22 dezembro 2006

OVER THE TOP



Apesar de os homens já há milhares de anos se matarem nas guerras, o hábito de mostrar interesse pelos relatos pessoais daqueles que viveram as guerras é um fenómeno muito mais recente, datando possivelmente dos primórdios do Século XX e tendo a moda explodido com os combatentes e veteranos da Grande Guerra (Primeira Guerra Mundial – 1914-18).

Antes disso, lembre-se, apenas por curiosidade, a desdita de Fernão Mendes Pinto que, a pedido alheio, escreveu uma extensa história de aventuras, colando provavelmente diversas experiências que conhecera do mundo atribulado dos corsários asiáticos do Século XVI, apenas para que, concluída a narrativa num livro a que chamou Peregrinação, ficasse para a posterioridade com a fama de mentiroso…

Recorde-se que a Primeira Guerra Mundial na frente ocidental foi sobretudo um confronto entre franceses e alemães. Aliás, são deles os melhores livros de denúncia – O Fogo, do francês Henri Barbusse, publicado em 1916 – e de síntese – A Oeste Nada de Novo, do alemão Erich Maria Remarque, publicado em 1929 – sobre o que terá sido a experiência de ter combatido na guerra das trincheiras.

Mas ninguém consegue destronar os britânicos – os da metrópole e os dos domínios* - na forma como ainda hoje continuam a recordar os acontecimentos e a reverenciar os que morreram durante aqueles intensos quatro anos. Serão poucos os que se saberão que os mortos britânicos neste conflito (mais de 900 mil) correspondem sensivelmente ao triplo daqueles que se virão a verificar por causa da Segunda Guerra Mundial.

Sem terem a tradição de um serviço militar obrigatório, desnecessário e desenquadrado da tradição militar anglo-saxónica, o grande exército de voluntários constituído com o entusiasmo que se seguiu à declaração de guerra em Agosto e Setembro de 1914, foi a primeira ocasião em que as várias classes sociais produzidas pela revolução industrial se encontraram num mesmo sítio, sofrendo as mesmas provações.

Exprimindo-as, em prosa ou em poesia, há um conjunto reverenciado de autores de língua inglesa que escreveram sobre a vida (e a morte) nas trincheiras, como Siegfried Sassoon, Wilfred Owen, Rupert Brooke, Robert Graves ou o australiano Frederic Manning. Para países mais jovens, como o eram à época a Austrália e a Nova Zelândia, os episódios daquela Guerra, tornaram-se até actos fundadores da sua identidade nacional.

Para os britânicos, na iconografia da Guerra, nenhum gesto ficou mais marcado e tem hoje mais significado do que a saída das trincheiras (over the top) para o início do ataque às trincheiras inimigas. Na madrugada de 1 de Julho de 1916, mais de 100.000 soldados britânicos preparam-se para fazê-lo, no quadro de uma nova ofensiva que, após uma longa preparação de artilharia, havia eliminado as resistências alemãs em frente.

Ao fim da manhã desse dia havia mais de 57.000 soldados abatidos na terra de ninguém que separava as trincheiras dos dois contendores, 19.000 deles mortos ou agonizantes, e quase todos deles na situação de impossibilidade de evacuação por se encontrarem debaixo do fogo das metralhadoras alemãs que supostamente haviam sido neutralizadas pela artilharia e afinal não o haviam sido.

Mas as descrições tornam-se mais hediondas ao explicarem como, vaga após vaga, depois de se terem apercebido do que havia acontecido aos que os haviam precedido, numa mecânica automática, a que um sistema de comando completamente impreparado em termos de capacidade de informação ou de observação não conseguiu fazer parar, os homens saltavam das trincheiras, para uma carnificina inconsequente.

Mais de 60 anos depois dos acontecimentos, num filme como Gallipoli (1981, imagem da esquerda), do australiano Peter Weir (onde, numa cena impressionante, os homens deixavam os seus pertences pessoais pendurados em baionetas espetadas, antes do momento fatal) ou numa série cómica como Blackadder goes forth (1989, imagem da direita), com Rowan Atkinson** (que termina de uma forma muito pouca cómica…), as cenas do over the top, que se antecipam que venham a ser um suicídio organizado, continuam a impressionar fortemente.

São imagens pungentes como poucas, a mostrar a que limites pode ir a irracionalidade numa estranha forma de fazer a guerra... Aliás, não é em vão que, mesmo 15 anos depois de o programa ter sido emitido, esse mesmo último episódio de Blackadder goes forth tivesse sido votado no Reino Unido como o melhor episódio final de sempre de séries de TV…

* Canadá, Austrália, África do Sul e Nova Zelândia
** Mais conhecido pela série de televisão onde faz de Mr. Bean.

4 comentários:

  1. Excelente texto, como A. Teixeira já nos habituou. Agradeço a sua presença na blogosfera para "exibir os seus conhecimentos, gostos e opiniões", mesmo que haja alguns comentadores (como a Isabel, uns "posts" mais abaixo) que o desdenhe, preferindo as "escolhas e actos de JPP sempre colocarão em evidência o que sabe, o que lê e o que pensa", para nos iluminarem a nossa miserável existência!

    ResponderEliminar
  2. Obrigado Sofia, pelos comentários simpáticos aqui e na caixa do poste anterior!

    É engraçado como a certos comentadores parece sobrar em devoção o que lhes falta em engenho: o desafio que propuz aos dois admiradores/defensores da poesia matinal do Abrupto, o de me decifrar a poesia em picardo, ainda hoje não foi respondido...

    ResponderEliminar
  3. Muito bom !!
    Convém salientar o tímido agradecimento do povo Francês a todos os níveis e o mau exemplo do seus líderes nesta questão, veja-se o aniversário da libertacão de Paris em 2005. Isto, ainda hoje, magoa muito a sociedade do Reino Unido e nada melhor que Churchill para descrever a animosidade cordial com os franceses neste lado do “English Channel” ou será “La Manche”? aqui fica:

    Winston Churchill was once informed by his butler that French President Charles de Gaulle wanted to speak with him on the telephone.
    Churchill, in the middle of eating a bowl of soup, refused to take the call. DeGaulle persisted, however, and Churchill was eventually persuaded to abandon his meal. When he returned to the table, his soup was cold but Churchill himself was simmering with rage. "Bloody de Gaulle! He had the impertinence to tell me that the French regard him as the reincarnation of Joan of Arc," he cried. "I found it necessary to remind him that we had to burn the first one!"

    ResponderEliminar
  4. Freitas:

    Na impossibilidade de te poder deixar um comentário na tua caixa dos ditos - já aqui me queixei - deixa-me agradecer-te este com os meus votos de um Feliz Natal e um Bom 2007 para ti e para os teus!

    ResponderEliminar