29 fevereiro 2008

CONSTANTES GEOESTRATÉGICAS DA HISTÓRIA EUROPEIA

O Império Romano do Ocidente versus o Império Carolíngio.

Quem tiver a curiosidade de sobrepor os contornos do Império Carolíngio* (acima) com os dos 6 países que em 1958 assinaram o Tratado de Roma que deu origem, na altura, à CEE, e que hoje se transformou na União Europeia, vai descobrir que existe uma correspondência muito próxima entre os dois (veja-se abaixo). Mais do que isso, como também se pode observar no mapa acima, os planos de expansão do Império, que ali são representados pelos estados eslavos tributários (a verde), orientam-se para Leste.
Em 1958 e durante os trinta anos seguintes essa expansão natural não pôde ser adoptada porque existia o Muro que dividia a Europa. A CEE aumentou, mas noutras direcções (as Ilhas Britânicas, a Península Ibérica, a Escandinávia) enquanto a Alemanha continuava a permanecer a fronteira oriental do Império. Mas 30 anos não representam nada em História e nos quase 20 anos que seguiram à queda do Muro os alemães rectificaram as fronteiras do Império à custa das novas adesões, para se localizarem precisamente no seu centro geográfico (abaixo).
Durante aqueles primeiros 30 anos de CEE manteve-se uma compatibilidade de objectivos entre franceses e alemães. Depois da unificação alemã essa compatibilidade acabou, e foi por isso que apareceu a necessidade de uma cenografia forçada, como a da fotografia abaixo, realçando como era bom o entendimento recíproco… Adenauer e De Gaulle nunca precisaram de andar aos beijos um ao outro e a geração actual dos dirigentes, com Merkel e Sarkozy, apesar dos beijos, parecem ser feitos de uma massa diferente…
Reconheça-se que Sarkozy parece ter um estilo informal, pouco tradicional na História de França. Que me lembre, é o primeiro monarca francês a legitimar a sua relação com a sua favorita (Carla Bruni), num país onde Luís XIV teve Madame de Montespan e Madame de Maintenon, Luís XV, Madame du Barry ou, mais recentemente, François Mitterrand teve Anne Pingeot. Mas o estilo da Administração Sarkozy nota-se noutros pormenores, para além da devolução dos insultos recebidos em visitas a Feiras...

Numa notícia de hoje do jornal El País, lê-se como a Alemanha está a manifestar as suas maiores reservas ao programa da próxima presidência francesa da União Europeia, que terá lugar no próximo semestre, onde se inclui o reforço de uma União pelo Mediterrâneo, englobando os países comunitários ribeirinhos (França, Espanha, Itália) e também as antigas colónias francesas norte-africanas. Olhe-se para o mapa abaixo e constate-se como o conjunto não passa de uma reconstituição aproximada do antigo Império Romano do Ocidente
Claro que no mundo fluído da diplomacia intracomunitária, com aquela sua gramática própria onde se evitam as colisões frontais, isto é o que existe de mais parecido com uma séria divergência. A União pelo Mediterrâneo pode muito bem tornar-se num instrumento de ameaça de uma fractura interna dentro da actual UE, onde a Alemanha actualmente já assume a tutela hegemónica. Nem de propósito, esta nova União faz lembrar Ala Liberal que está a ser promovida por Pires de Lima dentro do PP, e o que ela poderá fazer ao partido de Paulo Portas...

Com os meus agradecimentos a quem me chamou a atenção para este importante artigo do El País.

* Mais do que apenas o Império Carolíngio, o mapa representa a sua partição pelo Tratado de Verdun (843), entre os três herdeiros de Carlos Magno: a parcela francesa (rosa escuro) a ocidente, a germânica (rosa claro) a leste, e uma central (acinzentada) designada por Lotaríngia, que foi disputada pelos dois lados durante todo o milénio seguinte…

O BAILE DOS BOMBEIROS

Ainda a propósito da alusão à Primavera de Praga, feita dois postes abaixo, merece a pena uma referência a um filme checo de 1967 intitulado Hoří Má Panenko e que depois veio a passar em Portugal já em meados da década de 70 com o título O Baile dos Bombeiros. O realizador desse filme era Miloš Forman, que depois se veio a notabilizar com Voando Sobre Um Ninho de Cucos ou com Amadeus.
É um filme difícil de encontrar (a versão que possuo, em DVD, é a francesa – país onde ele foi baptizado Au Feu, Les Pompiers!), mas foi um filme que, estreado em Praga imediatamente antes da época da Primavera de Praga, veio a ter a sua distribuição internacional no Verão de 1968, precisamente em cima dos acontecimentos que depois levaram à invasão da Checoslováquia em Agosto desse mesmo ano.

Forman bem pode manter ainda hoje que se trata de uma comédia simples, burlesca, sem qualquer pretensão alegórica, mas a história do filme – um baile de bombeiros de uma povoação rural onde acontece de tudo do mais disparatado que se possa pensar… – é por demais saborosa para não se estabelecerem paralelos com aqueles regimes rígidos e formais então em vigor nos países da Europa do Leste – e Meridional…
É que, apesar do aproveitamento anticomunista de que dali se podia extrair, não tenho notícias de que o filme tenha passado em Portugal antes do 25 de Abril*, talvez por causa das fáceis analogias que dali se retirariam com o próprio regime português. Se não estiver enganado, o lançamento de O Baile dos Bombeiros entre nós ter-se-á aproveitado da notoriedade de Miloš Forman como realizador que venceu o Óscar de 1976**.

