17 maio 2007

AS TRÊS GUERRAS E AS TRÊS COMISSÕES EM ISRAEL

As três guerras convencionais e de alta intensidade que Israel travou desde a sua existência (1956, 1967 e 1973) foram todas muito breves. Dados os factores estratégicos dominantes, Israel nunca se pôde dar ao luxo de vencer os seus inimigos por exaustão. A guerra que durou mais tempo foi precisamente a última com tais características que Israel travou, e que foi baptizada de Guerra de Yom Kippur, por referência à data do feriado religioso judeu (6 de Outubro de 1973) em que egípcios e sírios desencadearam o seu ataque simultâneo.

Durou precisamente 21 dias (de 6 a 26 de Outubro), o que foi imenso pelos padrões das guerras anteriores (9 dias em 1956 e 6 dias em 1967) e isso aconteceu porque Israel passou metade desse período a perder a guerra tacticamente: o seu contra-ataque contra os egípcios só data de 15 de Outubro de 1973. E, para o levar a cabo, ficou a percepção que, se não fosse o armamento e munições que os Estados Unidos enviaram de urgência em ponte aérea para Israel (Operação Nickel Grass), o contra-ataque nunca teria condições materiais para ter tido lugar…
Essa foi uma grande humilhação para quem tanto prezava a sua autonomia estratégica, que tinha até levado Israel, numa fase anormal de embriaguez na fase final da guerra precedente (8 Junho de 1967), à provável ousadia de atacar por mar e ar um navio de espionagem electrónica norte-americano (USS Liberty), causando 34 mortos e 173 feridos entre a sua tripulação. É um episódio que permanece ainda hoje controverso (as explicações israelitas permanecerão duvidosas) e sobretudo esquecido, dada a vontade das duas partes em minorá-lo.

Mas a outra verdade é que a Guerra terminou tacticamente de uma forma claramente vantajosa para Israel. A suspensão das hostilidades foi um alívio para o exército egípcio que se encontrava completamente cercado. Na outra frente (síria), os blindados israelitas estavam prontos para avançarem até Damasco. Tudo acabou bem mas, como no apuramento do Benfica para a final da Taça dos Campeões de 1990 contra o Marselha, ficou nos israelitas um travo amargo na vitória, como o do golo irregular de Vata

Tratar-se-á adiante do impacto da Guerra na sociedade israelita mas, entre as suas elites e em termos estratégicos, os países árabes haviam conseguido demonstrar-lhes, que a sua opinião sobre a situação estratégica de Israel se assemelhava aquela que o IRA veio a sintetizar no futuro, depois de falharem um atentado contra Margaret Thatcher em Brighton em 1984: Hoje não tivemos sorte, mas lembrem-se que só é preciso que tenhamos sorte uma vez. Vocês vão precisar de ter sempre sorte*.

Na sociedade israelita, a forte sensação de segurança colectiva que ficara da vitória esmagadora de Junho de 1967 perdeu-se logo na primeira semana de guerra, quando as notícias das frentes pareciam tão graves que levavam a pôr em causa a própria sobrevivência do Estado de Israel. E foi esta sensação geral de que a Guerra acabou bem, mas correu mal, que esteve por detrás da decisão do governo de Golda Meir da formação de uma Comissão, denominada Agranat a partir do nome do juiz presidente.
Tratava-se de uma Comissão com aqueles objectivos clássicos de encontrar bodes expiatórios que aliviassem uma situação política incómoda ao governo, como se percebe das conclusões e recomendações finais: as demissões do Chefe de Estado-Maior do Tsahal**, dos dois responsáveis principais das Informações do Estado-Maior, a aposentação compulsiva do comandante da Frente do Sinai (que combateu contra o Egipto) e a transferência compulsória de outros oficiais de informações de patente inferior.

No entanto, as conclusões do relatório, saído em Abril de 74, foram consideradas como demasiado benignas quanto às responsabilidades políticas atribuíveis quer à primeira-ministra Golda Meir, quer ao ministro da Defesa, Moshe Dayan. O facto acabou por provocar um efeito de ricochete e os dois políticos tiveram que se demitir. E assim se criou o precedente de que relatórios de objectivo semelhante ultrapassassem a fronteira da avaliação técnica dos acontecimentos para se pronunciarem também sobre a responsabilidade política.

Quanto às lições estratégicas de Outubro de 1973, elas foram absorvidas e parcialmente solucionadas com a redução dos inimigos externos de Israel, através da assinatura dos Tratados de Camp David entre Israel e o Egipto (1978). Meia dúzia de anos depois da Guerra do Yom Kippur (1973) e uma dúzia depois da dos Seis Dias (1967), Israel havia estabelecido acordos e um modus vivendi com dois dos três países inimigos com cujos exércitos o seu se confrontara naquela altura (Egipto e Jordânia).

