15 novembro 2007

(MAIS UM…) MANIFESTO LIBERAL

Tinha aqui prometido um comentário mais longo, depois de uma leitura mais atenta, ao artigo The End of National Currency de Benn Steil, publicado na Foreign Affairs de Maio/Junho de 2007. É um texto extenso, denso e, como é característico daquela revista, mais complexo do que é habitual aparecer na comunicação social mais generalista. Embora, como já havia afirmado atrás, não nos devamos iludir sobre a argumentação técnica que contém: trata-se de um documento político. Leia-se o seu Sumário:

A instabilidade financeira global desencadeou uma vaga de nacionalismo monetário – a ideia que as nações devem ter e controlar as suas próprias moedas. Mas globalização e nacionalismo monetário tornam-se numa combinação perigosa, uma causa para crises financeiras e tensões geopolíticas. O mundo precisa que se abandonem as moedas indesejadas, substituindo-as por dólares, euros, e outras moedas internacionais que ainda estão para nascer.

O meu primeiro comentário vai para a oportunidade da publicação do artigo. É provável que o autor de há muito defenda as ideias que expõe no artigo. No entanto, é mais do que provável que à Foreign Affairs não lhe tenha escapado a oportunidade de publicar opiniões revisionistas ao sistema monetário mundial vigente depois da desvalorização progressiva que a divisa norte-americana tem vindo a sofrer ao longo dos últimos meses (e que, à data em que escrevo, não se sabe onde terminará).

Visivelmente, o artigo foi escrito por um bom especialista, como se percebe pela descrição histórica de enquadramento dos vícios que, na opinião dele, prejudicam o funcionamento dos mercados cambiais mundiais actualmente. Está cheia de factos verdadeiros, mas pejada de conclusões enviesadas, a começar, como se lê no princípio do sumário, pela tese da vaga de nacionalismo monetário que jamais deixou de existir… O que creio que há, é um fenómeno novo, como veremos mais adiante…

Mas, mesmo havendo concordância global (com discordâncias de pormenor) na evolução histórica do funcionamento dos mecanismos cambiais à escala mundial, a minha concordância desaparece quando começam as propostas de Steil para que esses mecanismos melhorem. Para ele, os tais exercícios de nacionalismo monetário (de que aponta vários exemplos, sobretudo latino-americanos) são apenas perniciosos e um bloqueio ao funcionamento harmonioso da globalização.

Mencionando-o, Steil desvaloriza as capacidades do Fundo Monetário Internacional (FMI) em lidar com esses assomos de nacionalismo monetário, quando torna o país prevaricador num pária do sistema financeiro mundial. Para Steil, numa ideia que não é desprovida de atractivos técnicos, dever-se-ia regressar às regras de funcionamento do mercado liberalizado e globalizado dos finais do Século XIX, inícios do XX, e também à indexação ao padrão ouro, abandonada desde 1971.
Nesse mercado de outrora, que Steil idealiza mais do que descreve, pois ele também esteve cheio de episódios de nacionalismo monetário convenientemente esquecidos, os poderes de soberania nacional estavam mais diluídos. Desejavelmente, seriam as forças do mercado que contribuiriam para a formação das cotações das moedas e das taxas de câmbio, independentes das decisões políticas. Acontece que já há quem defenda e implemente isso, embora de forma menos ideal e radical que Steil…

O sistema financeiro mundial é tutelado pelo Banco Mundial (BM) e pelo FMI e por, detrás deles, pela oligarquia dos países mais ricos: não é por acaso que existe um acordo informal atribuindo a presidência da primeira organização a um norte-americano e a da segunda a um europeu... E não é difícil de adivinhar quais serão as regras de funcionamento da economia privilegiadas pelos seus órgãos superiores de decisão quando são chamadas a intervir em países onde a expressão do nacionalismo monetário corre mal…

Significativamente, este modelo BM/FMI tem funcionado desde 1945, e nem mesmo potências em ascensão como o Brasil conseguiram evadir-se às regras por ele impostas. O que haverá de novo (que Steil designa por vaga), que leva à necessidade da invocação da liberdade do funcionamento dos mercados? Em minha opinião, a grande diferença é que os nacionalistas mal comportados do passado (o Brasil, a Argentina) acabavam sempre por poder ser controlados. Alguns nacionalistas do Século XXI, não…

A China parece-me ser o grande expoente do nacionalismo monetário a que Steil, curiosamente (ou não…), apenas faz referências casuais ao longo de todo o seu artigo. Com o seu superavite acumulado na Balança de Transacções Correntes (BTC), as suas reservas em divisas, a China está imune às coacções que do exterior lhe possam fazer, nomeadamente para que revalorize a sua moeda (yuan), que se encontra actualmente indexada ao dólar, conforme nos Estados Unidos têm repetidamente insistido.

Os interesses de chineses e norte-americanos não são antagónicos, no que concerne à fixação da cotação da moeda norte-americana. Mas no tal mercado aberto que propõe, e como o próprio Steil assinala, o peso da economia chinesa ainda equivaleria apenas ao da Califórnia e da Florida combinadas… A China nada teria a ganhar e a sua capacidade de influência ficaria diluída com essa abertura. Seria uma perda da sua capacidade de autonomia estratégica. Mau grado o conteúdo técnico e científico, a proposta do artigo é política e parece-me ter um destinatário.

Todo o artigo é afinal, apesar das aparências, sobre poder. Faz-me lembrar um outro artigo muito mais popular, mais extenso e mais antigo (1848), onde, a pretexto de uma análise técnica e científica (neste caso sobre história e sociologia) se concluía também pelas vantagens da globalização… Outra globalização, que o artigo tinha o título de Manifesto Comunista! O seu sumário era: Proletários de todos os países, uni-vos! Ainda hoje se pode lê-lo a embelezar cabeçalhos de muitas publicações… mas não propriamente científicas.

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