Pelas razões óbvias, O Baile dos Bombeiros também não era (como não deve continuar a ser...) um filme popular junto da intelectualidade comunista. Mas recordo-me do agradável efeito de surpresa que o filme me provocou na altura, ao descobrir que do outro lado do Muro, ao contrário do que era costume e apesar da nossa pouca familiaridade com a língua***, também se realizavam bons filmes e que entretinham.
Claro que o realizador acabara por ter de se exilar na sequência dos acontecimentos de 1968, tendo-se radicado nos Estados Unidos. O episódio tinha um significado muito preciso quanto à liberdade artística existente nos países socialistas, numa época em que a nossa inexperiência política colectiva ainda nos fazia ter dúvidas quanto às mais amplas liberdades democráticas a que Álvaro Cunhal se referia…

* Mas há quem saiba bem mais do que eu. Veja-se a caixa de comentários.
** Com Voando Sobre Um Ninho de Cucos.
*** Ainda me lembro que a legendagem era feita a partir da versão francesa e não da original.

28 fevereiro 2008

CONSIDERAÇÕES SOBRE UMA DEFINIÇÃO QUE NEM CHEGA A SER ESCATOLÓGICA

Alguém me aconselhou a aqui dar uma explicação prévia sobre uma classificação que às vezes costumo empregar na intimidade, quando quero classificar um certo tipo de textos (ou discursos) que é frequentemente utilizado por aí. A classificação é a de Um Traque na Casa de Banho e a expressão nem chega a ser escatológica porque, assim como os textos a que atribuo a classificação são tradicionalmente pouco práticos e/ou concretos, também a designação que emprego não chega a conter matéria de facto
Explicando-me melhor: na Casa de Banho, porque independentemente da sua notoriedade e agressividade aparente, são escritos (dados) em recato e beneficiam sempre da indulgência com que se aceita a sua existência naqueles locais; Traque porque, como os genuínos, aqueles textos talvez aliviem os seus autores e, porventura, os seus leitores, mas apenas se ficam pelas aparências e em nada costumam contribuir para a resolução do verdadeiro problema que nos faz estar ali sentados, naquela função

27 fevereiro 2008

SOBRE O SIGNIFICADO POLÍTICO E O IMPACTO VISUAL DA IMOLAÇÃO

Quase ninguém se lembrará de quem foi Thich Quang Duc (1897-1963), mas haverá muita mais gente que se lembra da fotografia abaixo, tirada em Saigão em Junho de 1963. O impacto da fotografia, cujo autor que veio a ser distinguido com um Prémio Pulitzer, ajudou a sensibilizar a opinião pública e publicada norte-americana para a necessidade de substituir o regime sul-vietnamita, numa altura em que o problema vietnamita ainda era um embrião de problema para os Estados Unidos.
Para quem acredita nos acasos, esclareça-se que a imprensa norte-americana no Vietname do Sul fora devidamente avisada de véspera que algo de importante se iria passar de manhã naquele local - que era um dos cruzamentos mais frequentado das ruas de Saigão - e que os cartazes da comitiva que acompanhava o suicida estavam escritos tanto em vietnamita como em inglês, considerando quem seriam os verdadeiros destinatários daquela cerimónia macabra.
A sociedade norte-americana parece ter sempre reagido com desconforto a qualquer tipo de suicídio quando seja praticado por razões sociais*. Contudo, supõe-se que originário da Índia, e disseminada a partir daí pelo budismo (religião de que Thich Quang Duc era monge), a imolação tornara-se uma prática corrente na Ásia muito antes do aparecimento das máquinas fotográficas… A novidade do gesto em 1963, muitas repetido depois (veja-se acima e abaixo), consistiu em fazê-lo por causas políticas e na publicidade que lhe foi dada…
Alguns desses episódios foram sérios, mas outros chegaram a beirar o ridículo, como o activista da fotografia acima, que se pretendia suicidar pelo fogo, mas ao lado de um lago ou piscina, por razões fáceis de adivinhar… Outros, pelo contrário, tornaram-se famosos sem que se tenha (que eu saiba) um registo fotográfico do seu gesto: foi o caso do estudante checo Jan Palach (1948-1969) que se imolou em Janeiro de 1969 em protesto pela invasão soviética do seu país, que ocorrera em Agosto do ano anterior.
O local está assinalado através do discreto monumento no passeio que se vê acima e que se localiza no cimo da Václavské Náměstí (Praça Venceslau), quase precisamente no local de onde foi tirada a fotografia da Praça que se vê em baixo, e que é a zona mais central de Praga. Nunca mais me esquecerei, porque quase tropecei literalmente no monumento, num dia em que me dispunha a ir à sua procura e nem foi preciso pedir informações, porque o encontrei a cerca de uns 100 metros da porta do hotel onde ficara…
Mas foi o funeral de Jan Palach que se tornou o grande evento aproveitado politicamente para protestar contra a presença das tropas do Pacto de Varsóvia (sobretudo soviéticas) na Checoslováquia. Parece também não haver muitas fotografias da multidão que acompanhou a cerimónia… Como se assinala numa cena de A Insustentável Leveza do Ser, as que haviam sido tiradas nos protestos de Agosto e Setembro de 1968 haviam sido depois aproveitadas pela polícia política para a identificação dos activistas…

* Desde os kamikazes da Segunda Guerra Mundial até aos terroristas do 11 de Setembro.

