31 maio 2015

O MARCO E AS OUTRAS CRIANÇAS DEIXADAS PARA TRÁS

Ao ouvir as notícias do dia dei-me, mais uma vez, conta dos modismos da adopção dos nomes próprios. Há, por exemplo, uma geração que está agora a aproximar-se dos 40 anos que está saturada de Marcos: há o treinador do Sporting, há o árbitro da final da Taça de Portugal, há o intriguista do PSD. Devê-lo-ão à série de desenhos animados (acima) que a RTP passou em 1977 e que popularizou o nome. Para quem conheça o enredo – de fazer chorar as pedras – permitam-me contar-vos que, ainda recentemente, o vi repetido ainda que com as adaptações da modernidade. Assim, nesta outra história, o Marco renegou a Mamã e passou a ser o mau da fita, mas ficaram muitas outras crianças para trás que também cantam como na saudosa apresentação abaixo:
A Mamã tem de partir, cruzando o mar, pr´outro país.
Vais-te embora Mamã. Não me deixes aqui.
Adeus Mamã. Pensaremos em ti...

«QUEM E QUE ANDA PARA AÍ A BRINCAR COM AS LUZES?»

Se no princípio deste fim-de-semana, era a SIC-Notícias a ser a origem da notícia que anunciava que Rui Rio se iria candidatar à presidência da República, no Sábado era na mesma SIC-Notícias que um dos moços de recados governamentais anunciava a sua opinião que ele faria muito mal se avançasse . Significativamente, embora já não na SIC-Notícias (porque se trata de uma não notícia), vejo o fim-de-semana a passar sem que a SIC-Notícias procure corroborar aquilo que anunciara na sexta-feira à noite e sem que Rui Rio se sinta instado a pronunciar-se sobre o que quer e/ou o que os outros querem que ele queira. Se isto acontecesse em nossa casa, não seria caso para ir chatear os putos ou os bichos lá de casa perguntando: quem é que anda para aí a brincar com as luzes? Ora, a não haver mais nada a informar, aí está uma informação da SIC-Notícias que nos interessaria sobremaneira: o nome do brincalhão...

30 maio 2015

«NOUVELLE GÉOSTRATÉGIE»

Quis o acaso que, a acompanhar o fim da minha leitura deste livro acima, hoje de manhã, a televisão estivesse a transmitir uma daquelas reportagens sobre spas e hotéis de luxo, onde a oferta gastronómica se costuma caracterizar por um requinte que costuma ser mais visual do que olfactivo e gustativo. E fez-se-me a sinapse: livros como o que estava prestes a acabar de ler – Focos de Tensão, os choques geopolíticos que ameaçam o futuro da Europa – representam para a disciplina o mesmo que a nouvelle cuisine representa para a cozinha. O livro foi editado este mês (Maio/2015) e é mérito da editora D. Quixote que o tenha feito apenas três meses depois da publicação da versão original – Flashpoints, the emerging crisis in Europe. O autor, George Friedman, tem uma reputação constituída como fundador e CEO da Stratfor, uma empresa fundada em 1996 que se reclama a líder mundial em informações geopolíticas e globais. E quando se acaba de ler o livro não se consegue perder essa sensação de que o livro é mais uma obra de promoção da organização do que propriamente uma obra de autor. Numa linha de regularidade editorial – há mais dois livros do mesmo autor e do mesmo género - que a editora D. Quixote põe – e bem – à disposição dos leitores interessados por estes assuntos. Porém, como acontece com a nouvelle cuisine, o problema deste género de livros - que, confesso, duvido que tenham sido integralmente escritos por quem empresta o nome para a capa - é a substância do que nos é proposto, que não consegue ser camuflada com os equivalentes históricos e estratégicos das palavras ricas de pomposidade dos menus daquele género de cozinha como emulsionar, confitar, reduzir ou acamar.
Podem-se impressionar os leigos deslumbrados com umas generalidades sobre a História da Europa, mas os erros, sejam eles conceptuais ou factuais estão lá (exemplo: Em 5 de Maio de 1945, Adolf Hitler cometeu suicídio.- lê-se logo na primeira frase do 5º capítulo que começa na página 135. Ora em qualquer biografia se pode ler que Hitler se havia suicidado em 30 de Abril de 1945. Pela pessoa em causa, é um erro demasiado grosseiro de tolerar), e multiplicam-se a um tal ritmo que acabam por sabotar a credibilidade que possamos atribuir às análises geopolíticas sobre as regiões de tensão na Europa que nos são apresentadas. Mas a analogia da nouvelle géostratégie com a nouvelle cuisine não acabará aí. Como um prato exuberantemente agradável à vista mais do que saboroso, os cenários estratégicos ali destacados para o futuro tendem a enredar-se numa configuração destinada sobretudo a suscitar a concordância do leitor menos avisado, em detrimento da plausibilidade desses cenários. Não é em vão que, quando procuramos na bibliografia passada de Friedman, podemos encontrar uma preciosidade escrita em 1991 sob o título The Coming War with Japan - a que, compreensivelmente, ele não dá muito destaque. A segurança dos 25 anos entretanto decorridos permitem-nos dizer que, se o título era excelente (Friedman antecipava ali a importância da conflitualidade económica crescente entre os Estados Unidos e o Japão), a acurácia das previsões do que estaria para acontecer é que se vieram a revelar bastante menos conseguidas. Nisto de se querer ser profeta também não se pode abusar da sorte... Focos de Tensão é o livro ideal para se ler num fim de semana relaxante num spa - antes de um desses jantares de nouvelle cuisine...

