11 setembro 2006

QUANDO A GEOGRAFIA FÍSICA ATRAPALHA A COESÃO NACIONAL – II


Se no caso checo, as fronteiras físicas que, sendo também as políticas, não acompanham as linguísticas e culturais, têm uma antiguidade milenar, as que o Paquistão tem com o Afeganistão são frescas, traçadas no século XIX pelos britânicos, quando estes se mostravam preocupados com a ameaça constituída pela expansão imperial russa, e decidiram estabelecer uma linha de defesa avançada protegendo à distancia aquilo que era verdadeiramente importante: toda a zona fértil do vale do Indo e dos seus afluentes onde se concentrava a esmagadora maioria da população.

Valha a verdade que os britânicos ainda tentaram ir mais além daquela linha de defesa, invadiram o Afeganistão (duas vezes – 1839-42 e 1878-80) e a coisa correu-lhes mal… Valha a ironia que o choque com o império russo acabou por ser evitado graças à diplomacia (1893) e que, por causa dos seus engenhos, como se pode ver num Atlas moderno, o Afeganistão acabou por ganhar uns contornos tais que o império russo e o império britânico nem chegaram a ter fronteiras comuns graças a uma estreita faixa de território designada por corredor de Wakhan.

No conjunto do império britânico das Índias, a ampla faixa de territórios que ia do rio Indo até à fronteira (que era comparativamente muito pouco povoada) sempre foi território instável e de intensas operações militares de repressão à actividade das tribos aí localizadas. O equivalente do nosso Instituto de Altos Estudos Militares (ministrando cursos de comando e de estado-maior) para o exército indiano (depois de 1947, para o exército paquistanês) estava e está localizado, desde 1907, em Quetta, a maior cidade do Baluchistão e da ampla faixa de territórios acima referida.

Não vale a pena referir em detalhe as vicissitudes que conduziram à constituição de dois estados (Índia e Paquistão) por ocasião da independência da Índia em 1947. Mas é importante referir quais os nomes das regiões desejadas para a constituição do Paquistão, um nome composto artificialmente em 1931. Incluíam o P de Pundjabe, o A de Afegânia (uma outra designação para os territórios da fronteira do Noroeste), o K de Kashmir (Caxemira), o S de Sindh e o TAN como terminação de Baluchistão. De P-A-K-S-TAN chegou-se ao nome Paquistão.

Toda esta engraçada construção esconde o facto de que a esmagadora maioria (cerca de 5/6) de toda a população paquistanesa actual se concentrar ao longo do vale do Indo e dos seus afluentes, no Pundjabe e no Sindh. E que as forças dominantes do extremismo islâmico – os apoiantes dos taliban – dentro do Paquistão se recrutam sobretudo dentro da minoria paquistanesa culturalmente aparentada com o outro lado da fronteira, com os fluxos de pessoas, bens e ideias ampliados pelas comunidades de refugiados que se estabeleceram no Paquistão depois da invasão soviética do Afeganistão de 1979.

O Paquistão pode ser analisado como uma espécie de deus Janus, onde a essa face que se vira para Ocidente e para o Afeganistão, se junta uma outra, provavelmente maior e mais importante que se vira para Oriente e para o grande vizinho indiano, o inimigo que, apenas por existir, é uma ameaça. O presidente paquistanês, Pervez Musharraf, é geneticamente um exemplar dessa outra face de Janus, pois nasceu em Nova Deli, capital da Índia actual, e é filho de refugiados muçulmanos que abandonaram a Índia depois da independência de 1947*.

A fragilidade intrínseca do Paquistão é que, devido aos acontecimentos associados ao seu nascimento, sem o Islão não parece ter razão de ser. Mas o Islão extremado que é protagonizado por aquela quinta coluna de pashtuns e baluches (os parentes dos afegãos) está a corroer internamente o país, num processo que – salvaguardando as seguranças associadas à posse do material nuclear – não desagradará de todo à Índia que poderá satelizar mais facilmente os seus vizinhos quanto mais frágeis estejam, como acontece com o Sri Lanka ou o Bangladesh.

Estruturalmente, é quase instintivo que qualquer militar não se disponha (e até se oponha) a ceder qualquer parcela do que se considera ser o seu território nacional. Musharraf é um político, mas também é um militar de formação. Historicamente, entre os militares, apenas recordo de Gaulle que tenha conseguido (apesar de terrivelmente criticado…) ter a ousadia e lucidez de sacrificar território nacional (a Argélia) em favor da coesão nacional. Mas essa será uma hipótese (a da secessão) que Musharraf terá de vir forçosamente a equacionar – seja desencadeada por si ou não…

Porque o Paquistão sedentário do Indo, que gosta dos filmes de Bollywood e dos jogos de cricket está a ficar dominado na frente interna e apagado na frente externa pela imagem projectada para o exterior por aquele outro Paquistão minoritário mas muito militante. E uma guerra civil é o tipo de conflito a que, nem Musharraf, nem o Paquistão, se podem dar ao luxo de ter: o único que houve, em 1971, a Índia interveio e o Paquistão perdeu mais de metade da sua população para o novo Bangladesh independente...

