– Quando penso que íamos fazer eleições para escolher um novo chefe. As urnas já estão cheias.
– As urnas estão cheias antes das eleições?
– Sim, mas deitam-se ao mar sem as abrir, e depois é o mais forte que ganha. É um costume nosso.
– As urnas estão cheias antes das eleições?
– Sim, mas deitam-se ao mar sem as abrir, e depois é o mais forte que ganha. É um costume nosso.
Astérix na Córsega, Prancha 21B

O gesto é simbólico da conta em que os militares tinham a expressão da vontade popular – seria o equivalente a ter assistido, em pleno PREC, a ver Mário Soares preso pela ala comunista do MFA, mesmo depois do PS ter vencido as eleições para a Assembleia Constituinte de 1975... – mas também é revelador como há outras forças no país, representadas naquele acto pelos escrutinadores do acto eleitoral, que ousaram transmitir os verdadeiros resultados eleitorais, que sabiam ir desagradar o poder.

Ou, pelo menos, o desplante dos seus actores políticos principais é menor. Entre os componentes de estado do período do Raj* que tanto os indianos, como os paquistaneses ou os bangladeshis preservam com orgulho conta-se o aparelho militar, o aparelho administrativo e o aparelho judicial, sobretudo as elites que os dirigem, que têm uma importância fundamental em países onde se reconhece que é da sua própria natureza social que as sociedades estejam rigidamente estratificadas (as famosas castas).

Mas são as elites do aparelho judicial que poderão ser um dos principais agentes em jogo nas eleições paquistanesas que hoje têm lugar. Ao contrário do que acontece na Índia, porque a maiorias das regiões que hoje compõem o Paquistão foram as últimas a ser adicionadas ao Império já nos meados do Século XIX, a prevalência da Lei, tal qual é interpretada nos estados de direito modernos, parece ser ali bastante mais frágil do que acontece no resto do subcontinente.

Não me lembro de ter visto, em qualquer país muçulmano, um dirigente político que se tenha incomodado muito com a ameaça de sanção judicial por parte do Presidente do Supremo Tribunal nacional, como aconteceu com Pervez Musharraf, quando teve que demitir e substituir manu militari o juiz Iftikhar Chaudhry em Novembro de 2007. Mais exótico que isso, só mesmo as manifestações dos advogados paquistaneses protestando contra esse gesto. Mais uma vez, seriam gestos improváveis de acontecer em Nairobi, mas também em Moscovo...

Essencialmente, perante um presidente que está (e estava) em progressiva perda de força perante as elites que mantêm o país unido (incluindo também as militares), como acontecia com a prática corsa de Astérix, as urnas já estavam cheias com os votos em Benazir Bhutto só que ela entretanto morreu assassinada... Esse processo de transição de poder falhou, e só a inércia do formalismo manteve as eleições. Ganhe quem ganhar – e o mais provável é que seja o PPP*** – o que se segue é verdadeiramente uma incógnita...
* Período colonial britânico.
** ICS – Indian Civil Service; CSP – Central Services of Pakistan. Em 1947, 95 dos 101 membros muçulmanos do ICS transferiram-se para o CSP.
*** PPP – Partido Popular Paquistanês, que era dirigido por Benazir Bhutto.
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