29 maio 2015

«HOLD-UPS» REVOLUCIONÁRIOS

A triste história que abaixo se contou da candidata Arlete Vieira da Silva não nos deve fazer esquecer outros casos, esses de sucesso, de quem se dedicou ao crime revolucionário. Há quem tenha desviado um navio, um avião, assaltado um banco e acabado homenageado com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, como é o caso de Hermínio da Palma Inácio (1922-2009). Nem se compreenderia de outro modo: quem gamou 29 mil contos num hold-up em 1967 (o equivalente a cerca de 9 milhões de euros actualmente) merece a maior Cruz da Ordem da Liberdade que se possa arranjar! O que já não se enquadrará no espírito de Abril é perguntar pelo destino de tanto dinheiro, que seria teoricamente arranjado para financiar a insurreição armada que deitaria abaixo a ditadura portuguesa. Abaixo leia-se a transcrição da notícia tal qual foi publicada no Diário de Lisboa de 19 de Maio de 1967, detalhada, apesar de censurada e remetida para uma discretíssima página 12.
DESCONHECE-SE O PARADEIRO DOS QUATRO INDIVÍDUOS
que assaltaram na Figueira da Foz a delegação do Banco de Portugal

Figueira da Foz, 19 – Quatro homens armados com pistolas de 9 milímetros munidas de silenciador, de mãos nuas e cara descoberta, assaltaram a filial do Banco de Portugal desta cidade, cometendo o maior roubo da história do crime em Portugal, e praticado em circunstâncias que nunca entre nós se tinham verificado.
Foi em plena luz do dia, na Praça Velha, uma das mais movimentadas da Figueira da Foz, e a cerca de oitenta metros das instalações do Comando da P.S.P. da cidade que o assalto se praticou cinco minutos antes das 16 horas de anteontem.

O assalto

Às 15 e 55 de quarta-feira, o sr. Baltazar Traveira, industrial da Figueira, saía da filial do Banco depois de ali ter pago uma letra de seis mil escudos. Traveira olhava ainda o impresso da letra quando sentiu um volume duro contra o estômago e ouviu uma voz dizer-lhe: «Para dentro e depressa». Outros três homens entraram depois deste que falara. Todos eles empunhavam pistolas de guerra e em menos de meio minuto imobilizaram as 16 pessoas que se encontravam dentro do estabelecimento.
- Eram só aqueles quatro, que nós víssemos. Depois de nos mandarem encostar a uma parede, de mãos no ar, falaram com o gerente, sr. Américo Gonçalves, dizendo-lhe que guardavam as suas filhas como reféns e que o melhor que ele podia fazer era não complicar as coisas e abrir a casa-forte – relata o sr. Baltasar Traveira.
Enquanto um dos assaltantes desenrolava um embrulho de papel pardo que continha sacos de linho, do tipo daqueles utilizados para transportar açúcar, os outros três do grupo corriam os estores das portas-janelas do Banco e tomavam posições.
- O mais alto e magro que vestia um casaco azul ás riscas e usava um boné aos quadradinhos pretos e brancos, e que parecia ser o chefe, guardou a pistola e foi-se postar do lado de fora da porta. Antes, porém, avisou todos os que estavam no interior no sentido de que não fizessem nada para que nada lhes pudesse acontecer – contou-nos ainda o sr. Baltasar Traveira.
Com esta testemunha ocular, encontravam-se ainda dentro do edifício o dr. António Conceição Custódio, médico da próxima povoação de Alhadas, duas crianças filhas de um contínuo do Banco, que ali tinham ido dar um recado ao pai, uma mulher de limpeza e outro cliente, o alfaiate Elísio dos Santos Ferreira, de Marinha das Ondas, além de 10 funcionários do Banco.
Um dos quatro indivíduos segurou então os sacos que o assustado sr. Américo Gonçalves enchia de notas.
« - Essas não nos interessam. Vamos mas é a deitar das de 500 e de mil» – teria dito esse assaltante ao gerente.
Pouco depois, ainda quando esta fase da operação se desenrolava, um dos assaltantes fechava os clientes nas instalações sanitárias. Como se disse, o individuo que parecia ser o «cérebro» do grupo continuava do lado de fora, vigiando, a fim de fazer face a uma eventual e desagradável surpresa.
Vinte e cinco minutos depois da entrada do grupo no Banco, os sacos estavam cheios, os clientes continuavam atemorizadamente em silêncio na casa de banho e os dois gerentes encerrados na casa-forte.
Cá fora, sob um sol pálido e uma temperatura fresca, a vida continuava normalmente, as camionetas enchiam-se de passageiros e um polícia de giro passeava no passeio em frente da porta do Banco...

