Como acontece frequentemente nas histórias nacionais, a história da nação (Somália) e a do seu povo (somali) acabam por divergir ligeiramente, porque nem toda a população da Somália é somali, nem todos os somalis são cidadãos da Somália. A maioria das razões invocadas para as grandes disputas internacionais resultam de um daqueles factores, e este mais recente, envolvendo a Somália e a Etiópia, não é excepção.
Como também acontece frequentemente, a história dos somalis antecede em muito a constituição do estado que tem o seu nome. Há referências escritas – pelos árabes - às populações nómadas que são hoje conhecidas por somalis desde o final do primeiro milénio (século IX e X). Os comerciantes árabes, já instalados nas cidades litorais, viram-nos chegar e substituir os africanos bantos no predomínio das regiões do interior.
Sendo nómadas, note-se que somali é uma designação genérica que abrange cinco grandes grupos (Dir, Issak, Darod, Hawiye e Sab), que por sua vez se subdividem em clãs e estes em tribos. O cimento que reagrupa esta enorme heterogeneidade é a língua somali, um idioma falado por 10 a 16 milhões de pessoas. E a variabilidade desta última estimativa é também indicativa da instabilidade da situação em que se vive naquela região.
Pertencendo desde há muito à esfera de influência da civilização muçulmana – os Darod foram o último grande grupo somali a abraçar à religião muçulmana no século XVI – só mesmo nos finais do século XIX (na década de 1880) é que os europeus vieram a estabelecer as suas colónias em terras somalis. E estas acabaram por ser repartidas por quatro soberanias distintas, uma das quais nem era europeia: italiana, britânica, francesa e etíope.
Para franceses (Djibuti) e ingleses (Somaliland), o critério para a configuração das respectivas colónias foi o do estabelecimento de entrepostos marítimos à entrada do Mar Vermelho, que se havia tornado numa artéria indispensável, depois da construção do Canal do Suez, para a ligação marítima entre as metrópoles e as suas grandes possessões asiáticas: a Indochina francesa e a Índia britânica. Pelo contrário, para a novíssima Itália (unificada em 1861) a parcela da Somália que lhe havia calhado – a maior – era uma questão de prestígio.
Por conveniência do equilíbrio de poderes entre europeus, uma parcela do interior, semi-desértica, conhecida como o Ogaden, foi atribuída à Abissínia (hoje Etiópia), que foi o único estado africano a ter permanecido independente durante esta fase da partilha do continente* pelas potências europeias e que, como vemos por este caso, até se beneficiou com ela. Traçadas as fronteiras, a Etiópia ficou com a contar na sua população com uma significativa minoria somali (6%), para mais extremamente concentrada nas suas regiões orientais.
As ambições de reunificação pan-somalis foram um pretexto assumido pelos italianos em nome dos seus colonizados nas suas manobras para a anexação da Etiópia que, tentada uma vez em 1896 e culminada num indecente fracasso (foi o único registado em África…), só veio a ser concretizado em 1936 (com a reconfiguração da fronteira que se vê na imagem de cima da direita) para ser imediatamente desfeita com a derrota italiana pelos britânicos logo no início da Segunda Guerra Mundial (1941).
As duas maiores colónias somalis (a italiana e a britânica) reuniram-se em 1960 para constituírem a nova Somália independente. Todavia, quando a antiga Somália francesa, se tornou independente em 1977, com o nome de Djibuti, não se reuniu ao restante conjunto. O novo país poderia beneficiar da circunstância de se vir a tornar o porto de trânsito de todo o comércio etíope com o exterior por via marítima, na eventualidade da Etiópia vir a perder os portos da Eritreia, o que veio a acontecer em 1993, quando esta última região se tornou um país independente.
