22 agosto 2009

O VELHINHO DO DOCUMENTO VELOSO

Começo por dizer quanto é preciso salvaguardar as devidas proporções quanto à gravidade das respectivas acusações, mas, tal qual acontece com aqueles antigos oficiais alemães que ainda vão sendo condenados por crimes de guerra cometidos durante a Segunda Guerra Mundial que agora aparecem com figuras de beatíficos avôzinhos com 90 anos e mais, também o velhinho simpático que vemos a tocar bateria na fotografia acima tem por detrás de si uma história antiga que, embora não envolva crimes com a gravidade das execuções sumárias dos nazis, também não é nada edificante para si.

O velhinho simpático chama-se Manuel Jorge Veloso, tem agora 72 anos, é reconhecido como uma das referências do Jazz em Portugal, mas há 34 anos atrás, embora estivesse já a construir essa reputação como crítico de Jazz, não era velhinho e, pelo que mostra a fotografia de época que encontrei (abaixo*), também não parecia assim tão simpático. O que terá tornado o seu nome notado nessa época (que era a do PREC, relembre-se) foi o de ter servido de nome de baptismo de uma famosa lista secreta de avaliação do pessoal da RTP, a que se juntavam as respectivas sanções: o Documento Veloso.
Aparecida em Maio de 1975 e presumivelmente roubada ao seu autor (ou autores), essa famosa lista que visava avaliar o pessoal da RTP com base em factos, objectivos e subjectivos, conhecido o seu passado e presente na empresa e as suas actuações (sic), veio a tornar-se numa arma de arremesso na luta política que ser travava então entre o PS e o PCP e um terrível embaraço para este último partido, já que o documento denunciava de uma forma suficientemente credível quais seriam as intenções dos membros da sua célula naquela empresa: o saneamento de cerca de 70 dos seus colegas…

O PCP terá procurado cortar rente toda a história, com Manuel Jorge Veloso a assumir-se de uma forma inverosímil como o autor solitário de uma lista que fora redigida, na sua explicação, como um simples apontamento pessoal que lhe teria sido sonegado abusivamente (sic). Desse apontamento pessoal constavam apreciações individuais tão eloquentes quanto: O sogro do Dr....; ...quase de certeza corrupto pelo lugar que ocupava; ...nenhum passado antifascista, talvez antes pelo contrário; beato fascista, cunhado de...; ...atrasado mental... ; ...frustrado homossexual eventualmente não activo... ou amante de…
Importantíssimo na altura, por se tornar numa demonstração pública que, apenas um ano depois da queda do fascismo já havia quem lhes queria copiar os métodos embora invocando novos valores, o episódio tornou-se hoje uma nota de rodapé da história do PREC. Mas que não o seja tanto que se arrisque a prescrever de uma avaliação política que façamos do comportamento dos comunistas quando eles se encontraram em posição de alcançar o poder em Portugal em 1975. Então eles, que sempre se mostraram tão zelosos para que não se apagasse a memória dos acontecimentos do passado, não por acaso aqueles que lhes convêm...

Tudo isto não impedirá que aqueles que ainda se lembrem desta história de um crítico de Jazz catapultado a líder de uma depuração ao melhor estilo estalinista não deixemos de esboçar um sorriso que será forçosamente irónico quando nos deparamos aqui na internet com uma lista que tivesse sido elaborada por… Manuel Jorge Veloso. No caso, trata-se da lista das suas preferências quanto aos melhores álbuns de Jazz de 2008. Nunca nos esqueçamos do significado do Documento Veloso mas que isso não nos impeça de ouvir uma das suas boas escolhas desta sua outra lista: Patrícia Barber, Snow.
*Um agradecimento especial à Ilustração Portuguesa pela preciosa fotografia de 1974.

11 comentários:

  1. As coisas que tu sabes!!!! A minha alma está pasma. gostei a música.

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  2. Eu que era funcionário da RTP e militante do PCP, à época, não tive acesso a esse documento de que ouvi falar, é certo, embora sem os pormenores que menciona. Mas o António Teixeira teve. Intrigante.