A fuga

Julga-se que os quatro homens houvessem tomado, então, um carro da marca «Taunus» e que foi encontrado abandonado junto ao aeródromo de Cernache, onde a secção de aeronáutica da Associação Académica tem os seus aparelhos.
Na verdade, os assaltantes devem ter seguido nesse automóvel da Figueira da Foz para Cernache, pela estrada de Soure e de Condeixa, a toda a velocidade. Trata-se de uma estrada pouco frequentada, o que permite uma marcha acelerada e descuidada, apesar de alguns troços se encontrarem em reparação. Alguns operários que ali trabalham lembram-se, de facto, de «um carro de cor clara a toda a velocidade» que pouco depois das cinco horas ali passou em direcção a Cernache.
Uma vez no aeródromo, os quatro homens distribuíram entre si as seguintes tarefas: o mais alto, que parecia dirigir a operação, ocupou os comandos de uma pequena avioneta «Auster V6D5», vermelha, com o Pato Donald pintado na fuselagem, e de matrícula CS-AMW, de Coimbra, pertencente à Associação Académica.
Dois outros ocuparam-se a amarrar o guarda do campo e a mulher deste, além de um director da secção de aeronáutica da Associação Académica, o estudante Sá e Melo, manietados pelos pulsos e tornozelos com cordas finas de fibra de «nylon». O outro foi ao fim da pista chamar três pedreiros que ali trabalhavam, a fim de estes «irem tomar um copo». Claro que, em vez do «copo», havia mais um novelito de corda para os manietar, indo ocupar um canto da sala de arrecadações, de pernas estendidas.
- Aquele mais alto e de bigode e um dos outros já eu conhecia, pois há cerca de um mês que aqui vinham alugar aviões para filmarem as ruínas de Conimbriga. Diziam que eram arqueólogos – relatou-nos a mulher do guarda sr.ª Maria Cândida Dias Ferreira, de 31 anos.
Além dos indivíduos já referidos que ali ficaram amarrados: o estudante Sá e Melo, o guarda Carlos Alberto Alves de 34 anos; a mulher deste, Maria Cândida, de 31; os pedreiros, Sá, Manuel Ferreira e António Ferreira, havia ainda António Alberto Alves, de 6 anos, e Cremilde Dias Ferreira Alves, de 4 meses, filhos dos guardas do campo.
Uma vez tudo pronto, os quatro assaltantes tiraram as chaves de ignição de dois carros estacionados junto do aeródromo, inutilizaram os motores destes e do próprio carro que abandonaram e levantaram voo na pequena «Auster», depois de terem abastecido o depósito com mais 144 litros.
Segundo o trabalhador rural Adriano Simões, que a cerca de um quilómetro, enquanto rocegava mato, observou toda a cena sem nada compreender, o avião descolou ás 17 e 40. Só cerca de meia hora mais tarde o alarme era dado na Figueira da Foz e só depois das 19 horas o estudante Sá e Melo se libertava das cordas que o prendiam, para correr um quilómetro e pedir uma boleia a um automobilista, a fim de poder telefonar para Coimbra o insólito roubo da avioneta, que naquele momento ainda ninguém relacionava com o assalto da Figueira, praticamente desconhecido devido a dificuldades de comunicação.
No carro abandonado junto á pista do aeródromo, as autoridades descobriram mais tarde três pistolas de plástico para crianças, imitações perfeitas das «Lugger» (sic), e uma pistola-metralhadora do mesmo material, perfeitamente inofensivas. Ontem mesmo surpreendemos o pequeno António Alberto Alves a brincar com uma pequena imitação do modelo «Beretta», em plástico, de coronha dourada e cano preto, de baquelite.
- Isso era para assustar os ladrões? – perguntámos ao pequeno filho dos guardas.
- Não, senhor. Isto deixaram cá eles ontem.
Segundo o mecânico do campo de aviação, a «Auster» pode alcançar uma velocidade de cruzeiro de 100 milhas horárias, comportando apenas três pessoas, e tem um raio de acção de cerca de três horas e meia de voo.
Para além de se reconhecer os méritos de uma reportagem jornalística de qualidade (de nos deixar saudades), inveje-se a meticulosidade do plano e a operacionalidade dos executantes – Palma Inácio, que é, na reportagem, repetidamente reconhecido como o líder do gangue, Camilo Mortágua, Luís Benvindo e António Barracosa – mas também a capacidade posterior dos protagonistas em terem conseguido, com o tempo, transformar toda a operação, que se percebe pela leitura ter-se revestido de uma certa violência (não foi por acaso que tantos acabaram amarrados e sequestrados...), numa espécie de happening que se vai comemorando com regularidade e até com saudade (ainda o foi, mais uma vez, no mês passado, como se lê acima*), acompanhada de uma ligeireza de história de BD das proezas dos irmãos Dalton ou de um dos filmes de gangsters de Woody Allen...

* Por sinal, o cartaz está ilustrado com as notas de 100 escudos que os assaltantes não quiseram levar.