Tendo a relação entre etíopes e eritreus permanecido regularmente tensa desde aí, por causa de disputas fronteiriças que ficaram por resolver, Djibuti tem beneficiado por ter seguido uma política externa autónoma e distinta da dos seus vizinhos somalis que, além de uma dinâmica expansionista relativamente aos países vizinhos (Etiópia, Djibuti e Quénia), são também conhecidos por uma dinâmica permanentemente quezilenta entre os seus vários clãs. Tanto, que são um dos raros países do mundo onde não se reconhece a existência - porque não existe! - de uma autoridade central.
Estes recentes episódios que, mais uma vez, parecem pôr em confronto etíopes e somalis (há somalis dos dois lados do conflito) parecem ser uma combinação de disputas internas e externas a que há que adicionar o factor picante e moderno do extremismo religioso propagandeado por um dos lados, um movimento designado por União dos Tribunais Islâmicos que, para além de estar a tentar controlar o resto da Somália que ainda escapa ao seu controle, fez transbordar esse conflito para as regiões de etnia somali dos países vizinhos. Essencialmente, nada de realmente novo, talvez apenas uma refrescada cobertura mediática a respeito dos litigantes.
Como também acontece frequentemente, a história dos somalis antecede em muito a constituição do estado que tem o seu nome. Há referências escritas – pelos árabes - às populações nómadas que são hoje conhecidas por somalis desde o final do primeiro milénio (século IX e X). Os comerciantes árabes, já instalados nas cidades litorais, viram-nos chegar e substituir os africanos bantos no predomínio das regiões do interior.
Sendo nómadas, note-se que somali é uma designação genérica que abrange cinco grandes grupos (Dir, Issak, Darod, Hawiye e Sab), que por sua vez se subdividem em clãs e estes em tribos. O cimento que reagrupa esta enorme heterogeneidade é a língua somali, um idioma falado por 10 a 16 milhões de pessoas. E a variabilidade desta última estimativa é também indicativa da instabilidade da situação em que se vive naquela região.
Pertencendo desde há muito à esfera de influência da civilização muçulmana – os Darod foram o último grande grupo somali a abraçar à religião muçulmana no século XVI – só mesmo nos finais do século XIX (na década de 1880) é que os europeus vieram a estabelecer as suas colónias em terras somalis. E estas acabaram por ser repartidas por quatro soberanias distintas, uma das quais nem era europeia: italiana, britânica, francesa e etíope.
Para franceses (Djibuti) e ingleses (Somaliland), o critério para a configuração das respectivas colónias foi o do estabelecimento de entrepostos marítimos à entrada do Mar Vermelho, que se havia tornado numa artéria indispensável, depois da construção do Canal do Suez, para a ligação marítima entre as metrópoles e as suas grandes possessões asiáticas: a Indochina francesa e a Índia britânica. Pelo contrário, para a novíssima Itália (unificada em 1861) a parcela da Somália que lhe havia calhado – a maior – era uma questão de prestígio.
Por conveniência do equilíbrio de poderes entre europeus, uma parcela do interior, semi-desértica, conhecida como o Ogaden, foi atribuída à Abissínia (hoje Etiópia), que foi o único estado africano a ter permanecido independente durante esta fase da partilha do continente* pelas potências europeias e que, como vemos por este caso, até se beneficiou com ela. Traçadas as fronteiras, a Etiópia ficou com a contar na sua população com uma significativa minoria somali (6%), para mais extremamente concentrada nas suas regiões orientais.
As ambições de reunificação pan-somalis foram um pretexto assumido pelos italianos em nome dos seus colonizados nas suas manobras para a anexação da Etiópia que, tentada uma vez em 1896 e culminada num indecente fracasso (foi o único registado em África…), só veio a ser concretizado em 1936 (com a reconfiguração da fronteira que se vê na imagem de cima da direita) para ser imediatamente desfeita com a derrota italiana pelos britânicos logo no início da Segunda Guerra Mundial (1941).
As duas maiores colónias somalis (a italiana e a britânica) reuniram-se em 1960 para constituírem a nova Somália independente. Todavia, quando a antiga Somália francesa, se tornou independente em 1977, com o nome de Djibuti, não se reuniu ao restante conjunto. O novo país poderia beneficiar da circunstância de se vir a tornar o porto de trânsito de todo o comércio etíope com o exterior por via marítima, na eventualidade da Etiópia vir a perder os portos da Eritreia, o que veio a acontecer em 1993, quando esta última região se tornou um país independente.
