12 março 2020

UMA MAGNA QUESTÃO POLÍTICA: QUANTO SE GASTA E EM QUE RÚBRICAS SE GASTARAM OS RECURSOS PARA DEFRONTAR AS AMEAÇAS DO FUTURO?

Durante os últimos vinte a vinte cinco anos a atitude dos Estados Unidos e dos países europeus, nomeadamente os da Europa ocidental, tem vindo a divergir quanto à importância atribuída à questão da Defesa. Costuma simplificar-se o assunto a uma questão de quanto se gasta: os Estados Unidos gastam muito mais, e consideram que os seus parceiros da NATO gastam de menos. Trump (acima) tornou-se apenas a exibição em grosseiro dessa atitude. Na verdade, o problema é muito mais complexo e é muito mais do que o que resulta da questão das prioridades dos orçamentos de cada um dos países membros da NATO. Os países europeus preferem gastar mesmo o pouco que gastam em programas de equipamento que alimentem as suas próprias indústrias europeias de armamento. E com a NATO transformada numa organização que esticou geografica e desmesuradamente com os seus progressivos alargamentos, há membros que só se empenham em função das suas próprias prioridades regionais. O presidente Erdogan da Turquia (abaixo) notabilizou-se por fazer precisamente isso com a Síria e por sair das reuniões da organização irritado por ter estado a falar sozinho. Como Aliança, a NATO já teve dias muito melhores, e a culpa não se deverá a Donald Trump.
O que o actual ocupante da Casa Branca trouxe à cena mundial foi um apport de relações públicas que tem vindo a contribuir para que essas relações se azedem. Ou, melhor, para que as respectivas opiniões públicas se aperceberem mais facilmente do azedume. Como aquele que acabou de ser expresso ontem no discurso proferido por Donald Trump. Um título como «Trump suspende viagens da Europa para os EUA durante 30 dias» afigura-se-me uma boa síntese do seu discurso. E, como já nos acostumámos desta administração, trata-se de uma decisão política. Por um lado porque nada de equivalente foi decidido para os aliados americanos do Pacífico, como serão os casos da Coreia do Sul, do Japão e da Austrália, também eles a braços com o surto. E por outro lado, porque o critério para afectar as viagens dos países aliados europeus parece ter sido cuidadosamente escolhido para que o Reino Unido fosse excluído*, ele que, por sinal, é um dos países mais abrangidos pelo surto. Isto não é unilateralismo, isto é mera sacanice política. Donald Trump está à brocha e está (mais uma vez) à procura de arranjar bodes expiatórios no exterior.
A ironia é que Donald Trump é apenas o último de uma cadeia de culpados que erigiu uma sociedade que dedicou muito mais atenção à Defesa do que à Solidariedade e Saúde Pública. Até aqui há alguns meses, os Estados Unidos apareciam a falar de cátedra aos seus parceiros, porque estes não dedicavam os recursos que eles achavam suficientes à primeira daquelas prioridades. Agora, que parece que todos iremos penar com a  pandemia do covid-19, os Estados Unidos terão perdido essas superioridades morais de que se costumavam arrogar. O secretário (ministro) da Saúde norte-americano, Alex Azar, confessou outro dia à CNN que as autoridades não fazem ideia de quantas pessoas já serão sido testadas ao vírus, porque os testes realizados pelas instituições privadas lhes escapam. As instituições privadas, aliás, parecem ser um dos busílis do Problema, nomeadamente as Seguradoras, que se mostram cada vez mais evasivas a encaixar os prejuízos do que aí vem, o que está a obrigar o vice-presidente Mike Pence - encarregue da crise - a proclamações solenes garantindo a cobertura dos testes ao covid-19, garantias que não se vêem em mais nenhum outro país desenvolvido. E há quem pergunte: o que acontecerá com os 27 milhões de americanos que não possuem qualquer cobertura de saúde?... Numa aparição hoje naquele mesmo canal de televisão (CNN), o mesmo Mike Pence fez uma triste figura de si próprio ao mostrar não saber dar resposta satisfatória ao número escassíssimo de testes apresentados pelas estatísticas oficiais (abaixo). Ou seja: Azar não sabia e Pence continua a não fazer a mínima ideia.
Tudo isto está a acontecer numa América onde a questão da eficácia dos cuidados de Saúde Pública sempre foi um dos seus principais calcanhares de Aquiles. Tanto é assim, que um dos actuais candidatos presidenciais - Bernie Sanders - transformou o assunto num dos tópicos da sua campanha. Deficiência essa que me parece que tornará a situação da pandemia presente muito mais assustadora para os americanos: trata-se de uma crise que é dirigida por incompetentes em que, ainda por cima, os meios parecem deficientes. E o facto de Donald Trump ser quem é, traz um gosto especial ao convite para que, agora, os americanos accionem todo o seu estado da arte do dispositivo de defesa, os seus onze porta-aviões a energia nuclear, com os novíssimos caças F-35 (a 100 milhões a unidade) para combater o vírus! A última ironia desta cadeia de ironias é constatar que os países se preparam para o que estão à espera, mas depois confrontam-se com o que não estão à espera. Se os Estados Unidos tivessem redireccionado algum do dinheiro que alocaram à Defesa para a Saúde Pública, provavelmente agora estariam muito mais apetrechados para enfrentar a pandemia.

* A revogação da excepção, apenas dois dias depois, veio a confirmar o seu carácter político, que não se pôde sustentar perante a seriedade sanitária das medidas a adoptar. Donald Trump brinca com estas coisas até alguém ter de o convencer que o assunto é demasiado sério para brincadeiras. 

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