28 maio 2015

A ARLETE TROTSKISTA FRANCESA... E A NOSSA


As eleições presidenciais francesas que se realizaram em Maio de 1974 (no mês seguinte ao 25 de Abril, portanto) ficaram marcadas, entre outros pormenores, pelo aparecimento de uma primeira candidata presidencial, a sindicalista trotskista Arlette Laguiller, então com 34 anos. E que não se saiu nada mal no primeiro turno dessas eleições, recebendo quase 600.000 votos, o correspondente a 2,33% da votação (acima). Dois anos passados e inspirados na ideia e no seu sucesso, os trotskistas cá do sítio lembraram-se de a tentar reproduzir por ocasião das eleições presidenciais portuguesas de Junho de 1976. O trotskismo cá no burgo era representado por duas organizações: a LCI (Liga Comunista Internacionalista), a que aqui me referi ainda recentemente, e o PRT (Partido Revolucionário dos Trabalhadores).
Se a LCI se notabilizara por ter tido o pior resultado de todos os partidos nas eleições constituintes de Abril de 1975 com 10.835 votos e 0,2%, o PRT, que a essas não concorrera, notabilizou-se por ter tido o pior resultado nas eleições legislativas seguintes, em Abril de 1976, metade do resultado do piro resultado ano anterior: 5.171 votos e 0,1%. Não se pode considerar por isso que houvesse uma vaga de fundo popular a impulsionar a candidata trotskista, embora o nome viesse mesmo a calhar: Arlete, como a outra, embora Vieira da Silva, com um nome assim metade da promoção já estava feita entre as nossas elites afrancesadas. Arlete, uma mulher, uma trabalhadora, uma revolucionária, como constava dos folhetos que promoviam a candidatura, a que se somava um passado como deve ser, com problemas com a justiça injusta de um estado que até há bem pouco fora fascista.
Até que os esclarecimentos de uma outra esquerda tornaram evidentes que os problemas não haviam sido com a PIDE mas com a PJ, a literatura subversiva e os folhetos revolucionários apreendidos haviam sido simplesmente cheques sem provisão, vários e distribuídos com equidade por membros da burguesia, as unidades colectivas de produção haviam sido electrodomésticos que haviam ficado por pagar... Enfim, até os adeptos da revolução permanente consideraram deixar de haver condições objectivas e subjectivas para que Arlete se pudesse apresentar ao sufrágio. Num folheto explicativo do PRT, denominado POR QUE RETIRAMOS O NOSSO APOIO À CANDIDATURA DE ARLETE VIEIRA DA SILVA (abaixo), chegam a ler-se passagens que nos condoem pela sua ingenuidade política: ...temos que lamentar que os jornalistas de O Diário (matutino da época, totalmente enfeudado ao PCP), conhecendo como conhecem a Arlete Vieira da Silva bastante melhor e há muito mais tempo que nós não tenham avisado o nosso Partido de certos aspectos pouco claros da bibliografia (sic) apresentada inicialmente, optando por publicar em vez disso um Editorial com algumas insinuações equívocas.
Ninguém anda na política para ajudar os outros e os comunistas muito menos que ninguém. Mas talvez isso ajude a explicar porque, quando nas eleições presidências de Junho de 1976, Octávio Pato, o candidato oficial do PCP, veio a receber humilhantemente menos de metade dos votos de Otelo Saraiva de Carvalho que representava a extrema-esquerda não-alinhada (e onde se contavam também os trotskistas), se tenha feito sentir por aquelas paragens ideológicas uma certa alegria da desforra. Quanto às Arletes, a francesa gostou e habituou-se, concorrendo às presidenciais francesas de 1974, 1981, 1988, 1995, 2002 e 2007, da portuguesa não se soube mais nada, nem sequer se continuou no ramo depois da popularização do multibanco...

AOS LEITORES

Algo que se aprende a valorizar escrevendo num blogue com regularidade: os contributos de quem nos lê. Que podem ser muito distintos de quem diz que nos lê ou de quem se afadiga a demonstrar-nos que nos lê. Há a leitura actividade propriamente dita e há – sempre houve – a admissão social da leitura, que é algo imensamente distinto e que, mesmo quem já publicara livros antes destas aventuras na internet, nunca eu aprendera a distinguir, talvez porque era mais fácil de camuflar. Mas a diferença sempre lá estivera: quem lera AS GORDAS e quem se dera ao trabalho de ler o artigo propriamente dito. Na rede, quem efectivamente lê com interesse distingue-se nos pormenores: o de quem, a propósito do poste imediatamente abaixo, me esclarece pessoalmente que pesquisou e encontrou os discursos de Eanes compilados por mandato sob o título de... Discursos; ou então quem me avisou, também discretamente e aqui há uns dias, a propósito de um poste sobre a Pietà, que aquela designação se refere, não à escultura de Michelangelo que eu nomeava, mas a um tipo de representação religiosa, a de Nossa Senhora com Cristo nos braços. Porque esta ocasião é tão boa quanto outra qualquer, a ambos, ao João Tiago Tavares e ao Francisco Teixeira e, através do exemplo activo mas invisível deles, a todos os que efectivamente lêem com a pachorra que o tempo lhes disponibiliza o que por aqui vou deixando escrito, endereço os meus mais cordiais agradecimentos. A fotografia é de Andreas Heumann.

27 maio 2015

IRRELEVÂNCIAS VI

Não consegui descobrir como Eanes terá feito no seu mandato mas, a partir de Soares, os presidentes habituaram-se a publicar anualmente um livro compilando os seus discursos no cargo. Soares deu-lhes o nome de Intervenções, Sampaio o de Portugueses, Cavaco o de Roteiros, todos eles são seguidos de um (assustador) cardinal do ano do mandato a que correspondem: Intervenções 2, Portugueses Volume I, Roteiros VIII como se vê na imagem acima. Sendo o género de livros que só os imagino a serem lidos por obrigação, aquele número do fim dá-nos um retoque que – perdoe-se-me o castelhanismo – resulta fatal. Há (ou haverá) dez volumes distintos de cada um! Não se sabe quem irá suceder a Cavaco Silva mas é assunto que não me entusiasma, que as putativas promessas que por aí correm de quem já se declarou candidato ao cargo, ainda mais esmorecem. De há muito se percebeu quanto o cargo presidencial foi esvaziado de poder em 1982 ou que a prática tem demonstrado que a reeleição para o segundo mandato de qualquer presidente se transformou num ritualizado (e aborrecido) pró-forma. Mas da evolução disso não se tem discutido muito: agora porque, com o aproximar das eleições presidenciais, é inoportuno e quando o não é (a meio dos mandatos presidenciais) parece aguardar-se pelo próximo momento em que torne a ser... inoportuno. É por isso que prefiro discutir assuntos de que valha a pena falar, como o título criativo que o próximo presidente terá de dar à sua colecção de livros de discursos. Depois de Intervenções, Portugueses e Roteiros posso sugerir... Irrelevâncias. Para mim, Irrelevâncias VI será, para a História de Portugal, um belo título, pelo menos honesto, para um livro de discursos presidenciais absolutamente inúteis, simbólico da década que se aproxima.