26 fevereiro 2008

A ORDEM DE LENINE E A OBSESSÃO RUSSA PELAS CONDECORAÇÕES

Cada sociedade tem uma forma distinta de lidar com as condecorações. Entre os britânicos, por exemplo, foi sempre de bom-tom, pelo menos entre as suas elites, menosprezar a sua posse quando em conversa social mas, por outro lado, num cartão de visita ainda hoje é normal adicionar-se ao nome e aos graus académicos e profissionais, as condecorações possuídas, mencionadas por um código de abreviaturas, que qualquer britânico culto sabe decifrar. Em baixo podemos ver a fotografia do Marechal britânico Sir John French (1852-1925), GCB, OM, GCVO e KCMG e outras coisas mais…

No outro extremo da Europa, os russos também sempre deram um valor desmesurado às condecorações embora o façam de uma forma menos hipócrita. Sobretudo, mais do que o seu valor simbólico, também na sociedade russa se deu sempre valor à própria condecoração como ornamento e não era incomum vê-las a ser usadas em trajes de passeio. Num militar de alta patente, que tradicionalmente em qualquer exército do mundo é alguém com muitas condecorações, essa propensão russa levava a alguns exageros como vemos abaixo no General Alexis Brusilov (1853-1926), onde quase não se vê a farda…
Na nova sociedade soviética de 1917 que desvalorizava, por razões ideológicas, as recompensas monetárias, as condecorações tornaram-se no seu equivalente, e aplicavam-se a situações tanto militares como civis, mas numa escala que não tinha precedentes. Em consequência da Segunda Guerra Mundial, houve quase 15 milhões de condecorados com a Medalha da Vitória Sobre a Alemanha (militar) e 16 milhões com a do Trabalho Heróico Durante a Grande Guerra Patriótica (civil). Em média, cerca de 10% dos 170 milhões de cidadãos soviéticos receberam uma medalha ou outra…
Mas claro que havia as outras condecorações, mais clássicas, a principal das quais era a Ordem de Lenine (acima). Essas eram distribuídas naturalmente com muito mais contenção. Mesmo assim, olhando para a fotografia de um General soviético da Segunda Guerra Mundial devidamente ornamentado (Pavel Batov, 1897-1985), ele parece ainda mais couraçado do que o seu homólogo da Guerra precedente. Os padrões são diferentes dos ocidentais: Batov (abaixo) foi um dos grandes generais daquela Guerra (apesar de ser praticamente desconhecido no Ocidente) recebeu por oito vezes a Ordem de Lenine
Mas, ao contrário do que se poderia esperar, o recorde de Ordens de Lenine atribuídas a uma só pessoa, não pertence a Batov, nem a nenhum dos grandes Marechais da União Soviética que se houvessem distinguido na Segunda Guerra Mundial como Zhukov (4), Koniev (2), Rokossovsky (3), Vasilevsky (8) ou Malinovsky (5). O feito pertence a Dmitriy Ustinov (abaixo), que teve uma carreira de sucesso como administrador de programas sensíveis (como o programa espacial), tendo chegado a Ministro da Defesa da União Soviética de 1976 a 1984 (a sua morte) e que foi distinguido com a máxima condecoração soviética por 11 vezes!
Cada época é livre de escolher e galardoar os seus heróis, mas suponho que também há que saber manter a proporção dos feitos… Pode ser a partir destes pormenores que se consegue compreender melhor, em retrospectiva, que espécie de evolução degenerativa estava a afectar o regime soviético, que acabou por levar ao seu desmoronamento… Tipicamente, Brejnev condecorou-se (em 1978!) com a Ordem da Vitória, uma condecoração extremamente rara e selecta atribuida politicamente apenas aos representantes dos vencedores da Segunda Guerra Mundial... Em 1989, quando Gorbachev revogou a ridícula decisão, já era tarde...

25 fevereiro 2008

O ARQUIDUQUE POR QUEM A EUROPA ENTROU EM GUERRA

A história do Arquiduque austríaco Francisco Fernando a que, ao ser assassinado em Sarajevo em 28 de Junho de 1914, se atribui o começo da Primeiro Guerra Mundial encerra alguns pormenores interessantes que vale a pena contar. Começando por o conhecer em fotografia, vemos nela um homem de olhos muito claros, vestido, como seria de esperar, de uma forma distinta (isso incluiria naquela época uns enormes bigodes armados) mas não muito bonito, de uma fisionomia quase porcina.
Aos 12 anos tornou-se anormalmente rico, mesmo para um Arquiduque austríaco, ao acumular a sua própria fortuna com a de um primo, Francisco, Duque de Modena (Itália), que o fizera seu herdeiro universal. Foram também circunstâncias inesperadas (o suicídio do seu primo Rudolfo) que o fizeram herdeiro do trono aos 25 anos. Mas, por outro lado, era também um homem invulgarmente determinado, que quis casar por amor, muito abaixo da sua classe social, apesar das descomunais pressões em contrário.
Contra as pressões do Imperador Francisco José, seu tio, Francisco Fernando pediu a intercessão do Papa, Leão XIII ou a do Imperador alemão, Guilherme II (acima), mas só após quatro anos de impasse, a grande paixão se veio a concretizar (1899), quanto o noivo já contava 35 anos e a noiva 31 (Sophie Chotek, oriunda da baixa nobreza checa*), e mesmo assim, a autorização estava cheia de ressalvas: tratava-se de um casamento morganático, o que queria dizer que a esposa não adquiria por casamento o mesmo estatuto do marido.
Também os filhos que resultassem do matrimónio não adquiriam os respectivos direitos sucessórios. A praxe infligida ao casal começou na própria cerimónia do casamento, a que quase ninguém da família imperial austríaca assistiu, e continuou a prolongar-se em todos aquelas cerimónias da Corte vienense em que os dois eram obrigados a apresentarem-se separados, por causa dos pesados protocolos. Mas havia uma excepção a esse ritual: no protocolo militar, Sophie era simplesmente a esposa do General Comandante-Chefe …
Esse terá sido um dos factores tomados em conta por Sophie ao decidir-se a acompanhar o marido naquela sua visita de carácter militar a Sarajevo. A possibilidade de poder deslocarem-se e aparecerem juntos nas cerimónias devia ter para eles um simbolismo tal que os levou a assumir o risco. O resto da história é conhecida, mas não deixa de ser uma das pequenas ironias que Sophie tenha morrido pela felicidade de aparecer numa fotografia como a de cima. A enorme ironia foi a Áustria-Hungria ter partido para a guerra para vingar a morte de um príncipe que era tão pouco apreciado na própria Corte de Viena…

