12 junho 2006

O CATERING NOTICIOSO

Há notícias que, quando as lemos, nos parecem logo pré-confeccionadas como as que nos são servidas a bordo dos aviões. Através do blogue Câmara Corporativa fiquei a saber da notícia que um despacho do Tribunal da Relação de Lisboa negava o pedido de uma cidadã indiana para que adquirisse a nacionalidade portuguesa.

Estou desconfiado que o título do artigo do Público "Juízes recusam nacionalidade a quem não sabe o hino" possa ser da autoria daquele meu amigo que ultimamente se anda a encarregar das primeiras páginas do jornal, com o sucesso que aqui lhe tenho vindo a reconhecer.

A história, um pouco mais detalhada, pode também ser lido aqui na TSF e aqui no Diário Digital. Substancialmente, nota-se que as duas notícias se distinguem tanto como a lasanha do seu jantar difere da do seu vizinho no voo da TAP em que ambos viajam: a sua folha de alface é maior (ou menor). Mas são igualmente saborosas... e preparadas em terra.

Confesso desconhecer os meandros que permitem a estrangeiros a aquisição da nacionalidade portuguesa, e assim não me posso pronunciar se porventura terá havido excesso de zelo ou escassez de bom senso no despacho emitido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

Mas sei e tenho até alguma rotina a ler notícias de jornal. Reconheço quando uma história está escrita de forma a contornar alguns factos que poderiam predispor o leitor a julgar de outro modo. Por exemplo, que o marido, português, até poderá ser de ascendência indiana e de confissão hindu e terá ido casar à Índia, como aliás é pratica comum entre aquela comunidade. É um pormenor irrelevante para a matéria objecto da decisão jurídica mas não tanto para a história jornalística.

Convém realçar que o acórdão refere que (sic) a requerida revelou um desconhecimento absoluto da história, cultura e realidade política portuguesas. Entendamo-nos no que está lá escrito: nos vultos da cultura, não se trata de ter mencionado o Topê dos Morangos com Açúcar em vez do Saramago; não mencionou ninguém porque a senhora, se calhar, nem deve ver a TVI.

Tenho a impressão que só a adição destes dois pormenores que agora mencionei retira à história o pitoresco de simpatia pela heroína que quer adquirir a nossa nacionalidade enquanto uns juízes desmiolados a tentam impedir. O que justifica que também este caso perca o preto e branco das más histórias jornalísticas em favor do cinzento da realidade. Mas aquilo que considero o mais irritante de tudo nem sequer é isso.

Encontramo-lo na síntese do título da notícia do Público, que associa a recusa do Tribunal à ignorância da letra do Hino Nacional por parte da peticionária. Considero esta espécie de piscar de olho, procurando a cumplicidade do leitor pela partilha da mesma ignorância (no caso, a da letra do Hino Nacional), parece-me ser um processo que, podendo ser ainda considerado nas fronteiras do jornalismo, é do mais boçal que há.

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