A FUNÇÃO SOCIAL DO «MIRONE» DE ACIDENTE

Aprende-se todos os dias. Hoje, por exemplo, tenho que agradecer à jornalista Ana Correia Costa, a descoberta dos propósitos e da função social de quem gosta de permanecer por perto, contemplando e comentando, os despojos de um acidente após ele ter ocorrido – normalmente conhecido por o mirone. Ao escrever sobre um desses acidentes, aeronáutico, envolvendo uma avioneta que se despenhou, explicou-me com uma limpidez cristalina, como nunca ninguém antes fizera, as causas para o fenómeno da aglutinação daquelas dezenas de pessoas junto aos despojos como é tradicional nas horas imediatamente seguintes ao evento: Muitas pessoas foram para o local com a preocupação de saber se as vítimas eram suas conhecidas. Enganava-me eu – e tantos! – em atribuir morbidez às intenções da trupe. Aquilo são apenas manifestações de preocupação acompanhadas de um cepticismo à São Tomé – ver para crer, sabe-se lá se não se conhecerá vagamente alguma das vítimas de vista. Isto pôde explicar-me finalmente algo que há anos me intriga: porque, quando há um acidente numa das faixas de uma auto-estrada, também se forma uma imensa fila nas faixas de sentido contrário, mesmo já lá estando os carros da polícia, do INEM e dos bombeiros, cada qual a exibir as lâmpadas de emergência mais exuberantes: é obrigatório abrandarmos para ver se algum dos intervenientes não será por acaso um dos nossos primos – nunca se sabe, não é? – para depois avisarmos a família...

26 maio 2015

«BA DUM TCHCHCH!» ou A INFELICIDADE, COROLÁRIO DE UMA FORMA DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA

Nos meus tempos de Colégio Militar designavam-nas por infelicidades e a esta distância considero-as o inexorável percurso degenerativo que um qualquer humorista tem sempre que percorrer durante a sua carreira criadora, até desistir dela... ou até se consagrar – no segundo caso, e por exemplo, Bruno Nogueira já me tornou amorfo ao que diz. Infelicidade é aquela piada baseada num trocadilho tão espectável que nos faz rir pelo primarismo e/ou se presta mesmo a ser cumprimentada ironicamente com uma qualquer reacção aprovativa. Actualmente, e porque os protagonistas da stand-up comedy usa(va)m e abusa(va)m dele para assinalar ao auditório onde era para rir, consagrou-se o trecho de bateria (ba dum tchchch!) para as assinalar, de que eu aqui abaixo abuso.










A LIGA COMUNISTA INTERNACIONALISTA

Lacuna grave na minha revisitação de Abril deste ano às grandes organizações da esquerda revolucionária do PREC (e que aqui e agora procuro colmatar) foi a omissão à referência à Liga Comunista Internacionalista. O jornal da Liga intitulava-se Luta Proletária (abaixo) mas a militância da organização seria dominada pela intelectualidade e não pelo proletariado. É por isso simbólico que, na foto supra, aquilo que mais se destaca do instantâneo será a luta do militante (um intelectual), não contra a burguesia, mas contra a cola, a brocha e os cartazes, com resultados que, pelo seu encavalitamento e pela sua inclinação (cada vez mais) acentuada, decerto decepcionariam o camarada Trotsky.
Isso não impedirá que o cartaz apele para a presença num Grande Comício. Espero que o comício tenha sido efectivamente Grande, porque a votação nas urnas é que o não foi: concorrendo em 4 círculos eleitorais (Leiria, Lisboa, Porto e Setúbal), a LCI alcançou a duvidosa distinção de ter sido a formação que menos votos recebeu de todas as 12 que se apresentaram às eleições de 25 de Abril de 1975 (10.835, equivalente a 0,2%). Remate curioso: um dos militantes mais destacados da organização naqueles tempos foi Ferreira Fernandes, um dos sucessos da figura do cronista de bom senso do jornalismo actual, donde se infere que o bom senso não é inato.

25 maio 2015

CONTRIBUTOS PARA UMA MELHOR COMPREENSÃO DA NEUTRALIDADE PORTUGUESA DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL - A SUÍÇA E O CASO DÄNICKER

Alguém me sugeriu que, para que se pudesse analisar os países neutrais durante o período da Segunda Guerra Mundial com mais alguma profundidade, aqui inserisse algumas histórias de outros países para que o que aconteceu em Portugal, tantas vezes condenado, fosse visto numa perspectiva mais fundamentada. E é assim que me disponho a contar (naquele formato obrigatoriamente reduzido de um poste) o Caso Dänicker. Aconteceu na Suíça e envolveu um conjunto de manobras políticas entre as altas patentes militares locais. O coronel Gustav Dänicker (1896-1947) era, quando da eclosão da Segunda Guerra Mundial, um dos mais promissores oficiais do exército suíço. Comandava a Escola Prática de Artilharia em Walenstadt, funções que acumulava com uma cátedra de Ciências Militares na Universidade de Basileia. Um militar de reputação impecável com o único senão das suas conhecidas simpatias germanófilas – mas que incluíam um assisado e prudente distanciamento das formações políticas suíças pró-nazis. Logo após a derrota francesa a Ocidente em Junho de 1940 e da assinatura do Armistício, o Comandante-Chefe do exército suíço Henri Guisan (1874-1960, foto acima) proferiu um discurso diante de uma assembleia de oficiais reafirmando o compromisso da confederação em continuar a defender a sua conhecida neutralidade histórica (Rütlischwur) apesar da alteração das circunstâncias. As tendências pró-germânicas do coronel Dänicker – e possivelmente algum incentivo de Berlim – levaram-no a endereçar uma carta ao Comandante-Chefe informando-o que não acreditava nem no seu programa nem na sua capacidade para conduzir o país. A resposta de Guisan foi igualmente privada: satisfar-se-ia com a confiança pública do coronel.