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  3. Quanto aos factos do passado que a uns convém esquecer e a outros não, ocorre-me o despedimento, esse sim, de dezenas de comunistas ou suspeitos de o serem, no 25 de Novembro, com base numa carta ou sentença atribuida a João Soares Louro, mentor do PS na RTP.

    Um despedimento com base em calúnias como se provou no tribunal (e não no boca a boca) que os devolveu à RTP ao fim de uns anos (!) de desemprego!

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  4. Na época, António Marques Pinto, houve uma muito publicitada Reunião Geral de Trabalhadores da RTP que teve lugar no Teatro Maria Matos onde se discutiu esse documento e com tanto ardor e com tanto detalhe (daí os pormenores...) que, segundo se soube depois, a reunião terá durado para aí umas 10 horas!

    Não se lembra dessa reunião? Ou não pôde estar presente (segundo me disse, pertencia à RTP Porto)?

    Por outro lado, como militante comunista que era esclareça-me sobre a organização do PCP dentro da RTP: havia uma ou duas células distintas (Lisboa e Porto) na empresa? No segundo caso, como era feita a coordenação? Funcionava bem?

    Com estas perguntas, estou a tentar encontrar a razão para que o António Marques Pinto não soubesse (ou necessitasse de saber?...) que existia um documento com aquelas características.

    Quantos aos promenores, intriga-se por bem pouco, António Marques Pinto, olhe que todas aquelas passagens saíram na altura na imprensa que não era controlada pelo PCP.

    Admito que não tenha tido acesso nem ao documento nem aos seus pormenores mas, desculpe-me a pergunta passados 34 anos: alguma vez pôs algum empenho nisso?

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  5. Começando pelo próprio acontecimento a que se refere no seu segundo comentário, o 25 de Novembro, não me consta que os seus ex-camaradas se contem entre os mais entusiastas pela sua evocação, António Marques Pinto.

    Seis meses depois do "Documento Veloso" o ambiente interno na RTP era de guerra declarada e não propriamente de "unidade anti-fascista". Segundo me informei de forma igualmente "intrigante", João Soares Louro, que o António Marques Pinto se refere como o "mentor do PS na RTP", fazia parte dos 70 "eleitos" da lista de Manuel Jorge Veloso.

    O que não desculpa, a meu ver, os seus excessos quando se encontrou na posição de se desforrar. E folgo em vê-lo, como eu, a celebrar a seriedade (que não a celeridade...) do aparelho judicial.

    Não sei é se o António Marques Pinto "encaixará" da mesma maneira os inúmeros exemplos de fascistas irregularmente saneados e a que os mesmos tribunais também deram razão...

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  6. Com tudo isto, nem retorqui à tua alma pasmada, Donagata. As minhas desculpas.

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  7. Do MJV consta o que consta e mais uns pontos que sempre se acrescentam aos contos. Do indivíduo que lhe terá roubado um papel pessoal, nada se sabe ou diz, sendo de supor apenas que tivesse prática (talvez Escola Prática) de violar correspondência particular.

    Do papel (de apontamentos?) do MJV não me consta que se falasse em despedir alguém nem se sabe se eram opiniões suas ou recolhidas de outros… Tão-pouco se sabe se eram apenas notas pessoais ou tinham algum objectivo. E para ser rigoroso nem sequer se sabe se era dele e se, a sê-lo, não seriam transcrições de opiniões de terceiros deitadas ao lixo por não terem qualquer interesse, e no lixo encontradas… Eu não sei. E quem diz que sabe nãop se apresenta.

    Por tudo isto me parece inteiramente justificada a prudência com que o “post” do António Teixeira, apesar de tudo, aborda o assunto.

    Quanto às questões que me coloca, tenho todo o gosto em dizer-lhe tudo o que sei e me recordo porque dizê-lo não trai em nada o dever e sentimento de solidariedade que mantenho com os meus ex-camaradas.

    Desde logo, posso acrescentar que as RGT’s começarm por se fazer no próprio estúdio principal (E.1) a fim de permitir usar os meios técnicos de emissão para que a reunião decorresse em ligação com o Porto que participava audiovisualmente em directo e em circuito fechado – aquilo a que hoje, com a Net, chamariamos teleconferência.

