20 maio 2006

OS ESPÁRTACOS* DE SÃO PAULO

A conhecida revolta dos gladiadores e dos escravos dirigida por Espártaco (na pessoa do actor Kirk Douglas) foi apenas o terceiro episódio (e o mais sangrento) de um conjunto de insurreições de escravos conhecidas pelas Guerras Servis.

Embora a expressão tenha sido gozada e usada como trocadilho por René Goscinny no seu Astérix: O domínio dos deuses **, as histórias das três grandes revoltas de escravos do período da República Romana (135-132 AC, 104-103 AC e 73-71 AC) nada tiveram de cómico. Muito pelo contrário. Mas a severidade da repressão não impediu o reaparecimento do mesmo fenómeno na geração seguinte.

São objecto de especulação da historiografia moderna sobre quais seriam as razões fundiárias, económicas e sociológicas que estariam por detrás da erupção a intervalos quase regulares (uns 30 anos), em regiões próximas (Sicília e sul de Itália) de revoltas de características tão similares.

Embora as explicações apontadas sejam variadas, e as sociedades da Antiguidade, no geral, não sejam conhecidas pela sua solidariedade para os que ocupavam as bases da pirâmide social, as razões parecem ter desaparecido porque não há registo de mais revoltas com as mesmas características durante o período imperial que se seguiu.

Para voltar a assistir a organizações estruturadas e numericamente numerosas de marginais é preciso chegar ao século III, quando, para além das muito mais famosas invasões dos bárbaros, os registos começam a evidenciar um progressivo decréscimo do volume de comércio, atribuído pelos contemporâneos à insegurança das vias de comunicação.

Há até quem considere que comece aí o processo de feudalização, porque se criam condições para que só o vizinho latifundiário, mais rico, consiga assegurar ao agricultor isolado a segurança que o estado central já não consegue estabelecer.

Esta pequena dissertação sobre o sucesso ou o fracasso do estado central da Antiguidade clássica e a sua capacidade de poder derrotar outros poderes que surjam dentro das suas fronteiras para o desafiar, surgiu-me a propósito do expressivo significado dos acontecimentos recentes em São Paulo.

É evidente que, os estados modernos, o estado brasileiro em concreto, dispõem das condições materiais para reagir a situações de desafio como as que foram colocadas pela liderança dos reclusos e vencê-las. O problema põe-se na pergunta seguinte, quando se quer saber se dispõem das condições políticas para o fazer.

Por um lado, não deixa de ser paradoxal que o fenómeno apareça agora, anos depois do fracasso de uma teoria política que postulava que as lutas se travavam ao longo das fracturas horizontais que criam nas pirâmides sociais das próprias sociedades. Parece ser isso mesmo o que está a acontecer agora no Brasil, só que, aparentemente, os revoltosos dispensam-se de grandes elaborações teóricas para justificar a sua conduta.

Nesse particular aspecto, fazem lembrar a simplicidade do fascismo de Mussolini que, à falta de um elaborado programa político, queria “governar a Itália”, o que, de facto, veio a acontecer. Só que em vez dos bairros das classes médias, os seus santuários ficam hoje nas favelas.

Só que, do outro lado e precisamente naquela região do Mundo, as chefias militares costumam indignar-se com muita frequência sempre que há “sinais de desrespeito” pela ordem estabelecida. E os tais bairros das classes médias gostam de segurança e o verde – ou o camuflado – são cores muito reconfortantes nesse aspecto.

No meio, anda um regime que, não jurando pela sua democraticidade, costuma escolher alguns dos seus representantes mais significativos recorrendo a actos populares de colocação de votos em urnas eleitorais. Mas parece que continua a haver algo de substantivo que precisa de mudar dentro da sociedade brasileira.

* O recurso à figura de Espártaco não se destina a demonstrar simpatia pelos revoltosos paulistas. Espártaco é uma personagem histórica, tornada simpática por Hollywood.

** - Toquem a Alerta! Isto é uma Guerra Servil! – diz o Centurião
- Pois sim, mas eles não são nada servis! – responde o legionário. (p.21)

2 comentários:

  1. Parece-me que há muito mais de "Máfia" que de "Espartaco" nesta demonstração de força.
    Porém, como era de esperar, embora exista uma influência enorme dos italianos em S. Paulo, a "Camorra" escolhe melhor os alvos a atingir, o que não sucedeu neste caso, com a improvisação a ter um papel preponderante!
    (Não sei onde vieram buscar o exemplo!).
    A tentativa de criar um caos não resultou, plenamente, apenas devido a esse "pormenor".
    Por alguma razão, táctica e técnica têm grafia semelhante mas, uma sem a outra, produzem resultados desastrosos, como ficou provado.

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