* Mas germanófona.

24 fevereiro 2008

A CONFISSÃO DE PHILIPPE LECLERC

Já aqui tive oportunidade de me referir num poste anterior a Philippe Leclerc de Hautcloque (1902-1947), um general francês que se distinguiu durante a Segunda Guerra Mundial. Reza a história (ou talvez a lenda) que numa determinada ocasião, ainda no princípio da década de 1930, quando Philippe de Hautecloque ainda não adquirira o seu pseudónimo de guerra (Leclerc) e era apenas um jovem oficial subalterno de cavalaria, quando comandava o seu esquadrão a cavalo nuns exercícios nocturnos de orientação, o seu adjunto lhe observou como o esquadrão montado que ele comandava estava a caminhar directamente para um campo de obstáculos, cheio de arame farpado.
A história continua, atribuindo a Leclerc uma resposta seca e desagradável à observação; uma outra tentativa de aviso foi igualmente repelida, até que, de repente, os elementos da frente do esquadrão, que seguia em trote rápido, se viram emaranhados numa confusão de arame farpado rasteiro, seguido da inevitável confusão de cavalos que relinchavam e escoiceavam ao contacto com os picos do arame, seguido das pragas dos cavaleiros desmontados ao ferirem-se por sua vez… Enfim, uma verdadeira bagunçada geral! Lá da frente, ainda mais emaranhado que os outros, do meio do escuro, ouviu-se a voz do capitão: - Estou no meio do arame farpado. Levem o esquadrão para as estrebarias e esperem por mim sem desmontar.
Dez minutos passados depois da chegada geral é a vez de de Hautecloque aparecer nas estrebarias, a cavalo e a passo: - Meus Senhores, quando se faz uma asneira imperdoável, nunca se deve ter receio de a confessar. Acabo de cometer uma diante de todos. Desmontar… Depois de ter deixado passar aquilo que considerei um razoável número de dias pela clarificação da questão das identidades múltiplas do autor do blogue Câmara Corporativa (como prometia um dos intervenientes), parece-me possível constatar que o assunto, outrora tão sério, implodiu tão depressa quanto havia explodido. Afinal, julgo que até teria sido bem simples sustentar as acusações com dois, três nomes, contrariando quem afirma o contrário
Aos autores de todas aquelas acusações que faziam do blogue acima referido uma espécie de central de desinformação governamental na blogosfera, escrito por vários assessores que se escondiam debaixo de um mesmo pseudónimo, e que afinal se supõe que obtinham essas certezas da mesma forma que o famoso anúncio do Pilhão (era um primo que tinha um amigo que falara com um senhor que certa vez pensava que havia avistado um…), o que esta história apócrifa de Philippe de Hautecloque pretende recordar é que é sempre possível sair-se das situações mais embaraçosas com categoria. Tem é que se ter categoria. Ou não reconhecer o embaraço da situação, o que vem dar ao mesmo...

23 fevereiro 2008

A BERTA QUE DEU O NOME AOS CANHÕES

Quando, na História da Guerra do Século XX, se fala do emprego da artilharia, o exército que se destacou pelo seu emprego em quantidade foi o soviético; mas o que se destacou pela qualidade do material que empregou foi o alemão. Já aqui se aflorou as descomunais concentrações de poder de fogo (abaixo) que os soviéticos empregavam antes de desencadearem as suas ofensivas durante a Segunda Guerra Mundial.
Pelo contrário, a tradição da qualidade alemã começara já na Grande Guerra anterior, logo em 1914, quando os alemães colocaram em linha um novo obus, com um calibre de 420 mm, especialmente destinado a destruir fortificações. Mas era tão pesado, que depressa se descobriu que era preferível deslocá-lo por caminho-de-ferro. Mas revelou-se tão eficaz que também depressa ganhou a alcunha da dona da empresa construtora: Bertha Krupp.
Embora conhecida em português e inglês por Grande Berta, a alcunha original, criada pelos próprios alemães e também usada pelos franceses, era menos caridosa para com a senhora, traduzindo-se literalmente por Berta Gorda (Dicke Bertha, Grosse Bertha). Por extensão, todas as descomunais peças de artilharia que foram concebidas pelos alemães durante aquele conflito vieram a receber essa mesma alcunha: Grande Berta.
A Grande Berta mais famosa (acima) – apesar dos nomes oficiais de Peça de Artilharia do Imperador Guilherme ou Canhão de Paris– foi um enorme canhão, também transportado em caminho-de-ferro, que foi concebido para atingir Paris a partir das posições alemãs que, quando entrou ao serviço a partir de Março de 1918, com um alcance superior a 120 Km, causou um devastador efeito psicológico junto da população parisiense (abaixo).
Mas o mais paradoxal de todas as histórias destas Grandes Bertas é a da própria madrinha involuntária de tanta arma de destruição que podemos apreciar na fotografia abaixo, juntamente com os filhos. Quando pensaríamos descobrir uma imponente matrona teutónica loura wagneriana a quem só faltariam as tranças, vemos afinal uma senhora não muito bonita mas de pose distinta, qual Cilinha Supico Pinto de uma outra era…