Na perspectiva israelita, apenas restava o problema civil dos palestinianos dentro das fronteiras de segurança de Israel e o militar dos dois países do Norte de Israel, Síria e Líbano, muito embora o problema do segundo fosse passível de gestão através de um sistema de apoios e equilíbrios entre as facções militares em que o poder libanês se decompusera no seguimento da Guerra Civil libanesa de 1975. No entanto, o status quo foi considerado insatisfatório por Israel em 1982, quando o Tsahal invadiu o Líbano, para desalojar dali os guerrilheiros da OLP, que flagelavam o norte de Israel.A invasão do Líbano em Junho de 1982 tornou-se o padrão dos novos conflitos para onde Israel se tem visto arrastado, onde não existe uma verdadeira contestação ao seu poder militar mas onde os seus oponentes se evadem a reconhecer-lhe politicamente as vitórias militares, fazendo o tempo arrastar-se a seu favor. Entretanto, enquanto se espera, a disputa transfere-se para a conquista das simpatias da opinião pública. Foi o que fizeram Yasser Arafat e a OLP naquela altura, cercados pelo Tsahal em Beirute.

Do ponto de vista militar o Tsahal invadiu o Líbano pelo Sul, derrotou os dispositivos militares que se lhe opuseram, chegou até Beirute onde cercou a OLP, podê-la-ia ter eliminado militarmente. Mas a solução política para a disputa já se arrastava há três meses quando Israel deixou que se cometesse uma manobra colateral por parte de milícias libanesas suas aliadas que ficou conhecida pelo Massacre de Sabra e Chatila*** (acima) e que se tornou para si num completo desastre em termos mediáticos.

Também nesta ocasião se formou posteriormente uma Comissão (Kahan) que, a propósito das responsabilidades israelitas no referido massacre, analisou também o beco estratégico para onde Israel fora conduzido com a invasão do Líbano. Dados os precedentes, a Comissão foi severíssima nas conclusões do seu relatório, recomendando a demissão do ministro da Defesa (Ariel Sharon), do responsável dos serviços de informações do Estado-Maior e a despromoção efectiva do oficial responsável pelo comando em Beirute.

É irónico como o conteúdo do relatório chegou mesmo ao limite de sugerir que Sharon não devesse voltar a ocupar mais cargos como governante israelita para o futuro… Mas também é simbólico como, após o precedente da Comissão Agranat, esta Comissão quis evitar o erro da redacção de um relatório anódino e, na dúvida, preferisse arriscar pelo excesso. Na realidade, essa sugestão da Comissão Kahan não teve efeito e Ariel Sharon veio mesmo a tornar-se primeiro-ministro de Israel…
Recordando os acontecimentos da invasão do Líbano de 1982, foi impressionante quanto a de 2006 repetiu precisamente os mesmos erros estratégicos de 24 anos antes, até nos pretextos demasiado despropositados para justificar o começo das operações****, e apenas tendo mudado o oponente, da OLP para o Hezbollah. Pior, o dispositivo táctico de defesa do terreno do Hezbollah havia evoluído comparativamente melhor com o estudo da invasão precedente do que parecia ter acontecido com as tácticas ofensivas de Israel…

Depois de um mês (entre Julho e Agosto de 2006) em que Israel progredia penosamente no terreno e andava à procura de um interlocutor válido que lhe fizesse concessões políticas rapidamente, mas sem o encontrar (sempre o factor tempo…), houve que apelar para a ONU, para as tais forças de interposição robustas e para o seu bluff (pífio) que Israel ainda podia desencadear uma escalada militar – como se Israel se dispusesse a sofrer uma outra degradação da sua imagem com as vitimas da escalada, igual à das vítimas do massacre de 1982…

A Comissão Winograd, cujas conclusões foram recentemente tornadas públicas, em 30 de Abril de 2007, foi constituída precisamente para se pronunciar sobre o conflito travado no Verão passado. Neste caso – e não surpreendentemente, conhecidas as conclusões das suas antecessoras – a Comissão concluiu por críticas severas à conduta do primeiro-ministro Ehud Olmert, à do ministro da Defesa Amir Peretz e à do Chefe de Estado-Maior do Tsahal, Dan Halutz.

