03 dezembro 2006

OS CASAMENTOS DO SÉCULO

No seguimento do poste anterior e a propósito do mesmo espírito acrítico com que se fazem coberturas de determinados acontecimentos de grande visibilidade mediática, ocorreram-me os folclores fúteis que giram à volta dos sucessivos Casamentos do Século, o estafadíssimo qualificativo que se emprega sempre na cobertura de casamentos envolvendo membros de casas reais.

Tão estafado que, contando pelos casamentos dos ditos, os séculos da imprensa cor-de-rosa terão apenas entre cinco a dez anos. O primeiro de que me recordo data dos princípios da década de 70 e envolvia a princesa Ana (filha de Isabel II de Inglaterra) e um plebeu, o capitão Mark Phillips, uma grande paixão por cavalos e, claro está, uma grande paixão recíproca.

Também é verdade que, em complemento, também me recordo de algumas piadas menos simpáticas associando a não muito favorecida fisionomia da princesa Ana com o gosto de Phillips pelos cavalos, mas isso devem ter sido devaneios nossos, de portugueses, um povo reprimido habituado a descarregar em anedotas sobre poderosos o que não podia expressar de outro modo.

Ora os casamentos reais são, tal como as cerimónias papais, acontecimentos para os quais o povo é convidado a assistir mas sem direito para se expressar. O povo não se exprime sobre o casamento dos padres ou a ordenação de mulheres e também não tem nada a dizer sobre com quem casa o príncipe e como ele entende levar depois a sua vida de casado. Havia mais de um milénio que as coisas assim se passavam.

E nem mesmo o príncipe tem tudo a dizer sobre com quem se casa. A monarquia chega a ser mesmo uma instituição mais forte do que o monarca em exercício e limita-o na liberdade de quem escolhe. Isso comprovou-se quando Eduardo VIII de Inglaterra quis casar com uma norte-americana divorciada ou quando Leopoldo III da Bélgica, já viúvo e com filhos, quis tornar a casar com uma flamenga. Tiveram os dois que abdicar.

E mesmo aqueles que fossem original e naturalmente românticos – um conceito muito mais moderno (Século XIX) – como era o caso de Diana Spencer, acabavam por se resignar e integrar a toda esta lógica. Mas o Século XX fez ressurgir uma figura parecida com a do antiquíssimo Tribuno da Plebe romano, exprimindo e fazendo ouvir aquela que é a verdadeira voz do povo: o jornal tablóide!

Actualmente, além de opinarem sobre as culpas de cada uma da partes – a lavagem da roupa suja – que estarão por detrás dos vários processos de divórcio, os tablóides vigiam os comportamentos dos potenciais herdeiros, ameaçando as suas perspectivas de sucessão em caso de má conduta e ainda se permitem realizar inquéritos e sondagens sobra a popularidade da monarquia.

É por isso que não deixo de considerar que talvez haja algo de profundamente hipócrita nas aclamações destes casamentos do século. É apenas um prenúncio simpático para legitimar tudo o que se seguirá. Para uma instituição submetidas à graça de Deus e cujos titulares costumam agir por inspiração divina, todo este escrutínio da parte de quem o faz invocando o povo é mesmo ironicamente excessivo

Sem comentários:

Enviar um comentário