17 dezembro 2006

COMO MORREM AS ÁRVORES (TV NOSTALGIA – 23)


A propósito de obtusidade deliberada ao que nos cerca, ou mesmo que venha a despropósito, julgo valer a pena evocar aqui uma peça de teatro transmitida pela televisão pela primeira vez vai para uns quarenta anos. Chamava-se As Árvores Morrem de Pé e creio que se tornou, com o decorrer do tempo, um dos ícones do teatro televisionado da TV, como que uma penitência das audiências que lhe roubou.

Filmada na perspectiva de um vulgar espectador que vai ao teatro depois de jantar, a apresentação da peça em televisão é precedida da respectiva viagem até ao teatro e de imagens de uma Lisboa à noite que já só existem na memória dos mais velhos, destacando-se a frota de táxis, que era quase toda composta pelos (na altura) novíssimos Mercedes 180 D, pretos de capota verde, bagageira arredondada e estofos (muito) duros de couro…

Mas se os táxis eram uma novidade, a relação algo cúmplice entre público e os actores mais populares já pareciam ecos de atitudes que estavam em vias de desaparecimento acelerado. A salva de palmas de quase fazer o teatro vir abaixo a saudar a entrada em cena da veneranda Palmira Bastos, a vedeta da peça, e antes de ela dizer umas linhas que fossem para a justificar, já soava a gesto deslocado, de uns outros tempos.

A história narrada pela peça é, de certa maneira, banal, mas até essa banalidade acaba por ter uma utilidade simbólica. Num jogo cruzado de fingimentos é a duplamente veneranda Palmira Bastos que leva a melhor, fingindo que acredita na encenação fingida que lhe prepararam. E daí a frase que remata a peça (recebida com uma estrondosa ovação!): Morta por dentro, mas de pé, de pé, como as árvores!

O nosso respeito cresce quando se descobre que Palmira Bastos tinha, na altura, 91 anos. E, por falar em nonagenários, do respeito que eles nos merecem e da forma como eles, aproveitando-se disso, conseguem dissimular a sua recusa deliberada às realidades, é daquela peça e do papel de Palmira Bastos que retiro o exemplo mais flagrante do que suponho devem ter sido os últimos anos da vida de Álvaro Cunhal…

3 comentários:

  1. Também há árvores que caem à beira das estradas da História.

    Também há muros que caem e rolam como bolas de Berlim.

    Também há homens notáveis que fingem ignorar a queda dos muros e se escondem da realidade atrás de árvores de cenários de ilusão como os do teatro e os de certos partidos políticos...

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  2. E também existem pessoas cujo carácter é imortal e intocável por quaisquer críticas não só pelo simbolismo que construíram à sua volta como pela atitude e verticalidade que pautaram as suas vidas.

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  3. Tem que ser mais específico, Luis Carlos Martins, porque já vi panegíricos muito parecidos com o seu dedicados tanto a Ernesto "Che" Guevara como a monsenhor Escrivá de Balaguer...

    Está referir-se a alguém ou a algum grupo de pessoas em particular?

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