Na Primavera de 1941, os alemães arranjaram um programa para que o coronel Dänicker visitasse o seu país de onde ele regressou mais convicto que nunca que a melhor conduta para a Suíça seria um reposicionamento mais conforme os interesses alemães. Num memorando que cuidadosamente redigiu em Maio de 1941, cinco dias depois do seu retorno, endereçado dessa vez às altas patentes militares mas também às figuras do topo da administração, ele defendeu que evitando resistir ao inevitável, a Confederação Helvética ainda poderia evitar a integração forçada na Ordem Nova europeia que surgiria com a vitória alemã. Porém, em vez de defender um pronunciamento militar ou uma Marcha sobre Berna (ao jeito da do fascismo italiano), o coronel Dänicker acabava por delegar ingenuamente em Ernst Hoffmann (1912-1986), o líder do maior partido nazi (o Nationale Bewegung der Schweiz), a tarefa de o transformar num poderoso movimento de massas que compelisse a actuação do governo federal nessa direcção (num jeito semelhante àquilo que Konrad Henlein fizera com o seu Sudetendeutsch Partei nos Sudetas checos até à sua anexação em 1938).

Convém explicar que Henri Guisan era suíço francófono (ao contrário de Dänicker que era de origem germânica), mas que também era militante da Schweizerischer Väterländischer Verband (traduzível por Federação Patriótica Suíça), uma organização de uma direita musculada, senão mesmo fascista. Haverá por isso muito pouco de ideológico e muito mais de pessoal e cultural a separar os dois homens, Guisan e Dänicker. Mas Guisan dessa vez, ao segundo desafio, resolveu contramanobrar e tornar conhecido da imprensa o memorando que recebera de Dänicker, para que houvesse um contar de espingardas que ele acreditava que se lhe iria revelar favorável. Dois dos seus comandantes de corpo assim como algumas patentes elevadas da aviação militar mostraram simpatias pelas posições de Dänicker. Mas o resto estava consigo. A posição de Guisan, embora mais perigosa a curto prazo, era muito mais bem acolhida pela opinião pública suíça (e o exército suíço é um exército de cidadãos), porque preconizava um país mais distanciado do conflito, um aspecto que ainda mais se veio reforçar quando, no mês seguinte a estes acontecimentos, a Alemanha desencadeou a Operação Barbarrosa (a invasão da União Soviética) e a guerra veio a envolver quase toda a Europa. Mas a reacção de Guisan à ameaça representada pela interferência alemã não teve nada da justiça poética do cumprimento de um desejo formulado pela maioria da população suíça: em primeiro lugar pôs os recursos do exército suíço ao serviço de um aparelho de propaganda em prol da preservação da neutralidade que defendia; havia sessões de propaganda para contrariar as dos nazis; em segundo lugar, a polícia e os serviços de informações militares acentuaram o seu controle (e infiltração) em cima das organizações de extrema-direita e pró-alemãs (note-se este último pormenor porque a SVV a que Guisan pertencia continuou a existir mesmo depois de 1945...); em Junho de 1941, 131 conhecidos nazis suíços foram presos; em terceiro lugar, os oficiais generais que haviam mostrado simpatias pelas posições de Dänicker, como o general Ulrich Wille Junior (1877-1959) foram afastados dos seus postos; e em último lugar, o próprio coronel que dá o nome ao caso, além de afastado, acabou ominosamente – estamos na Suíça! – condenado a 15 dias de detenção. A manobra alemã para, por dentro, fazer da Suíça uma aliada como o eram a Hungria, a Roménia, a Eslováquia ou a Bulgária, fracassara. Mas cadê as liberdades democráticas?...
Para quem conheça a realidade portuguesa, tudo o que acima se descreve, salvaguardadas pequenas adaptações, bem se poderia ter passado se os alemães tivessem estimulado uma figura de proa do Estado Novo conhecida pela sua germanofilia, como por exemplo o coronel Santos Costa (1899-1982), ministro do Exército, e ele se tivesse disposto a aceitar o estímulo. O desfecho, suspeito, não deveria ter sido muito diferente do que aconteceu na Suíça, com a prevalência do status quo (e de Salazar). Na Suíça, mesmo sabendo-se quanto os valores desses anos podem ser equívocos, veio a transformar-se Henri Guisan exageradamente no herói que preservou a neutralidade suíça (acima), esquecendo o resto. Em Portugal, sobre Salazar e quanto a esse mesmo assunto, o exagero é para o lado contrário, incluindo até quem tem outras obrigações por ter a pretensão de estar a falar de cátedra.

O LÁPIS PELA ORELHA E A CONTA EM PAPEL DE EMBRULHO

É desagradavelmente frequente encontrá-lo na caixas de comentários dos blogues. O processo consiste em, substituindo-se à sua inserção no contexto daquilo que se redige, dragar a passagem do texto do nosso futuro interlocutor com a qual se irá discorda, fazer um copy paste, pôr aspas no princípio e no fim e continuar a partir daí a expor, de uma forma que por vezes é quase autística, a sua opinião.

Por exemplo, em vez de se escrever

Diz-nos que o Sol nasce todos os dias. Ora eu discordo.

Apresenta-se o caso assim

O Sol nasce todos os dias (...)

Eu discordo.
Estruturalmente não estará errado. Mas formalmente é mais do que deselegante, é de uma canhestrice que me faz lembrar aqueles empregados de comércio de há uns cinquenta anos que que se passeavam de lápis atrás da orelha pelo estabelecimento, muitas vezes reduzidos ao tamanho de tocos, quiçá como um falso sinónimo de eficiência, de quem não tem tempo a perder à procura de onde o haviam deixado, tal como acontecerá neste processo do copy paste sobre a parcela do texto do interpelado. É um gesto pouco atencioso, grosseiro mesmo, para com o segundo como outrora também o era para com o cliente - quantos cabelos sebosos recordo a rodear os tocos de lápis! - que no fim e por norma recebia o que tinha para pagar numa adição feita num pedaço rasgado de papel grosso de embrulho, à laia de factura. E não raras vezes, a conta estava errada, desmentido a pretensa imagem de profissionalismo que se procurara construir...