22 fevereiro 2008

OS PRINCÍPIOS DE GUILHERME OLIVEIRA MARTINS

O chumbo que o Tribunal de Contas aplicou ao pedido de empréstimo da Câmara Municipal de Lisboa é um daqueles acontecimentos políticos que são interessantes mas que a comunicação social não consegue tornar populares. Sendo a fractura entre jogadores do mesmo clube e sóbrios no seu discurso, não há na divergência nada que interesse às massas e dê audiências: nem dali se espreme um tabu... Mas não se subestime a capacidade de influência dos blocos que cada um representa: se ontem, António Costa apareceu na RTP a dizer de sua justiça para, nem passado um par de horas, Guilherme Oliveira Martins apresentou a sua versão na SIC Notícias.

Não me sinto qualificado para me pronunciar sobre a causa que ali os levou, nem é esse o propósito deste poste. Desde o princípio que discordei (e mantenho essa opinião) quanto à nomeação de Guilherme Oliveira Martins para o cargo que agora ocupa. Ontem, ao ouvi-lo discursar sobre os princípios subjacentes à decisão do Tribunal a que preside, mesmo que aquilo contrariasse fosse quem fosse, lembrei-me da questão nunca respondida (também é possível que nunca lha tenham colocado…) dos princípios que nortearam a sua decisão de aceitar a pasta das Finanças naquela fase do estertor final dos governos de António Guterres…

Não parece previsível que Guilherme Oliveira Martins se venha a candidatar futuramente a cargos públicos que o levem a ficar sob a pressão de ter de prestar contas públicas sobre essas suas decisões do passado. Mas que não fiquem dúvidas como, sem que tenha havido qualquer explicação do próprio, ainda hoje não consigo compreender uma decisão que acabou por contribuir para o adiar penoso do colapso do governo que, visto do lugar que ocupava, se anunciaria mais que inevitável. Sabendo apenas o que se sabe, nem que o recusasse por cima das sussurradas razões de amizade por Guterres, verdadeiramente por questões (aí sim!) de princípio…

De Setembro de 2001 a Dezembro de 2004, Portugal deve ter atravessado um dos períodos politicamente mais deprimentes da sua História recente. Para além daquelas figuras que estiveram em primeiro plano de responsabilidades durante aquele ciclo (António Guterres, Durão Barroso, Pedro Santana Lopes e o omnipresente apelante Jorge Sampaio) convém não esquecer as responsabilidades daqueles que foram então os figurantes de segundo plano, como é o caso de Guilherme Oliveira Martins... Resta-me reafirmar que, nesta disputa, tudo o que disse não é sinónimo de simpatia pela posição de António Costa…

21 fevereiro 2008

DE VOLTA A OUTRA DISPUTA ESPACIAL?

A notícia da tentativa de abate de um dos seus satélites espiões que ficou desgovernado, por parte do Departamento de Defesa norte-americano está a fazer-nos regressar aqueles enredos mal amanhados do período mais escaldante da Guerra-Fria, em que quase parecia que havia uma regra não escrita entre americanos e soviéticos que estabelecia que quem dissesse alguma parcela de verdade, perdia pontos… A versão oficial da história está pejada de buracos na sua credibilidade e no fim, nem faltam umas 24 Horas de expectativa para avaliação dos resultados, qual série de televisão

A notícia do satélite desgovernado e do míssil que o iria tentar abater sobre o oceano começou a ser preparada para o auditório mundial há cerca de uma semana, quando irrompeu na comunicação social. E logo então o enredo da história se afigurava muito inverosímil: não se costuma assumir com tanta publicidade estes fracassos técnicos em satélites espiões; o local onde decorreria a operação – em pleno oceano – permitia correr o risco de mantê-la secreta; o motivo invocado para o abate preventivo do satélite – um composto tóxico – fazem sorrir quem se lembrar do passado…
Quase todos os satélites artificiais situados em órbitas baixas regressam à Terra. É um acontecimento muito frequente embora não costume ser um acontecimento mediático. A não ser quando as coisas correm mal mas, mesmo aí e em plena Guerra-Fria, parecia haver uma espécie de entendimento corporativo entre os responsáveis dos dois lados para não dar destaque aos fiascos do oponente. O caso do Cosmos 954 soviético foi uma das excepções, porque era alimentado por um gerador nuclear e quando caiu em Janeiro de 1978, contaminou radioactivamente uma parte do (felizmente despovoado) Noroeste do Canadá.

