Gravura bizantina do século VI representando o Imperador Justiniano I (527-565) ao centro e a sua corte, simbolicamente desdobrada pelos responsáveis militares (à esquerda), administrativos (ao centro) e religiosos (à direita).
Repetidamente, tenho lido aqui e ali referências à relutância que se nota entre as sociedades da Europa Ocidental em recorrer às suas forças armadas, desabituadas como estão, por 60 anos de paz continuada no continente, da necessidade do recurso ao braço armado dos estados para a solução dos problemas da política internacional. O facto é verdadeiro, a conclusão a que se quer conduzir a partir daí é que talvez não seja tão verdadeira quanto isso…
A forma como (quase não) é estudada, divulgada e enaltecida a história do Império Romano do Oriente entre nós, faz lembrar um pouco a história daquelas famílias, que outrora foram ricas e tremendamente poderosas, mas que se extinguiram ou a quem sobram poucos parentes vivos que se encarreguem de colocar flores nos imponentes mausoléus que normalmente essas famílias têm nos cemitérios.
O Império Romano do Oriente, sempre malquisto no Ocidente por razões religiosas (cristianismo ortodoxo) mas também pela disputa sobre a legitimidade da herança de Roma (que lhe pertencia do ponto de vista político de uma forma incontestável), vindo depois a ser rebaptizado pelos historiadores ocidentais do século XVI como Império Bizantino (como ficou a ser conhecido), perdurou, ao contrário do seu irmão de ocidente, por mais de mil anos (395-1453).
E, de entre as características que se considera que lhe permitiram essa duração de dez séculos encontra-se, nas relações que o Império com o exterior, um extraordinário e reflectido balanceamento do emprego das armas diplomática, económica e militar. Por norma, a última só foi usada quando as outras se mostravam inviáveis e, mesmo assim, as outras duas eram empregues para maximizar as probabilidades da vitória militar.
Esta atitude, que pode ser interpretada como de relutância ao emprego explícito dos recursos militares, parece ser muito parecida com a que agora se critica a Europa ocidental. Com a excepção de Belisário (505-565), não se reconhece no ocidente a mais nenhum bizantino o estatuto de ter sido um grande general. E quanto à diplomacia, o adjectivo bizantino refere-se depreciativamente a algo propositadamente complexo.
Contudo, entre os maiores escritores sobre estratégia da sua época contam-se três imperadores do oriente: Maurício (539-602) com o Strategikon, Leão VI (866-912) com a Taktika e Nicéforo Focas (912-969), com o Tratado sobre a Guerrilha. O que parece comprovar que o estilo adoptado resultava de uma profunda reflexão do modo como se poderiam empregar os recursos à disposição do império.
Havendo actualmente no ocidente um pensamento desenvolvido sobre aqueles temas, não seria surpreendente que se concluisse que a Europa precisava de reforçar os seus meios militares. Para os empregar no futuro, evidentemente. O que é desconfortável é a superficialidade dos argumentos com que se tem invocado, para mais precisamente agora, a premência de empregar os meios que existem para intervir no quadro da actual crise do Médio Oriente.
Afinal, do exemplo bizantino pode-se concluir que, muito provavelmente, os seus dirigentes já tinham interiorizado antecipadamente muito daquilo que, muito mais tarde, um outro pensador sobre estratégia veio a expressar por escrito: Carl von Clausewitz (1780-1831). E é nestas ocasiões, ao ouvir certos tipo de argumentos, que se percebe que ele é um autor muito mais citado** do que compreendido…
* A pergunta resulta de uma analogia, recentemente usada, que, pelas suas atitudes em política externa, os norte-americanos são de Marte e os europeus de Vénus.
** A Guerra é a continuação da política por outros meios é a frase mais conhecida do seu livro Da Guerra.
Soberbo post, parabéns!
ResponderEliminarSeria melhor que quem fala soubesse que pouco sabia e, portanto, que seria melhor calar-se...