Embora apresentadas como as civilizações do futuro ou, pelo menos, rotineiramente nomeadas assim na inúmera bibliografia recentemente publicada que as emparelha a propósito e a despropósito, os dois grandes países estão geograficamente separados pela maior divisória natural do mundo: a cordilheira dos Himalaias. E, tendo ambas características estranhas para nós, ocidentais, as duas civilizações também têm imensas características que as distinguem entre si.
Apesar da proximidade, por causa da existência dos Himalaias, nunca se estabeleceram relações importantes entre os dois lados. E, no entanto, excepção que confirma a regra, uma das maiores religiões do mundo moderno, o budismo, atravessou-a, vinda do Sul, para se implantar no Norte – mas para ficar quase esquecida na região de onde é originária….
Olhando para um Mapa-Mundo, numa análise geográfica dos grandes acidentes do Globo, com reminiscências às de
Mackinder, as duas civilizações, conjuntamente com a europeia/ocidental, constituem os vértices do enorme triângulo irregular formado pela Eurásia. Como se vê pela gravura acima são também as três grandes áreas de concentração populacional dessa grande massa continental.
Todas aquelas três civilizações apareceram inicialmente associadas a grandes rios (o Indo, o Amarelo e o Nilo). Mas a sua expansão posterior efectuou-se a ritmos distintos e para direcções distintas. No caso das duas civilizações asiáticas prevaleceu o sentido Norte-Sul. A europeia seguiu uma trajectória mais irregular, Sul-Norte, mas também Leste-Oeste, abraçando e contornando o Mediterrâneo. E das três, a que mais depressa terminou a cobertura do seu território e que, por isso, foi também a que, a esta grande escala, mais cedo projectou a sua influência civilizacional para territórios de ultramar (como a Malásia e a Indonésia) foi a civilização indiana.
A expansão europeia e a indiana assemelham-se na sua fase de consolidação interna, no predomínio de uma língua erudita (o grego e depois o latim na Europa, o
sânscrito na Índia) usada e destinada às elites debaixo das quais havia uma heterogeneidade cultural, que nos acaba por escapar nos registos históricos formais (literatura, numismática, etc.). Embora tenham existido grandes impérios nos dois casos (como o Romano ou o de Asoka), essas estruturas foram excepcionais, não foram estes impérios centrais os grandes responsáveis pelas expansões ultramarinas. A expansão europeia começou na Península Ibérica, a sudoeste, e a indiana, que a precedeu, no que hoje é o estado indiano de
Tamil Nadu, a sudeste.
Como diferenças entre elas, na sua fase de consolidação, há que realçar que a estrutura social indiana parece ter sido muito mais pacífica do que a europeia: ali a casta sacerdotal predomina sobre a guerreira, ao contrário da nobreza e do clero europeus. Se o Hinduísmo, com o seu panteão de deuses puder ser equiparado ao panteão greco-romano clássico, então a revolução do cristianismo triunfou onde a revolução budista fracassou – pelo menos no território indiano. Como contrapartida da prevalência do Hinduísmo, por causa do sistema das castas, a sociedade indiana está horizontalmente estratificada de uma forma tão rígida que lembra o das sociedades medievais europeias.
Em contraste, a China dispôs, na maior parte do tempo, de um poder político central, que orientou a colonização interna. Descendo de Norte para Sul, depois do Rio Amarelo (associado a Pequim),
domesticou-se o Rio Yangtsé (a Xangai), depois o Rio das Pérolas (a Hong Kong). A 1500 anos de distância, a província de Cantão, no Sul, pode ter sido uma espécie de
Califórnia chinesa, valha a analogia com a colonização do estado norte-americano do Pacífico no Século XIX. Ainda hoje, e apesar dos habitantes de cada uma das três cidades acima mencionadas (Pequim, Xangai e Hong-Kong) não conseguirem perceber o que diz um compatriota de qualquer uma das outras duas, existe neles um sentido de identidade comum muito mais profundo do que aquele que ligará um Punjabi a um Tamil na Índia, ou um Sueco a um Italiano (ainda menos). O reverso deste processo de colonização interna centralizado é a grande predisposição dos chineses para a aceitação de um regime autocrático (só comparável ao que acontece com a Rússia, que teve um processo de formação territorial interno com algumas semelhanças).
