textos teóricos que essa disputa assumiu formalmente, que, como dali se deduz, não serviram para nada….
Se a analogia se mantiver, então o que restar dos movimentos comunistas vai-se fragmentar ainda mais em função das linhas de fractura culturais que separam os diferentes países. As proclamações internacionalistas guardar-se-ão para as ocasiões solenes (Proletários de todos os países uni-vos!) assim como a Igreja continua a prometer-nos o Reino de Deus na Terra… Mas o mais engraçado é como aqueles escassos 40 anos transcorridos não deixaram de me fazer imaginar quantos séculos faltarão para que as obras consideradas imortais de Lenine (como Materialismo e Empiriocriticismo) venham a ser encaradas da mesma forma interrogativa com que hoje tratamos os Diálogos sobre a Trindade de Cirilo…
* O Chefe da comunidade cristã de Alexandria é conhecido também pelo título de Papa, prática que é muito provavelmente mais antiga do que a do seu homólogo de Roma. Aqui não o empreguei para não se prestar a confusões.
Procurando sintetizar sem desvirtuar a tese mais controversa de Teodoro, para ele a redenção da Humanidade dependia da perfeição e da obediência de Cristo como homem. A identidade de Jesus com Deus consistia no acordo em amor entre a Sua vontade e a do Pai. Para Teodoro, essa união de Deus e homem em Cristo para que se formasse uma pessoa única de forma alguma queria destruir ou qualificar a dualidade permanente das duas naturezas unificadoras. Cirilo opunha-se a esta interpretação e, num comentário seu ao Evangelho de São João, criticou, embora sem nomear, os que consideravam Cristo como o exemplo supremo de inspiração profética e graça e assim falavam de duas naturezas distintas.
Estas divergências interpretativas, permaneciam circunscritas à teoria, quando na Corte Romana de Constantinopla, se escolheu Nestório (386-451), um monge sírio, discípulo de Teodoro, para Arcebispo da Cidade no ano de 428. Nestório também mostrava ter uma determinação semelhante à de Cirilo, e as potencialidades de conflito dos dois egos, numa época em que a proeminência relativa das respectivas Sés estava muito longe de estar estabelecida, era infinda. Foi o que aconteceu, embora a causa da divergência, para que a audiência a pudesse acompanhar, se concentrasse no emprego da expressão Mãe de Deus quando aplicada a Maria, aceite por Cirilo, condenada por Nestório, que preferia Mãe de Cristo.
No Concílio de Éfeso de 431, o bloco de bispos egípcios e ocidentais (incluindo o de Roma) por detrás de Cirilo conseguiu manobrar melhor do que o dos sírios e orientais por detrás de Nestório, acabando o Concílio com a excomunhão do último e da sua doutrina, conhecida por nestorianismo, que continuou a ser aceite entre as comunidades cristãs que ficavam para lá das fronteiras do Império Romano, (no actual Iraque). Estes problemas cristológicos ainda iriam provocar mais outras divisões no cristianismo, separando o mundo cultural que se exprimia em grego do que se exprimia em copta (no Egipto), os dois do que se exprimia em siríaco (Síria) e os três, mas já não por causa de Cristo, do Ocidente latino (1054).
O tempo, especialmente quando visto nesta perspectiva secular ou milenar – passaram-se quase 1600 anos… – parece ter aquela virtude de reduzir as confrontações teóricas mais acesas às suas devidas proporções. Hoje é apenas um círculo muito restrito o que se dedica ao aprofundamento das controvérsias cristológicas, que ainda consegue compreender o que separava as opiniões daqueles homens cujos debates levavam àquelas rupturas impiedosas e, sobretudo, há a tranquilidade de se saber que delas não resultam consequências de profundo impacto político para outros milhões de pessoas que nem as sequer conseguem acompanhar. O que não invalida que outros temas tenham sido empregues com o mesmo propósito.
O blogue Água Lisa tem estado a relatar em interessantes episódios (1,2,3,4 e 5) os trabalhos daquilo que se assemelha por demais a uma espécie de Concílio Comunista que se realizou há uns 40 anos. É verdade que se trata de um período 40 vezes mais curto do que o que nos separa da controvérsia de Éfeso, mas a analogia é fortíssima, desde a disputa da ascendência relativa das dioceses (Moscovo versus Pequim) e sobretudo a dos seus titulares (a disputa que verdadeiramente interessava: quem mandava na igreja, Brejnev ou Mao?), até aos mesmos pretextos de interpretação dos textos teóricos que essa disputa assumiu formalmente, que, como dali se deduz, não serviram para nada….
Se a analogia se mantiver, então o que restar dos movimentos comunistas vai-se fragmentar ainda mais em função das linhas de fractura culturais que separam os diferentes países. As proclamações internacionalistas guardar-se-ão para as ocasiões solenes (Proletários de todos os países uni-vos!) assim como a Igreja continua a prometer-nos o Reino de Deus na Terra… Mas o mais engraçado é como aqueles escassos 40 anos transcorridos não deixaram de me fazer imaginar quantos séculos faltarão para que as obras consideradas imortais de Lenine (como Materialismo e Empiriocriticismo) venham a ser encaradas da mesma forma interrogativa com que hoje tratamos os Diálogos sobre a Trindade de Cirilo…
* O Chefe da comunidade cristã de Alexandria é conhecido também pelo título de Papa, prática que é muito provavelmente mais antiga do que a do seu homólogo de Roma. Aqui não o empreguei para não se prestar a confusões.