Há que reconhecer que escrever postes pode implicar um exercício de simplificação. No entanto esse exercício não pode ser levado a extremos que deturpem a essência das ideias. Por tudo aquilo que escrevi atrás, considero que tentar associar e equiparar, ainda que subtilmente, as conclusões das Comissões Agranat e Winograd além das guerras que as antecederam, para além de platitudes que sempre se podem escrever a esse propósito (ambas serem israelitas ou terem sido presididas por juízes...), é um exercício descabido, como o que José Pacheco Pereira fez no seu blogue, num poste do passado dia 6 de Maio*****.
José Pacheco Pereira excede-se tanto na imagem de erudição que cultiva tão cuidadosamente para o exterior que, às vezes, mesmo involuntariamente e por falha nossa, somos levados por ela. Ele não é obrigado a saber tudo. Ele nem sequer é obrigado a saber muito. Mas talvez devesse reconhecer que há assuntos em que o radicalismo das suas opiniões o leva a escrever demais sobre assuntos em que afinal parece saber pouco. Talvez este seja um desses casos… Podemos compartilhar a sua simpatia por Israel, como bastião do ocidentalismo numa terra que o não é, não podemos é adoptar uma atitude de simpatia e tolerância acrítica (qual nacionalismo emprestado…) em relação aos erros estratégicos que comete…

*Today we were unlucky, but remember we only have to be lucky once. You will have to be lucky always.
** Tsahal – Tsva Hahagana LeYisrael (Forças de Defesa de Israel), Forças Armadas israelitas
*** Campos de refugiados palestinianos situados no Líbano.
**** Em 1982 foi uma tentativa de assassinato de um grupo terrorista radical (Abu Nidal) ao embaixador israelita em Londres, em 2006 foi o rapto de dois soldados israelitas.
*****O recente relatório Winograd sobre a Segunda Guerra do Líbano, muito crítico do governo de Olmert e da liderança militar, não é inédito na tradição da democracia israelita. A Comissão Agranat, analisando a guerra conhecida como a do Yom Kippur, por se ter iniciado nesse dia de feriado judaico em 1973, foi também um documento duríssimo, que levou ao afastamento de alguns dos militares mais prestigiados do exército israelita, como o general Elazar e o chefe dos serviços de informação militar, e atingiu Moshe Dayan e Golda Meir, respectivamente Ministro da Defesa e Primeiro-Ministro. O Relatório Agranat (como o Relatório Winograd) gerou manifestações violentas contra a liderança política e militar de Israel e acabou por ter consequências políticas a médio prazo muito significativas.
E no entanto... os israelitas ficaram a um passo de ganhar a guerra e colocar os seus tanques nos arrabaldes de Damasco e do Cairo e só não foram mais longe porque os americanos lhes fizeram um ultimato, obrigando-os a parar. (…)

3 comentários:

  1. Não percebo muito bem quanto á crítica que faz ao Pacheco Pereira. A comparação entre as duas comissões é perfeitamente possível, é também uma questão de opinião. Por que é que a sua é melhor? Eu vivi em Israel e não percebo o acinte contra Pacheco Pereira, cujos textos sobre Israel são muito rigorosos factuamente. A opinião essa é livre.

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  2. Começando pelo fim do que escreve anónimo, pela liberdade de opinião, ela aqui está consagrada nesta caixa de comentários, ao permitir que dê a sua opinião, mas preferindo não se identificar…

    Quanto à dificuldade que manifesta em perceber a crítica a Pacheco Pereira, permita-me dizer-lhe que não disse que a comparação entre as duas comissões era impossível, nem excluí que se tratasse de uma questão de opinião. É que é mesmo uma questão de opinião. A questão é que a dele se forma a partir de uma analogia demasiado simples.

    Agora, se não percebeu as evoluções entre as situações que antecederam a formação das ditas comissões (tipo de situação estratégica no Médio Oriente ou o tipo de guerra travada por Israel…) então só me resta concluir que entramos no foro daquela liberdade de Deus que faz de nós pessoas distintas quanto à compreensão dos argumentos alheios…

    Sinceramente, para quem reclama ter vivido em Israel esperava uma argumentação mais substantiva do que a simples evocação de um pretenso argumento de autoridade. Enganei-me nalgum facto? Haverá outros factos que podem desmentir aquilo que escrevi no poste?

    Finalmente, anónimo, permita-me uma pergunta final, associada ao seu comentário mas não ao seu conteúdo, e que, como é evidente, terá toda a liberdade de me responder, se assim o entender: é “hobby” seu andar de Google Blog Search em patrulha, à procura de referências a “Pacheco Pereira”?

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  3. e o idioma hungaro deve ser muito le gal se falar...
    queria que voces mandassem algumas palavaras em hungaro traduzido para portugues..

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