Se bem recordo uma história passada num país levantino – possivelmente o Egipto – no século XIX, houve um comerciante europeu lá residente que se viu acusado em tribunal de uma falta contratual com um comerciante local, em que o europeu se havia solenemente comprometido num compromisso que depois não honrara.
Apesar de ter contratado aquele que era considerado um dos melhores advogados locais, o europeu começou a ver a vida a andar para trás, quando, durante o julgamento, a acusação produziu uma dúzia de testemunhos corroborando que haviam presenciado o incidente (que nunca existira), sem que o seu advogado os interrogasse por sua vez.
Até que chegou a vez da defesa apresentar o seu caso, onde esta apresentou o dobro das testemunhas da acusação, confirmando o compromisso, é verdade, mas também como haviam sido testemunhas do momento em que o comerciante europeu o honrara em todos os seus pormenores. A defesa ganhou o caso e a reputação do advogado dali saiu muito reforçada.
Apesar dos Romanos serem famosos pela extrema atenção que dedicavam ao exercício da Justiça, entre os povos que vivem à volta do Mediterrâneo, território por eles fortemente influenciado e onde eles edificaram o seu famoso Império que durou vários séculos, parece existir uma espécie de dissociação inata entre o que pode ser a justiça e o que é a ética.
No exemplo de cima, no Levante, onde já existiam sistemas judiciais elaborados por anteriores civilizações, parecia existir aquela enorme facilidade para o perjúrio, apesar do gesto poder ser fortemente sancionado (com a morte, no antigo Egipto). Entre nós, uma boa síntese da nossa atitude pode obter-se naquele ditado popular que diz que Deus escreve direito por linhas tortas.
Já há muito que é evidente que alcançando o estatuto de dirigente de clube de futebol se fica numa espécie de santuário que impede as perseguições judiciais. Descobriu-o cedo Valentim Loureiro (Boavista), houve quem o redescobrisse mais tarde como Jorge Gonçalves (Sporting – a propósito, alguém sabe o que é feito dele?), quem o tentasse e falhasse como Alexandre Alves (Benfica – por causa da FNAC) ou o conseguisse como Vale e Azevedo (Benfica).
E essa evidência reforçou-se recentemente ainda mais com a forma como (não) evolui este processo a que se deu o nome de Apito Dourado, envolvendo Loureiro, Pinto da Costa e todas as estruturas dirigentes da arbitragem. Se fosse para acontecer já deveria ter acontecido e esta nomeação de Maria José Morgado mais não parece que um gesto desesperado para o que parece fatal como o destino não o seja…
Estando praticamente esgotadas as expectativas de uma justiça razoável, o eficiente advogado levantino do nosso caso inicial possivelmente aconselharia que se optasse por uma abordagem mais arredondada do problema com um julgamento na praça pública com alguém que, na ausência de Deus, se dispusesse a escrever direito por linha tortas. E talvez seja assim que tenha aparecido aquele livro de Carolina Salgado.
Que, pelas descrições que se tornaram rapidamente públicas do seu conteúdo, parece ser um livro abjecto: narrar os problemas gastrointestinais de Pinto da Costa ou o corte das suas excrescências capilares nasais só merece o adjectivo de sórdido. E do melhor sórdido para merecer boa audiência junto das camadas populares, porque aqui há uns anos uma biografia arrasadora de Valentim Loureiro, ainda que publicada no Expresso, quase passou desapercebida…
É um facto conhecido que o mundo do futebol é um mundo sem regras e sem ética. Mesmo assim, é incomodativo transformar Pinto da Costa numa figura de um palhaço maldoso que se peida desmesuradamente... Mas, assim como o nosso advogado levantino respondeu a uma mentira com uma mentira ainda maior, também não posso dizer que fique com pena de que calhe a Pinto da Costa ficar agora à espera da rapidez da justiça, e que depois os caluniadores se escapem com uma balela como a pregada por ele no caso do árbitro Carlos Calheiros…
Assim como estamos, no caso improvável da justiça vir a funcionar, as duas partes (Pinto da Costa e Carolina) serão condenadas e tanto melhor! Entretanto, enquanto esperamos, as duas partes estão a ser condenadas por um outro tribunal - o da opinião pública. Reconheço que é um trilho perigoso, mas reconheça-se que deve haver algo de muito preocupante no conceito que a sociedade portuguesa tem hoje do funcionamento da justiça formal, quando há a sensação que é preferível haver esta justiça ad-hoc a não existir nenhuma...
A análise e o enquadramento do fenómeno da corrupção no futebol estão perfeitos.
ResponderEliminarA grande dificuldade (diria mesmo a insuperável dificuldade) reside na formulação de uma mentira maior do que aquela que envolve o nosso futebol há dezenas de anos.
E daí... Talvez, afinal, a única mentira maior consista em afirmar que estes senhores são homens sérios e bons pais de família...
Mas o que mais choca é estarmos perante factos que são do conhecimento geral há décadas.
Pergunta-se : não há por aí um único velho jornalista, reformado, retirado, que tenha a coragem de contar o que sabe?
Não há por aí um único jogador capaz de confessar que tomou doping?
Que é feito daquele médico que revelou (para a SIC) que fornecera doping a vários clubes?
Não há por aí um Secretário de Estado interessado em levar a cabo uma operação "pés limpos"?
Quem tem medo da verdade?
De facto, Paciente, a pergunta geral que coloca é extremamente pertinente.
ResponderEliminarParece existir na nossa sociedade duas ordens com escalas de valores distintas.
Uma, a aparente, que é a ensinada e pela qual se rege a maioria, que pugna pela defesa da Verdade, enquanto a outra, está oculta mas é a dominante, em que o valor dessa Verdade está subordinada à conveniência da sua exposição na "praça pública".
E depois também há a gestão da memória da praça pública. Alguém ainda se lembra que Valentim Loureiro - conforme se lê na sua biografia do Expresso - foi apanhado a gamar carteiras dos seus colegas na Academia Militar? Ou os detalhes do "negócio" em que foi apanhado e que conduziu à sua expulsão do Exército?