    A pretexto de libertar o Estúdio 1 do Lumiar, as RGT’s passaram para o Maria Matos – julgo que por termos lá meios instalados, mas não posso assegurar. Estive em algumas, se não em todas essas tele-reuniões e participei activamente com o meu mau-feitio. E, no entanto, não me lembro da tal discussão sobre o caso que trata – o que me faz pensar que estaria noutra "frente" – não tenho preconceito em usar o termo. Lembro-me sim de um camarada me contar que constava que teria sido encontrado um papel … (sem os detalhes que invoca, e por isso a minha surpresa).

    Mas eu não disse que não tinha conhecimento de se ter falado desse papel! Não conhecia nem conheço os pormenores de conteúdo que cita e, deduzo agora da sua resposta, terá lido em jornais e completado com fontes que não quer citar e que não sei se serão parte interessada.

    A época era de grande efervescência política e os problemas nacionais propriamente ditos não davam tempo para grandes reflexões sobre um papel com notas pessoais… roubado. A mim não davam. Episódios deste teor que aparente ou realmente comprometiam militantes de um ou outro partido, davam um livro – talvez um livro de humor, aos olhos de hoje.

    Posso informá-lo que as células do PCP da RTP eram duas, realmente. E que, como em qualquer outro partido ou organização, suponho, comunicavam entre si no que interessava comunicar e funcionavam em separado no que dizia directamente respeito a cada uma delas.

    Quanto ao meu empenho em esclarecer o caso Veloso, não leve a mal que não lhe preste essas contas. Mas posso dizer-lhe que estava muito interessado em saber com pormenor e detalhe o papel que um outro Veloso, Pires, e General, desempenhava no processo político, passando inclusivamente pela própria RTP-Porto, que perigos reais estava a correr a revolução democrática, donde vinha a tentativa de retorno ao fascismo e como evitá-lo no terreno (sem metáfora). Na convicção de que não era o papel do Veloso, José Manuel, que trazia essa ameaça.

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  8. Quanto ao parágrafo em que manifesta a sua preocupação com o alegado saneamento de fascistas, apenas comento, para resumir, que “encaixar” não é o meu forte. Sou mais de encaixotar.

    E em relação à suposição que faz sobre os meus ex-camaradas (e outros !) despedidos no 25 de Novembro, alguém está a enganá-lo. Espero que não sejam as mesmas fontes do caso Veloso.

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  9. Ok! Gostaria apenas de deixar esclarecido que não manifestei a minha “preocupação com o alegado saneamento de fascistas”. Primeiro, porque discordo que o saneamento tenha sido alegado mas, pelo contrário, a esmagadora maioria das vezes foi muito real. Depois, porque a preocupação expressa por mim foi sobre o carácter irregular e ilegal de quase todos esses saneamentos, que mais tarde tiveram que ser compensados judicialmente – tal qual aconteceu com os seus camaradas da RTP saneados depois do 25 de Novembro, mas também terá acontecido (corrija-se se estiver errado…) com Ramiro Valadão… Quanto ao outro Veloso que menciona, mais do que um perigo, é um tonto e sobre este último comentário confesso ter várias fontes idóneas que não revelo…

    É sempre um gosto discordar de si, António Marques Pinto, e desta vez, se não se importa, deixe para mim o remate irónico final. Se estas discordâncias, como o António Marques Pinto costuma dizer, “não me tiram o sono”, também já me apercebi que alguma outra causa lhe tirará o sono a si, consideradas as horas a que costuma afixar os seus comentários…

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  10. Agradeço uma vez mais a atenção e talvez alguma tolerância que dá aos meus comentários nos quais está implícita a consideração que me merecem os seus artigos.

    Acredito sinceramente que o seu antifascismo seja tão veemente quanto o meu, independentemente do comentário que o seu texto me mereceu. Talvez noutra oportunidade possamos “trocar algumas ideias sobre o assunto” (como diria Mário de Carvalho), nomeadamente em relação à RTP.

    Quanto ao meu sono, a sua ironia tem todo o cabimento, claro. E só mesmo por ironia é que desta vez escrevo antes do sol se pôr
    .

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  11. Para ressalva, deixe-me dizer-lhe, António Marques Pinto, que não me considero antifascista embora aceite muito honrado o elogio implícito ao qualificar-me como tal.

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