Marcadamente, embora por razões distintas, a China e a Índia têm uma capacidade de aceitação das assimetrias sociais resultantes de uma redistribuição desigual da riqueza que é impensável no Ocidente (talvez apenas na América Latina). Talvez daqui a 200 anos as consequências do
Espírito das Luzes e da
Revolução Francesa lá cheguem – ou então elas se percam por cá…
As grandes disputas civilizacionais locais entre China e Índia ir-se-ão travar (e já se travam...) no
Nepal, na
Birmânia, na
Tailândia, no
Sudoeste Asiático, na
Indonésia Ocidental e na
Malásia, mas também em regiões onde a influência ocidental é mais forte, como é o caso das Filipinas e, sobretudo, dos únicos países resultante do assentamento da diáspora europeia na Ásia: a Austrália e a Nova Zelândia.
Embora actualmente o Budismo seja uma religião que está associada à China, no passado foi a arma de evangelização da civilização indiana (a religião hinduísta, como acontece com o judaísmo, não é prosélita) para todo o Sudoeste Asiático. Hoje, são maioritariamente budistas países como a Birmânia, a Tailândia, toda a Indochina, assim como o foram, até ao século XVI, a Malásia e a Indonésia Ocidental (que depois se converteram ao Islamismo). Os alfabetos
birmanês,
tailandês ou
cambojano (entre outros) derivam todos, de forma directa ou indirecta, do alfabeto original do sânscrito (
devanagari).
Sendo dois países enormes (os dois maiores em termos populacionais) é evidente que dispõem de uma enorme capacidade de atracção (e também de repulsão...) em relação à vizinhança próxima. Pelos dados de 2003, a China e a sua vizinhança
imediata* (que se costuma designar por
Extremo Oriente) contariam com uns 1.600 milhões de habitantes. Por seu lado, na Índia e seus
arredores** (habitualmente referidos como a
Ásia Meridional) viveriam 1.460 milhões de habitantes. Em conjunto, está-se a falar de quase metade da humanidade...
Se a predominância chinesa e indiana em qualquer das duas grandes regiões é indiscutível em termos populacionais (a China representa 81% da população do
Extremo Oriente e a Índia 73% da da
Ásia Meridional), a distribuição do poder económico nas duas regiões é completamente distinta. A primeira está muito mais desenvolvida do que a segunda e, sobretudo, enquanto a China está rodeada na sua região por economias que são mais evoluídas que a sua (Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Hong-Kong... - a economia japonesa é mesmo 5 vezes maior que a chinesa!) e que a
rebocam com os seus capitais, na
Ásia Meridional, mais atrasada, é a própria Índia, apesar do valor do seu
PIB ser metade do chinês, que constitui o
motor do desenvolvimento económico regional. Também os vectores em que assentará o desenvolvimento futuro das economias dos dois países parecem diferenciar-se progressivamente cada vez mais...
Haveria muitos outros aspectos a realçar, nas distinções entre chineses e indianos, e destes com os europeus, mas há um traço de união entre as suas civilizações: nascidas dos grandes rios e da agricultura, trata-se de civilizações
molhadas e sedentárias. Quase tudo nelas as afasta da muçulmana que, apesar de hoje ocupar o Crescente Fértil e o rio Indo, teve uma génese diferente,
seca e nómada, e uma expansão conflituosa e rápida, desalojando as outras de locais que dominavam. Será uma das causas para alertar que os problemas do Islão para o futuro poderão ser muito mais fundos do que o radicalismo de Ossama Bin Laden?