Há quem diga que, perversamente, os norte-americanos chamaram a atenção para o incidente do Cosmos 954 também para amenizar previamente a antecipada queda da antiga estação espacial Skylab, menos tóxica, mas incomparavelmente muito maior*, que veio a ocorrer em Julho de 1979, sobre o Oceano Índico, mas também sobre a Austrália Ocidental, alegada e felizmente matando apenas uma vaca... Mas o mesmo tipo de incidentes continuou, como foi o caso do Cosmos 1402, também com um gerador nuclear, que em Fevereiro de 1983 se desintegrou sobre o Atlântico Sul**.
Regressando ao presente e às explicações menos conseguidas, já em 1979, por ocasião da queda do Skylab, houve quem propusesse que se abatesse a estação espacial, para que ela caísse numa zona controlada, num oceano. Para além das dificuldades técnicas em fazer explodir um alvo movendo-se àquela velocidade, seria inútil fazê-lo porque apenas se decomporia a enorme estação espacial numa multidão de objectos mais pequenos, algo que viria a acontecer naturalmente quando ela atingisse as camadas superiores da atmosfera terrestre e o atrito a desfizesse.

Foi o que aconteceu, e dessa vez infelizmente, no desastre que atingiu a nave espacial Columbia em Fevereiro de 2003. Esse problema não se pôs a Bruce Willis e à sua equipa de exploradores no filme Armageddon, mas toda a gente sabe que a presença de Bruce Willis e o patrocínio de uma produtora de Hollywood, gera todo um sortido novo de Leis da física… e é assim que a decomposição de um calhau enorme numa miríade de calhaus mais pequenos até pode ter um efeito benéfico para a Humanidade… Deve ser por isso que o Departamento de Defesa deles nos tenta contar enredos destes…
Muito mais a sério e mais afastado dos holofotes da comunicação social, há cerca de um ano (Janeiro de 2007) a China realizou um teste anti-satélite, destruindo um dos seus próprios satélites mais antigos. O teste foi bem sucedido e, na altura, os norte-americanos mostraram-se oficialmente incomodados com os destroços que o teste provocara (pelos vistos, as posições da Administração Bush são tanto mais ecológicas quanto mais longe se está da Terra…) e, imagina-se, internamente preocupados com a capacidade demonstrada pela China para lhes destruir infra-estruturas indispensáveis (as telecomunicações, o GPS, etc.) em caso de conflito.

Sabe-se hoje, que havia muito de efeitos especiais de Hollywood nos testes da IDE*** do tempo de Reagan, um programa que então prometia proteger os Estados Unidos contra uma ofensiva nuclear soviética: os alvos que eram reportados como abatidos vinham em rotas pré-estabelecidas e conhecidas de antemão pelos defensores, uma gentileza que dificilmente os soviéticos reproduziriam em situação de conflito real. Enfim, são aquelas pequenas batotas que apenas se confessam quando se está na posição de vencedor depois do fim do jogo – a Guerra-Fria
Depois dela, os Estados Unidos não têm sido desafiados no campo da tecnologia militar. Afinal, não é em vão que são eles que gastam mais de metade das despesas com a defesa em todo o Mundo. Mas neste caso do Espaço, e especificamente no âmbito técnico, é muito provável que os norte-americanos se tenham considerado desafiados com o teste chinês e tenham resolvido mandar este recado público. Que até pode vir a ter vários outros destinatários (a China, mas também a Rússia ou o Irão). Mas, pela qualidade da história que inventaram, ser-lhes-á preferível que os cientistas se venham a mostrar melhores que a malta das relações públicas…

* O Cosmos 954 tinha 3,8 toneladas, o Skylab era cerca de 20 vezes maior (77 toneladas).
** Em Fevereiro de 1991, foi a vez dos soviéticos deixarem cair a sua estação orbital (Salyut 7) em cima da Argentina.
*** IDE – (em inglês SDI) Iniciativa de Defesa Estratégica. Normalmente tratada pela comunicação social norte-americana como Star Wars, a partir dos filmes com o mesmo nome. Torna-se engraçado, porque nem imaginavam como andavam ironicamente próximos da verdade…
Aqui, vale a pena ler uma excelente análise técnica sobre a intercepção e a história construída à sua volta.

20 fevereiro 2008

PAQUISTÃO: ELEIÇÕES (2)

Os resultados provisórios das eleições paquistanesas (faltam realizar-se as eleições em 5 dos 272 círculos eleitorais da Assembleia Nacional*) mostram uma situação muito longe de estar clara. É evidente que a maior formação política considerada próxima do Presidente Musharraf – PML (Q) – apanhou uma tareia, mas os ganhos foram de tal forma dispersos, que não se configura nenhuma solução política parlamentar evidente.

Os resultados podem ser consultados directamente no Dawn, o mais importante jornal paquistanês de língua inglesa, mas a sua leitura pressupõe algum conhecimento prévio da cena política local. O PPPP que ali aparece (tem um P a mais em relação à designação tradicional por razões que não vale a pena desenvolver) é o partido da falecida Benazir Bhutto, agora herdado pelo seu filho Billawal Bhutto Zardari (abaixo). Foi ele o vencedor.
Mas foi um vencedor que, com 88 lugares ganhos em 272, ganhou apenas cerca de um terço dos lugares em disputa na Assembleia Nacional. O traço distintivo dos resultados é o de uma pulverização da representação parlamentar que, aliás, se mantém. É de reparar que em cada uma das quatro Assembleias provinciais a formação vencedora foi diferente, e apenas num caso (Sindh) a vitória se traduziu numa maioria absoluta.

Mas se a vitória dos vencedores foi mitigada, a derrota dos vencidos foi fragorosa: a do partido de suporte do Presidente Musharraf, o PML (Q), que passou de 105 para 38 lugares e o seu aliado islamista, o MMA, que ficou com 5 lugares depois de ter tido 45. Em contrapartida, o partido do seu inimigo de estimação Nawaz Sharif (abaixo), o PML (N), terá sido o que proporcionalmente mais ganhou, passando de 14 para 66 lugares.