Tendo a relação entre etíopes e eritreus permanecido regularmente tensa desde aí, por causa de disputas fronteiriças que ficaram por resolver, Djibuti tem beneficiado por ter seguido uma política externa autónoma e distinta da dos seus vizinhos somalis que, além de uma dinâmica expansionista relativamente aos países vizinhos (Etiópia, Djibuti e Quénia), são também conhecidos por uma dinâmica permanentemente quezilenta entre os seus vários clãs. Tanto, que são um dos raros países do mundo onde não se reconhece a existência - porque não existe! - de uma autoridade central.
Estes recentes episódios que, mais uma vez, parecem pôr em confronto etíopes e somalis (há somalis dos dois lados do conflito) parecem ser uma combinação de disputas internas e externas a que há que adicionar o factor picante e moderno do extremismo religioso propagandeado por um dos lados, um movimento designado por União dos Tribunais Islâmicos que, para além de estar a tentar controlar o resto da Somália que ainda escapa ao seu controle, fez transbordar esse conflito para as regiões de etnia somali dos países vizinhos. Essencialmente, nada de realmente novo, talvez apenas uma refrescada cobertura mediática a respeito dos litigantes.
Fica um comentário final para a ironia do facto de ninguém contestar o carácter nacional somali das populações que habitam os territórios vizinhos que a Somália pretenderia anexar. Fosse esta disputa num continente como o Europeu e, segundo o princípio das nacionalidades, a razão pertencer-lhe-ia inteiramente. Contudo a Somália é africana, o continente em que, infelizmente para ela, questionar e redesenhar as fronteiras herdadas do período colonial seria a antecâmara de um apocalipse generalizado…
* O outro país a respeitar formalmente esse estatuto foi a Libéria, que era uma colónia norte-americana em todos os outros aspectos, excepto no nome.
Nota: O último mapa consta, em várias versões, da Wikipedia, onde ilustra a cobertura do actual conflito e onde se pode acompanhar a evolução da implantação das várias facções. Os riscos vermelhos representam as fronteiras internacionais.
* O outro país a respeitar formalmente esse estatuto foi a Libéria, que era uma colónia norte-americana em todos os outros aspectos, excepto no nome.
Nota: O último mapa consta, em várias versões, da Wikipedia, onde ilustra a cobertura do actual conflito e onde se pode acompanhar a evolução da implantação das várias facções. Os riscos vermelhos representam as fronteiras internacionais.
Mais uma vez didático e esclarecedor, este artigo merecia ser lido por tantos quantos os que se perguntam, ao lerem as superficiais análises jornalísticas, "mas que raio se estará a passar na Somália??". Excelente (como sempre!)
ResponderEliminarEis aqui uma excelente e oportuna informação. Tão excelente e oportuna, que me foi de extraordinária utilidade para comentar a situação que se vive na Somália, num órgão de informação. Obrigado.
ResponderEliminarLS
Muito Obrigado, Sofia, por esse comentário excessivamente elogioso!
ResponderEliminarHonra-me muito anónimo LS, que esta, necessariamente sucinta, análise lhe tivesse útil para uma das suas excelentes apreciações sobre política internacional.
De nada, que o gosto foi todo meu!
Excelente. Cheguei aqui através do João Pedro Gomes do Agora. Tinha feito um post sobre a Somáli, baseado nos meus amigos americanos conservadores anti-imperialistas e vejo aqui um manacila que, como alguém diz - sofia santos - devia ser lido por jornalistas -e -anónimo ls foi mesmo.
ResponderEliminarVou colocar link em meu sistema de blogs http://blog-de-causas.blogspot.com/
http://duascidades.blogspot.com/
Então bom trabalho e cá voltarei, para aprender sempre
excelente introdução à situação da somália. muito informativo. aprendi.
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