VASCO, AS SUAS MEMÓRIAS AOS TRÊS ANOS E O DISCURSO DO FÜHRER QUE SE PERDEU

A família (...) estava à volta da telefonia, uma enorme caixa de metro e meio de altura, como (...) usavam as pessoas com dinheiro. O meu avô (...) tentava encontrar uma estação (...) a estação oficial alemã. De repente, apareceu uma voz (que depois soube que era a voz de Hitler) (...) Hitler anunciava uma ofensiva contra a linha aliada, que devia levar a Wehrmacht a Antuérpia e separar o exército inglês do exército americano. A família ficou esmagada e, tanto quanto me lembro, não houve um único comentário. Como não falava alemão, não percebi o que se passava. Mas de qualquer maneira o medo do meu avô, do meu pai e dos meus tios acabou também por se me pegar (...)

Todos sabemos quanto Vasco Pulido Valente é dotado. Quando conta estes pormenores de infância apercebemo-nos que, ainda com três anos, já ele se mostraria precocemente dotado. E, para mais, pertencia a uma família dotada: dotada em posses – possuía uma telefonia, adereço relativamente raro em 1944 – como dotada em conhecimento: avô, pai, tios eram todos suficientemente fluentes em alemão para acompanhar em directo um discurso do Führer sem trocarem comentários entre si. Ele é que ainda não falava alemão – percebe-se: ainda só tinha três anos. A descrição de Vasco Pulido Valente faz sentido com aquilo que se conhece daqueles dias. Excepto num pormenor. Nascido em Novembro de 1941, ele teria justamente completado os três anos quando a Ofensiva das Ardenas que aparece relatada teve lugar – a tentativa alemã de reconquistar Antuérpia, cravando uma cunha entre os 21º (anglo-canadiano) e 12º Grupo de Exércitos (norte-americano). A ofensiva começou em 16 de Dezembro de 1944. O episódio narrado por Vasco Pulido Valente terá assim ocorrido nos dias seguintes. O único problema é que eu não consigo encontrar esse famoso discurso radiofónico de Adolf Hitler ouvido pela família Pulido Valente. Fui procurá-lo, entre outras publicações, e porque as intervenções aos microfones por parte do Führer eram raras, a um compêndio on-line de 993 páginas com os discursos, alocuções e proclamações proferidas por Hitler entre 1922 e 1945 – incluindo até o testamento (redigido em 1945). Mas não encontrei nenhum discurso que se adequasse ao que infundiu tanto medo à família Pulido Valente.

Aqui já há uns anos (em Novembro de 2008) lembro-me que me diverti a troçar no blogue com uma aldrabice de José Sócrates que se pôs a inventar numa entrevista que, aos três anos, havia assistido a um debate televisivo que fora transmitido... mas apenas para os Estados Unidos. Mas Vasco Pulido Valente é diferente, pela sua reputação como historiador não me parece pessoa para inventar ter ouvido um discurso radiofónico que Adolf Hitler nunca proferiu...

24 maio 2015

OS DEFEITOS DO SISTEMA ELEITORAL BRITÂNICO E AS VANTAGENS DE OUTROS

Por coincidência, no mesmo dia (Sábado, 23 de Maio), Expresso e Público publicaram nas suas páginas artigos de autores de esquerda radical, Agostinho Lopes no primeiro caso, Manuel Loff no segundo, onde, na sequência das eleições britânicas deste mês, procedem a análises bastante críticas das distorções do sistema eleitoral ali vigente. Concordo com muito do que escreveram (embora lá se leiam também alguns erros primários de análise), já aqui havia expresso as minhas críticas neste blogue, vai para 5 anos, quando fiz um estudo concreto das consequências da aplicação do sistema uninominal ao caso português onde concluí que as distorções que por cá ocasionaria poderiam chegar a tornar-se politicamente absurdas. E também aqui me referi (leia-se a nota deste poste) a um fenómeno muito semelhante ao ocorrido a 7 de Maio passado, mas em 1983, quando da recondução no poder de Margaret Thatcher. Agora, o que eu estranhei - e muito - em qualquer dos dois textos, foi um desinteresse de ambos em aproveitarem a ocasião para, além da crítica, serem prosélitos sobre as vantagens comparativas dos sistemas eleitorais em vigor naqueles países que se sabe mais acarinhados ideologicamente por qualquer um deles.
A Agostinho Lopes e a Manuel Loff não terá decerto passado desapercebido o tremendo sucesso constituído pelas eleições municipais cubanas que tiveram lugar há pouco mais de um mês (19 de Abril) e estranho como lhes terá escapado como isso seria um exemplo de peso na sua argumentação do que constituiria um sistema eleitoral sem os defeitos do sistema uninominal britânico apresentados por Loff (É representativo um sistema desta natureza? Pergunta ele - E é democrático?) e por Lopes (...um tal sistema (...) assegura a continuidade, põe (...) as forças dominantes a seguro de sobressaltos eleitorais.). Ora em Cuba, o sistema deve ser representativo, deve ser democrático e as forças dominantes – o Partido Comunista de Cuba - estão sempre sujeitas a reviravoltas eleitorais inesperadas... Ainda não aconteceu em 56 anos porque o povo deve ser muito feliz: o mês passado, 90,5% dos eleitores votaram nos candidatos governamentais. Isso sim, serão virtudes de um óptimo sistema eleitoral. Agora a sério: acham que é caso para levar aqueles dois a sério?
«Monstruosidade Democrática» – para recuperar a expressão usada por Agostinho Lopes no título do seu artigo – não será muito mais o facto de ter sido a primeira vez em 56 anos que em Cuba se apresentaram dois candidatos(!!!!!!) da oposição? Ou como quem diz: sobre Democracia a sério, o que é que eles têm para ensinar aos outros?... 