Mas deve evitar-se o erro de analisar os resultados eleitorais da mesma maneira que se faria para um pais ocidental. Note-se que o Paquistão herdou e continua a praticar o sistema eleitoral por círculos uninominais, à britânica, que todos os manuais de Ciência Política comprovam que conduz à formação do bipartidarismo, e procurem-se vestígios dele na composição da Câmara eleita nas eleições de anteontem…

A composição da Assembleia Nacional paquistanesa e das respectivas Assembleias Provinciais costumam ser instrumentais para a legitimação da atribuição do poder. Note-se no quadro dos resultados como em todas as assembleias há uma parcela de deputados pertencentes a Outros, que representam normalmente entre os 15 a 20% do total e cuja fidelidade penderá para quem mais lhe possa oferecer, normalmente quem está no poder.

Por outro lado, se a política paquistanesa se organiza mais em volta de pessoas do que de organizações, um dos grandes vencedores das eleições terá sido Iftikhar Chaudry (acima), o Presidente do Supremo Tribunal que foi demitido do seu cargo por Pervez Musharraf por se ter recusado a validar legalmente a solução por ele encontrada para permanecer no poder como Presidente. A derrota de Musharraf foi a sua vitória e a da sua classe.

A classe de que Chaudry é o símbolo é a das elites civis urbanas do Punjabe e do Sindh que tem apoiado tradicionalmente - mantendo a máquina do estado a trabalhar - as intervenções militares que põem fim aos ciclos políticos democráticos, quando os clãs de que os partidos políticos tradicionais são compostos entram numa prática de cleptocracia excessiva. Perder esse apoio costuma ser, historicamente, muito mau sinal...

Terá sido por sentir-se a perder esse apoio, que Musharraf, incompatibilizado com Chaudry por um lado e com Sharif por outro, terá tentado entender-se com Benazir Bhutto, que entretanto foi assassinada. Neste cenário pós-Benazi, mau grado as simpatias do exterior, as animosidades geradas no passado por Musharraf podem tornar o Presidente actual em algo de descartável, para a obtenção de uma solução política estável.

E isso talvez venha a transformar paradoxalmente o actual Chefe de Estado-Maior do Exército, o General Ashfaq Parvez Kayani (acima - alguém a quem se costuma atribuir a intenção de afastar os militares da política), numa peça fundamental para a consolidação de uma solução pós-eleitoral, seja de forma indirecta (forçando a saída e substituição do Presidente Musharraf), quer mesmo directa (substituindo-o no cargo).

* A Assembleia Nacional paquistanesa tem na realidade 342 lugares, mas apenas 272 resultam de eleições em círculos uninominais. Há 60 representantes femininas e 10 representantes de minorias religiosas que são eleitos de forma proporcional aos dos lugares de eleição directa. Os números que se seguirão referem-se apenas aos 272 deputados eleitos directamente.

19 fevereiro 2008

A PIRUETA LÓGICA?

Hoje, acabei por apenas passear-me por blogues alheios, de que um dos resultados é o meu poste anterior sobre a misteriosa identidade de Miguel Abrantes. E a leitura do Abrupto também se revelou interessante, principalmente a dos dois últimos postes que José Pacheco Pereira ali colocou ontem, dia 18.
Por ordem da minha leitura, no das 23H58, intitulado NUNCA É TARDE PARA APRENDER: A GUERRA DO IRAQUE COMO OPERAÇÃO MILITAR (3), li-o referindo-se à boa-fé com que a Administração Bush acreditava que o regime iraquiano possuía um arsenal químico e como estava disposto a empregá-lo em caso de invasão.

No anterior, das 15H58, intitulado VAMOS A VER, li-o ridicularizando – com uma infindável série de fotografias… – o responsável da Protecção Civil de Loures, que assegurara num programa de TV, que a construção de uma nova ponte em Loures tinha acabado com os problemas das cheias, para depois vir a ser clamorosamente desmentido pelos factos.
Ora é de se lhe perguntar (e acabei por fazê-lo) se, invocando a lógica do primeiro poste, não haveria sempre a possibilidade de equacionar a hipótese que o responsável da protecção civil de Loures pudesse ter proferido aquelas afirmações no programa de TV com a mesma boa-fé que José Pacheco Pereira atribuira acima à Administração Bush?…

Ou se, invocando a lógica do segundo poste, tal qual aconteceu no estúdio com aquele mesmo responsável da Protecção Civil de Loures, não teria sido possível a José Pacheco Pereira mencionar em cima que a Administração Bush talvez tenha alardeado uma confiança excessiva nas suas próprias teses?… Mas sem as fotografias das armas químicas que, essas, não havia?…
Talvez seja por causa do contraste de estarem assim encadeados, mas parece-me haver uma espécie de enorme pirueta lógica entre aqueles dois postes. Ou então tudo se resume a uma mera questão de simpatias e antipatias pessoais…

PSSST!... IT IS HE, ABRANTES!

