16 março 2019

QUANDO CUNHAL REGRESSAVA DE MOSCOVO PARA «PÔR FIM A UMA CERTA DESORIENTAÇÃO NO SEIO DO PCP»

Quinta-Feira, 16 de Março de 1989. Duas notícias distintas, respectivamente do noticiário nacional e internacional, publicadas no "seu" Diário de Lisboa, ajudam a recordar as desventuras por que então passavam os comunistas há trinta anos, enquanto o Muro de Convicções que haviam erigido à volta da sua argumentação se desmoronava com fragor. Em Moscovo, «o plenário do Comité Central do Partido Comunista Soviético» debatia «as propostas de Mikhail Gorbachev tendentes a vencer a escassez crónica de produtos alimentares» (afinal, havia-a, as filas não eram montagens fotográficas da propaganda capitalista...). Mais estranho, o camarada secretário-geral era citado empregando um slogan («devolver a terra a quem a trabalha») precisamente igual àquele que fora brandido em terras alentejanos na segunda metade da década de 70 pelo PCP, quando da sua tentativa de implementação de uma "reforma agrária" em tudo igual ao regime de propriedade da terra que vigorava na União Soviética, em que, só para lhe dar um colorido local, os Kolkhozes se denominavam UCPs. Regime esse que Gorbachev se propunha agora reformar, reformando a Reforma Agrária. Confuso. Nessa mesma edição do jornal, mas a dez páginas de distância, noticiava-se que o camarada Álvaro Cunhal regressava de Moscovo «para, finalmente, pôr fim a uma certa desorientação (natural, acrescentar-se-ia...) no seio do PCP.» Cunhal fora «passar férias» e «fazer exames médicos de rotina», sem que ninguém lhe perguntasse porque prescindira para isso do SNS português, que era (e continua a ser) na propaganda do PCP, «uma conquista de Abril». Outra incongruência da viagem de Cunhal fora a outorga de uma segunda condecoração soviética, a Ordem de Lenine. Incongruência, porque à época e mesmo depois, Cunhal recusara e continuaria a recusar a atribuição de qualquer condecoração portuguesa, quando sondado sucessivamente por Eanes, por Soares e por Sampaio. A modéstia não lhe terá permitido aceitar qualquer condecoração portuguesa, mas, saiba-se lá porquê, a Moscovo não conseguia dizer que não... Mas regressado curado e condecorado há precisamente trinta anos, o «revolucionário inflexível, verdadeiro patriota e internacionalista convicto» revelava-se indispensável para definir a atitude dos comunistas portugueses face ao vacilar dos dogmas de fé da ideologia deles.
Para o que interessa, a Reforma da Reforma Agrária na União Soviética veio a revelar-se aquilo a que em inglês se qualifica por "too little and too late". Mas essa é toda uma outra história...

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