«Человек с золотым пистолетом»

Segundo rezam as notícias originais, no princípio deste mês (dia 5), um passageiro de um táxi de São Petersburgo esqueceu-se no carro de um volume que transportava consigo. Um acontecimento comum em qualquer sítio do mundo, não fora o detalhe de que o volume em questão era um estojo com uma AK-47 lá dentro... feita em ouro. A AK-47 continua a ser, muito provavelmente, a arma mais carismática do mundo.
Na colecção Versace ela é oferecida, conjuntamente com os tradicionais óculos, relógios, cigarreiras e outros adereços rutilantes, numa versão folheada a ouro ao preço de 9 mil dólares. Mas esta AK-47 ora esquecida é bem mais do que aparência: é substância – é feita de ouro maciço! Só nos resta especular, como outrora acontecia no filme 007 - The Man With the Golden Gun, se o seu dono também encomendou munições do mesmo metal precioso...

22 maio 2015

CULINÁRIA TELEVISIVA E A PRETO E BRANCO

Falar-se de culinária e as imagens aparecerem-nos a preto e branco é quase sinónimo de referência (e uma reverência) a Maria de Lourdes Modesto. Quando o New York Times escreveu um artigo a seu respeito em 1987, cometeu a indelicadeza (creio que involuntária...) de a designar por Portugal’s Julia Child quando o seu programa, iniciado em 1958, precede em cinco anos o de Julia Child que só começou com o seu em 1963. Julia Child vai inspirar-se à cozinha francesa, o nosso era feito sobretudo com a prata da casa. Em rigor e por tolerância, era Julia Child que devia ser tratada pela America’s Maria de Lourdes Modesto, mas a visada é (e todos nós somos) mesmo assim, modesto(s) também de feitio, a aceitar(mos) delicadamente por novidade Gordon Ramsays e Jamie Olivers, tudo aquilo que por cá já se fazia com muito menos pose e muito mais delicadeza há mais de cinquenta anos...

UMA REANÁLISE DAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE OUTUBRO DE 1969

Sempre tive curiosidade em encontrar a informação detalhada por distritos da votação nas eleições legislativas de 26 de Outubro de 1969, aquelas que aconteceram já com Marcello Caetano à frente do governo, onde a antevisão de uma abertura do regime – a tal primavera marcelista – terá feito com que a oposição se dispusesse a concorrer até ao escrutínio. A página abaixo é da 3ª edição de 28 de Outubro de 1969 do Diário de Lisboa, vespertino situado no limiar da dissidência do regime sem estar engajadamente conotado com a oposição como, por exemplo, a República. O mapa cobre os círculos do continente e das ilhas (como então se dizia), por onde se elegeriam 108 dos 130 deputados da futura Assembleia Nacional. O resto, os círculos das províncias ultramarinas com os seus 22 deputados não tinham interesse algum em termos informativos porque não haveria qualquer disputa: a União Nacional (UN) concorria ali sozinha.
O resultado eleitoral global já o conhecia e está facilmente acessível: a UN registou uma vitória demasiado esmagadora (88% dos votos), das que levanta (mais do que) fundadas suspeitas quanto às condições em que o acto eleitoral e o escrutínio haviam tido lugar. A Comissão Democrática Eleitoral (CDE), mais ou menos controlada pelos comunistas, recebeu 10% dos votos. A Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), conotada com os socialistas, ficou-se pelos 2% (mas concorrendo apenas em 3 distritos). Havia um pouco mais de 1.800.000 eleitores recenseados e quase 700.000 (38%) abstiveram-se. Segundo as leis eleitorais em vigor a União Nacional elegeu todos os 130 deputados. Alguns deles, mais jovens e menos alinhados com os cânones do regime viriam a notabilizar-se pela designação colectiva de ala liberal.
Mas, e se as leis eleitorais fossem ligeiramente distintas e os mandatos de deputados fossem atribuídos proporcionalmente (como hoje acontece)? Será que nesse caso a oposição teria conseguido eleger deputados em 1969? Era para responder a essa questão que eu precisava dos dados eleitorais por distrito. E a resposta, após os cálculos, é: sim. Como se pode ver do lado esquerdo do mapa acima, haveria 4 deputados da oposição: 3 da CDE (2 eleitos por Lisboa e 1 por Setúbal) e 1 da CEUD (pelo Porto). Numa outra simulação, em que o número de deputados por distrito seria redistribuído proporcionalmente em função do número de eleitores aí registrados (como hoje acontece com a Assembleia da República), a representação da oposição subiria até, como se vê do lado direito do mapa acima, para 5 deputados da CDE (Lisboa, Setúbal e Aveiro) e 2 da CEUD (Porto e Lisboa).
Os quatro (ou sete) deputados em cento e trinta nunca poderiam ter posto em causa a acção governativa. Quanto à inconveniência dos seus discursos há que ter em conta que eles – oradores e discursos – só marginalmente poderiam ser mais incómodos do que muitos dos que foram proferidos naquela casa e naquela mesma legislatura pelos deputados da ala liberal. E esse seria um preço bem parco a pagar para uma imagem completamente distinta que Marcello Caetano poderia transmitir, sobretudo para o exterior, de quais eram as suas intenções para a evolução do regime. Embora tenha que reconhecer que isto são conclusões que se vêem com lucidezes de mais de 45 anos de distância, é essa mesma lucidez que permite também concluir que Caetano nunca seria protagonista que fizesse o regime evoluir para algo viável.