* Curiosamente, o actual primeiro-ministro indiano, Manmohan Singh, nasceu em zonas que pertencem agora ao Paquistão e os seus pais, de religião sikh, abandonaram o Paquistão depois de 1947, numa espécie de simetria daquilo que aconteceu ao presidente paquistanês.

6 comentários:

  1. Mesmo sem professor, as lições de História (e os copy/paste!) continuam...
    Obrigado!

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  2. Não compreendo, entre outras coisas, qual a relação entre a guerra indo-paquistanesa de 1971 e a perda de população paquistanesa para o Bangladesh: este país fica do outro lado da Índia! E essa não foi a única guerra entre os dois países...
    Quanto à essência do post, concordo genericamente, mas não partilho da opinião de que o Paquistão está a ser ideologicamente dominado pela minoria extremista, e muito menos de que será inevitável uma "secessão" no seio do Paquistão. Mas Musharraf percebe bem o perigo, daí o recente acordo com a guerrilha baluche e a falta de empenho no combate à Al Qaeda no seu território, para não antagonizar essa minoria.

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  3. António Rufino:

    Pelo resto do comentário suponho estar perante alguém familiarizado com a geografia e a história da Índia.
    Em 1971, o Paquistão ainda era composto por duas metades, a Ocidental - o Paquistão actual - e a Oriental - o actual Bangladesh - que, embora mais pequeno era mais povoado (elegia 162 dos 300 lugares da Assembleia Nacional eleita nesse ano) do que a metade Ocidental.

    Contudo, a metade Ocidental dominava o país militar e politicamente. Houve eleições livres, a liga Awami (da parte oriental) ganhou as eleições com maioria absoluta e a disputa acabou com a secessão do Bangladesh e o Paquistão original (de 1947) perde mais de metade da sua população. Se me permite uma sugestão para ler a história de uma forma mais desenvolvida:

    http://www.amazon.co.uk/War-Secession-Pakistan-Creation-Bangladesh/dp/0520076656/sr=8-6/qid=1158069288/ref=sr_1_6/026-2090782-4687656?ie=UTF8&s=gateway

    O Paquistão que resta é uma estrutura frágil, dominada por alguma lógica feudal, onde predomina o Pundjabe (e a família Sharif), alternando com o Sindh (e a família Bhutto)e quase parece que apenas os mohajirs - aqueles que vieram da Índia ou deles descendem, como Musharraf - parecem ainda incorporar o sentido nacional do país originalmente concebido por Jinnah.

    A minha análise que prevê uma convulsão conducente a possíveis secessões no Paquistão foi estabelecida a um horizonte temporal estratégico - dezenas de anos. Os seus argumentos - com os quais concordo, Musharraf sabe os riscos que corre - são de cariz táctico.

    Nas suas próprias palavras, Musharraf evita antagonizar essa minoria ou seja, limita a sua capacidade de manobra estratégica por causa dela. Imagine que, em Portugal, Jardim (a minoria madeirense...) consegue fazer isso - condicionar o cmportamento do governo central - a Sócrates. Que ideias lhe passarão pela cabeça, António Rufino?

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  4. Com tudo isto, esqueci-me de agradecer os vossos comentários...

    As minhas desculpas.

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  5. Sr. prof. Teixeira, tem toda a razão! Obrigado pelo esclarecimento, de facto tinha-me esquecido (estava num recôndito canto do meu conhecimento) desse "pormenor" da história indo-paquistanesa...
    Quanto ao resto: ao ler os teus argumentos relativos à possibilidade de secessão no seio do Paquistão num horizonte de dezenas de anos, lembrei-me de um mapa, tido como absurdo, que apareceu há uns tempos numa revista de estratégia militar americana, onde se propunha redesenhar o mapa de todo o Médio Oriente, e onde o Paquistão era dividido em dois, o Baluchistão e o restante território... lembro-me que esse mapa suscitou sonoras gargalhadas blogosféricas...
    Do cenário proposto para a Madeira e Portugal: eu acho que, salvaguardando as devidas proporções, já é isso que os sucessivos governantes do "continente" fazem em relação ao sr. Jardim: ao ignorá-lo e às suas diatribes, estão a minimizar a sua "capacidade de manobra estratégica"... (nota à parte: acerca da Madeira e do pensamento madeirense, lê o post que escrevi no meu blog esta semana, após a minha visita de fim-de-semana à ilha do sr. malcriado...)

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  6. Apesar de tudo, ainda há que contar com um efeito de proporção.

    Ouvir, como ouvi, um paquistanês de Karachi (mohajir) a referir-se ao Baluschistão e à NWFP é como se ele estivesse a falar de um outro país que não o seu.

    O que é exógeno na Madeira são os seus dirigenes (AJJardim, Jaime Ramos), não a região em si, nem os seus habitantes, como aliás está (bem) descrito no seu post.

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