13 outubro 2007

1814 E HOJE

Simbolicamente, o antepenúltimo projecto da unidade europeia, o protagonizado pela França e personalizado em Napoleão Bonaparte, foi derrotado em 18 de Junho de 1815, na Batalha de Waterloo, na Bélgica, não muito distante da Bruxelas que é considerada a sede do último projecto, ainda em curso, o da União Europeia. O relevo que costuma ser dado a esse episódio faz esquecer o que acontecera no ano anterior, quando Napoleão abdicara pela primeira vez (a 11 de Abril de 1814), enquanto a França era invadida em várias frentes, com o Imperador a permanecer ainda invicto no campo de batalha mas a ter de se submeter à lógica fria do peso dos números dos exércitos invasores…

Regressando ainda um pouco mais atrás no tempo, ao Outono de 1813, os dias de 16 a 19 de Outubro assistiram ao feito (raro) de uma derrota campal de um exército comandado por Napoleão Bonaparte. Tratou-se da Batalha das Nações (ou Batalha de Leipzig - abaixo) onde os franceses e alguns aliados seus se defrontaram contra uma coligação de austríacos, prussianos, russos e suecos. A coligação que se formara para derrotar Napoleão também era ideológica e era mais vasta que as nações constituintes: entre os que o derrotaram contavam-se o general Moreau, antigo republicano que se exilara nos Estados Unidos e que morrera na batalha como conselheiro do czar, e o antigo Marechal francês Jean-Baptiste Bernadotte agora tornado príncipe herdeiro do trono sueco.
Em Novembro, por pressão da falta de efectivos (em Leipzig, combatera numa desvantagem de quase 1 para 2), Napoleão voltara a passar para a margem ocidental do Reno com as suas tropas. Por todo o lado acumulavam-se os indícios do desmembramento da ordem instituída, com os soberanos francófilos a serem destronados em catadupa: os irmãos de Napoleão, José e Jerónimo, foram expulsos dos tronos da Espanha e da Vestefália, enquanto o seu cunhado, Joaquim Murat, salvou o seu trono de Nápoles, mas graças às habilidosas negociações que havia encetado preventivamente com a Áustria. Nos finais de Dezembro de 1813, a França foi invadida. O período de três meses que se segue pode ser apresentado para fazer a distinção académica entre o que é a superioridade táctica e o que é a superioridade estratégica.

Napoleão e as armas francesas acumularam vitórias tácticas (Brienne, Champaubert, Montmirail, Château-Thierry, Vauchamps, Montereau…) em território francês, sem conseguirem alcançar a vitória estratégica que pudesse reverter a situação desesperada em que se encontravam: em 30 de Março de 1814, os aliados austríacos, prussianos e russos entravam em Paris, com o czar Alexandre I à frente. Os alemães iriam voltar àquela mesma cidade como conquistadores por mais duas vezes (em 1871 e 1940), mas a entrada em Paris do czar Alexandre I e dos seus russos é um acontecimento único da história da Europa, cujas imagens são tão simbólicas (abaixo) quanto a dos soldados soviéticos no telhado do Reichstag em 1945. A 11 de Abril de 1814, Napoleão Bonaparte assinava a sua abdicação:
Tendo as potências afirmado que o imperador Napoleão é o único obstáculo ao restabelecimento da paz na Europa, o imperador Napoleão, fiel ao seu juramento, declara renunciar, por ele e por seu filho, aos tronos de França e de Itália e acrescenta que não há nenhum sacrifício, incluindo o da sua própria vida, que não esteja disposto a fazer pelo interesse da França. As potências responderam a esta declaração cheia da proverbial panache verbal francesa por parte de Napoleão com um gesto simétrico quanto à aparência e à substância: decidiram deixar-lhe o título imperial, embora o seu império ficasse reduzido a uma ilha italiana de 224 Km²…

