12 junho 2007

GUERRAS ESQUECIDAS (4): A GUERRA SINO-VIETNAMITA DE 1979

Esta é uma série de Guerras recentes que foram esquecidas pelas razões mais diversas, mas que são normalmente convenientes às partes envolvidas e àqueles que foram os seus apoiantes. Na minha opinião, esta Guerra Sino-Vietnamita é a grande favorita à medalha de ouro de entre todas elas: além de ser hoje uma guerra esquecida, foi sobretudo uma guerra discreta enquanto decorreu (de 17 de Fevereiro a 16 de Março de 1979), que passou quase desapercebida da cobertura mediática mundial, apesar dos milhares de mortos que causou. E, ainda hoje, quando já se conhecem os contornos gerais das operações, continua a controvérsia a respeito de como pode ser interpretado o seu resultado.
Quem a venceu? A resposta depende da forma como interpretarmos quais eram os objectivos da China quando anunciou publicamente a 15 de Fevereiro de 1979 (com dois dias de antecedência...) que era sua intenção invadir o Vietname! É que ninguém sacrifica assim descaradamente a vantagem do efeito do ataque militar de surpresa sem que tenha um outro objectivo político que considera mais valioso… Mas é melhor começar pelo princípio e pela cisão ideológica sino-soviética que se havia concretizado em 1960… No meio dela ficou o Partido Comunista Vietnamita dirigido por Ho Chi Minh e o Vietname do Norte. Para quem todas as ajudas nunca eram demais no seu objectivo de anexar o Vietname do Sul.

Durante os anos da intervenção maciça dos norte-americanos na Guerra do Vietname (1965-1972), o Vietname do Norte desenvolveu um trabalho notável e poucas vezes apreciado de equilíbrio delicado entre soviéticos (de quem recebia apoio material) e chineses (de quem recebia apoio humano – chegou a haver vários milhares de soldados chineses no Vietname a manejar o material sofisticado enviado pelos soviéticos). Mas, por altura da visita de Nixon à China (1972), a dependência norte-vietnamita dos técnicos chineses havia decrescido suficientemente para que o Vietname já pouco sofresse o impacto do realinhamento das alianças que então se verificou.

É evidente que, entre a China e a União Soviética, o aliado preferencial dos vietnamitas segundo todos os cânones da estratégia fosse o soviético; a China era a potência próxima e, não fora a presença ameaçadora próxima dos norte-americanos e a péssima exploração diplomática que estes fizeram das clivagens entre os dois grandes suportes do seu adversário, já as relações sino-vietnamitas teriam evidenciado as desconfianças históricas que os segundos sempre nutriram pelos primeiros. Arrumada a questão vietnamita com a derrota do Sul e a queda de Saigão (Abril de 1975), o Vietname unificado (Julho de 1976) tornou-se num daqueles satélites soviéticos exóticos, com sabor tropical como Cuba.
A questão próxima que terá estado por detrás da eclosão da Guerra Sino-Vietnamita terá sido o problema cambojano. Se a União Soviética era a superpotência que ameaçava a China, se a China era a grande potência que ameaçava o Vietname, então o Vietname era a pequena potência que ameaçava o Camboja. Neste encadeamento de alianças desencontradas, o aliado natural do Cambodja tinha de ser a China. Mas o regime cambodjano, dirigido por Pol Pot, tinha-se tornado num verdadeiro excesso (com milhões de executados!) e foi até com toda a passividade que a esmagadora maioria da comunidade internacional assistiu ao seu derrube pelos vietnamitas nos finais de 1978. Excepto a China.

Deduz-se que o que mais possa ter sido insuportável para a China - um verdadeiro despeito! - foi o facto de a decisão vietnamita para invadir militarmente o Camboja ter sido tomada com a aquiescência dos soviéticos, mas sem qualquer negociação prévia com os chineses. À luz desta interpretação, a decisão chinesa de invadir por sua vez o Norte do Vietname, mas numa operação limitada, tem o sentido de, tal qual acontecera com a Índia em 1962, reforçar a posição negocial da China nas decisões que o Vietname viesse a tomar sobre o futuro do Cambodja. Mas, se fosse anunciada de antemão, a invasão perderia a gravidade que poderia justificar uma intervenção simétrica dos soviéticos sobre as fronteiras chinesas… Não se sabe se é verdade, mas faz todo o sentido...

A continuação dos acontecimentos provou que precaução com os soviéticos não teria sido precisa... porque militarmente os vietnamitas souberam tomar muito bem conta de si, sozinhos… Do que se sabe sobre a evolução táctica das operações, que é escasso e onde uma parcela não vem dos contendores mas tem escapado ao longo dos anos da comunidade norte-americana das informações, a partir das fotografias por satélite com que eles acompanharam o desenrolar da Guerra, o dispositivo militar ofensivo chinês parece ter-se deparado com dificuldades inesperadas na sua missão de penetrar em território vietnamita e capturar algumas das principais regiões fronteiriças de grande significado simbólico* (mapa abaixo).
No fim, ambos os lados se proclamaram vitoriosos e há explicações (normalmente simples) que defendem essa argumentação de cada um dos lados. A do lado chinês relembra que o seu exército (Exército de Libertação Popular - ELP) conquistou de facto a capital provincial de Lang Son, o que lhe deixava aberta a estrada para Hanói, a capital vietnamita e que foi de forma voluntária que, nessa altura, suspendeu as operações e regressou à fronteira. O lado vietnamita recorda que as forças mais operacionais do seu exército estavam empenhadas no Cambodja e que foi recorrendo sobretudo aos dispositivos de defesa locais que haviam colocado o ELP naquelas dificuldades.

As simpatias da Guerra-Fria fizeram com que a leitura feita pela China fosse naquela altura escutada com muito mais bondade no Ocidente do que a versão vietnamita. Mas o tempo tende a não lhes dar razão. Como um cozinheiro esperto mas inseguro, a China anunciou de antemão que ia cozinhar um ovo, mas não detalhou se o ia estrelar, mexer ou fazê-lo em omolete… Assim, qualquer ovo que saísse da frigideira podia parecer satisfatório… A incógnita para a definição de um resultado deste conflito é a de saber quais seriam as expectativas políticas dos dirigentes chineses ao desencadeá-lo. O que nunca foi respondido e tem continuado a ser, até hoje, objecto de especulação.

Do ponto de vista estritamente táctico, a ofensiva chinesa é capaz de ter posto a nu inúmeras fraquezas de doutrina de emprego de forças do ELP, que envelhecera porque não se envolvia num conflito há 17 anos (contra a Índia) e permanecera praticamente isolado em termos teóricos desde o conflito sino-soviético de 1960. Em contrapartida o exército vietnamita (mesmo as suas unidades de reserva) contar-se-ia entre os mais bem preparados do mundo naquelas funções defensivas, batendo-se no seu próprio terreno, que conheciam muito bem. Apetece ironizar como o poder de fogo do ELP poderia parecer irrisório às suas unidades experimentadas, quando comparado com o produzido pelos norte-americanos…
Mas talvez a melhor resposta para a pergunta acima posta sobre se teriam ou não os objectivos políticos da operação punitiva desencadeada pelos chineses sido satisfeitos, se possa ir inspirar à da outra operação em moldes muito semelhantes, desencadeada contra a Índia em 1962 e já aqui tratada num poste anterior. É que nesse caso não há perguntas nem restaram dúvidas como a China conseguira o que queria: o território de Aksai Chin e o reconhecimento pela Índia que o domínio indiano sobre o Arunachal Pradesh carecia da anuência tácita da China. Ora no caso da invasão do Vietname de 1979 só as leituras rebuscadas transformam a derrota chinesa num eventual empate…

A verdade é que o ELP parece ter aprendido a lição que a saturação dos objectivos com ininterruptas ondas de infantaria, conjugada com uma indiferença pelo número de baixas sofridas** já era solução táctica ultrapassada e aproveitou as simpatias do Ocidente para iniciar a partir dali um processo acelerado de qualificação tecnológica das suas forças armadas. Para frustração da China, o Cambodja permaneceu por muitos anos um protectorado vietnamita. A antipatia e animosidade ancestral entre vietnamitas e chineses recebeu um reforço, o que provocou, acessoriamente, a expulsão de boa parte da comunidade chinesa que estava radicada no Vietname, especialmente nas cidades do Sul.

Tudo considerado, parece-me que é verdade e mais do que bravata, a afirmação que os vietnamitas no século XX venceram consecutivamente três grandes potências: França, Estados Unidos e China. Pena – como ontem frisámos para a Guiné-Bissau – que os povos reputados por grandes combatentes não sejam mais felizes por causa isso…

* As regiões de Cao Bang e Lang Son, junto à fronteira chinesa, foram as primeiras onde, durante a primeira Guerra da Indochina, paradoxalmente com a assistência chinesa, os guerrilheiros vietminh forçaram a evacuação das guarnições francesas das respectivas capitais provinciais (1950).
** Como aconteceu frequentemente na Coreia e, em menor grau, em 1962, no conflito com a Índia.

3 comentários:

  1. Mais um excelente post sobre uma guerra "sino-qq coisa".
    Permita-me chamar a atenção para o desenvolvimento humano e tecnológico que o Vietname está a sofrer nas últimas décadas.
    Provavelmente o unico conflito que a China entende não solucionado territorialmente seja com a Formosa (outra vez a falar da mesma).
    Mas acerca do Vietname (e Iraque), bem que o George Bush (Júnior) é melhor a mandar que a fazer.

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  2. Obrigado pela sua apreciação elogiosa. E faz muito bem em chamar a atenção para o desenvolvimento que o Vietname tem vindo a registar: em números tem representado um crescimento que tem situado entre os 7,5 e os 8% nos últimos anos a que há que adicionar a entrada do Vietname na Organização Mundial de Comércio (WTO) em Janeiro deste ano. Numa vertente mais humana, lembro-me de ter lido recentemente uma entrevista com Henrique Calixto, que tem sido, há vários anos, treinador de um clube local e que se afirmava satisfeitíssimo.

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  3. Ótimo post. Obrigado pelas informações.

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