A Coligação que o derrubara era uma coligação negativa (eram todos contra Napoleão), de composição heterogénea e mesmo num assunto tão sensível quanto ao que aconteceria com a França depois da sua deposição, austríacos, russos e britânicos pareciam não estar de acordo. No final foi a posição britânica que acabou por prevalecer: o retorno à dinastia dos Bourbons e a chamada Restauração com Luís XVIII no trono. A importância dos britânicos estava subestimada nos campos de batalha mas aparecia reforçada à mesa das negociações porque eram os seus subsídios que pagavam a manutenção de uma boa parte dos exércitos dos seus aliados.
O que há de interessantes em todo este episódio que sirva de reflexão para a actualidade? A Europa napoleónica tornou-se uma Europa em sobressalto com o ritmo das mudanças territoriais das anexações, transferências e rectificações de fronteiras que fazem com que os mapas europeus se modificassem de 1806 para 1807, 1809, 1810, 1812 (acima)… A Europa da União tem estado geralmente em paz com as suas fronteiras* mas tem existido um sobressalto equivalente no ritmo das alterações da ordem jurídica para a regulamentar: inicialmente vigorou por muito tempo o Tratado de Roma (1958), depois vieram os de Maastricht (1993), Amsterdam (1999), Nice (2003), agora é o baptizado de Reformador (2009?)…

E a discussão acesa que se estabeleceu sobre o método de aprovação (popular ou não) deste ultimo tratado reformador parece-me ser instrumental para aqueles que se lhe opõem por acreditarem que o escrutínio lhes será favorável. Mas é honesto reconhecer que a parte contrária também assume essa inferioridade psicológica, o que a leva a argumentos risíveis para sustentar as sua posições: nos Países Baixos onde o projecto anterior foi chumbado em referendo, argumenta-se que esta versão não será tratada da mesma maneira porque é completamente diferente da anterior, enquanto que em Espanha, onde o projecto anterior fora aprovado em referendo, há quem argumente que ele se torna dispensável desta vez, porque as versões são muito semelhantes…

Mas, se o exemplo de 1814 servir de orientação, então esta unidade europeia não será decidida pelos votos e pelo peso das massas populares: Napoleão também contava com centenas de milhares de soldados de outras origens, fornecidos pelos países seus aliados, que acabaram por desertar (quando não se passaram para o inimigo…) nos momentos cruciais. Neste momento, a maior ameaça aos defensores do aprofundamento (e deste tratado) é a que parece existir entre as elites nacionais de muitos países membros da União, onde já existe uma massa crítica que se opõe à evolução que a União tem vindo a seguir. Podem ser poderosas em termos nacionais – como se viu, por exemplo, nas forças constituintes, paralelas às estruturas tradicionais, que se manifestaram pelo Não no referendo que venceram em França em 2005 – mas não se têm visto a agir de forma concertada com as outras elites nacionais de opinião igual.

Creio que será uma questão de tempo, com ou sem Tratado Reformador aprovado, para elas se concertarem e tudo se desmoronar – pelo menos no figurino percorrido desde 1993 até cá. Relembre-se que, em 1814, aquela já era a Sexta Coligação (!) que se formara contra Napoleão e, mesmo assim, o cimento que a unia parecia ser muito frágil, para além do propósito de o derrubar. Mas consegui-o… Não se deve subestimar o poder das forças centrífugas da Europa que esmagaram estrategicamente Napoleão, sem que ele as pudesse vencer tacticamente. Se a História nos pode ensinar alguma coisa é que há certos projectos políticos que têm de respeitar um certo ritmo para que sejam bem sucedidos. Hong-Kong e Macau têm uma fase de transição de 50 anos (prorrogável) até se integrarem integralmente na China e a adesão da França (Gália) à Europa romana deu-se 70 anos depois da da Espanha e 90 anos antes da da Inglaterra…

Ora a China e a Europa romana parecem ter e ter tido uma solidez que esta União não tem…

* Mas até isso pode mudar

2 comentários:

  1. Excelente texto. É pena que os nossos "estrategas" europeus saibam tão pouco de história ou, caso saibam, não aprendam as lições.

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  2. É pena, de facto, Sofia. Suspeito que haverá quem saiba (ou tenha sido alertado por quem sabe), mas isto trata-se de verdadeiros problemas estruturais e o tipo corrente de vivência e sobrevivência políticas que vigoram na política europeia são conjunturais.

    No caso particular português, pode-se dizer que se exportou um manhoso desenrascado para presidir à comissão, não um visionário inteligente.

    Uma apreciação que se deve reter quando ele quiser voltar...

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