Devem lembrar-se os admiradores da série televisiva ´Allo!...´Allo!... que nela entrava um velhote que gostava imenso de se disfarçar mas cuja figura permanecia sempre inconfundível, apesar dos adereços. Era Monsieur Leclerc e a sua deixa naquela série, continua a ser memorável, enquanto repuxava os óculos para a testa (abaixo): – Pssst!... It is I, Leclerc!...* A resposta que René Artois (acima), o dono do Café, lhe deu numa ocasião também merece ser preservada: – Leclerc, o homem das 1.000 caras… todas elas iguais!
Se com Leclerc, ele tinha uma só cara mas pretendia passar por ter muitas, parece que com o autor do blogue Câmara Corporativa, que assina Miguel Abrantes, se passa precisamente o inverso: ele reclama só ter uma cara e são outros que reclamam que ele tem muitas, as de variados assessores governamentais, embora tente passar por ter uma só. Por mim, e a comparação chega a ser evidente, prefiro os enredos de David Croft e Jeremy Lloyd (autores da série) aos de Francisco Almeida Leite ou de Carlos Abreu Amorim.
É que enquanto os dois argumentistas britânicos pretenderam abordar de forma ligeira um assunto que até é sério (a ocupação da França durante a Segunda Guerra Mundial), aqueles nossos colegas de blogosfera (e outros) parecem andar a esforçar-se por levar tremendamente a sério um assunto que parece ter um interesse muito ligeiro: a identidade de um autor de blogue que resolveu distinguir-se dos restantes por defender sistematicamente o governo. Na notoriedade, pelo menos, parece estar a ser muito bem sucedido…

* Não me parece possível traduzir para português o trocadilho da deixa de Leclerc. De forma gramaticalmente correcta, Leclerc deveria dizer It is me (sou eu) e não It is I, mas a forma como Leclerc emprega a segunda expressão pode ser entendida na forma literal como um tremendo auto-elogio pela qualidade do disfarce: Isto (it) – que estás a ver – sou eu (is I) – daí o levantar dos óculos, para ajudar a identificação – Leclerc – não fossem restar dúvidas…

18 fevereiro 2008

PAQUISTÃO: AS ELEIÇÕES (1)

– Quando penso que íamos fazer eleições para escolher um novo chefe. As urnas já estão cheias.
– As urnas estão cheias antes das eleições?
– Sim, mas deitam-se ao mar sem as abrir, e depois é o mais forte que ganha. É um costume nosso.

Astérix na Córsega, Prancha 21B
Os paquistaneses parecem ter um historial de relação com eleições que será muito parecido com o que foi acima caricaturado nos corsos. Quando em Dezembro de 1970, os militares então no poder – o presidente era o general Yahya Khanconvocaram umas eleições cujos resultados finais se revelaram precisamente ao contrário daquilo que estariam à espera, não tiveram qualquer pudor em prender aquele que havia saído vencedor das eleições, o Sheik Mujibur Rahman

O gesto é simbólico da conta em que os militares tinham a expressão da vontade popular – seria o equivalente a ter assistido, em pleno PREC, a ver Mário Soares preso pela ala comunista do MFA, mesmo depois do PS ter vencido as eleições para a Assembleia Constituinte de 1975... – mas também é revelador como há outras forças no país, representadas naquele acto pelos escrutinadores do acto eleitoral, que ousaram transmitir os verdadeiros resultados eleitorais, que sabiam ir desagradar o poder.
É sabido que quem está no poder pode sempre organizar previamente os processos eleitorais. E mesmo quando se descobre que um deles foi mal organizado (i.e., a fraude não foi suficiente para obter resultados favoráveis), há sempre a hipótese de criar a confusão suficiente para se suspender a contagem de votos e a comunicação dos resultados, como aconteceu, de resto, recentemente no Quénia. Ora, neste aspecto, a sociedade paquistanesa parece estar muito mais avançada que a queniana… ou do que a russa.

Ou, pelo menos, o desplante dos seus actores políticos principais é menor. Entre os componentes de estado do período do Raj* que tanto os indianos, como os paquistaneses ou os bangladeshis preservam com orgulho conta-se o aparelho militar, o aparelho administrativo e o aparelho judicial, sobretudo as elites que os dirigem, que têm uma importância fundamental em países onde se reconhece que é da sua própria natureza social que as sociedades estejam rigidamente estratificadas (as famosas castas).
A respeito do Paquistão, já aqui desenvolvi a questão dos militares e, por extensão, a da casta dos oficiais. Quanto à casta dos funcionários administrativos (denominado ICS durante o período colonial, rebaptizado CSP no Paquistão independente*), ela combinava o snobismo dos seus homólogos britânicos, mas acrescentado de condições de acesso (havia milhares de candidatos para dezenas de vagas…) que eram quase tão difíceis quanto as lendárias provas que conduziam ao mandarinato na China…

Mas são as elites do aparelho judicial que poderão ser um dos principais agentes em jogo nas eleições paquistanesas que hoje têm lugar. Ao contrário do que acontece na Índia, porque a maiorias das regiões que hoje compõem o Paquistão foram as últimas a ser adicionadas ao Império já nos meados do Século XIX, a prevalência da Lei, tal qual é interpretada nos estados de direito modernos, parece ser ali bastante mais frágil do que acontece no resto do subcontinente.
Mais do que isso, nas províncias fronteiriças contíguas ao Irão e ao Afeganistão, os britânicos nem sequer mexeram nas estruturas tribais feudais que então vigoravam e que continuaram a vigorar depois de 1947 até aos dias de hoje. Mas, mesmo mais ténues que as da Índia, nas províncias mais importantes situadas no vale do Indo e tributários, as heranças das modificações legais introduzidas pelo Raj transformaram o Paquistão num país muçulmano atípico nas relações com a Lei.

Não me lembro de ter visto, em qualquer país muçulmano, um dirigente político que se tenha incomodado muito com a ameaça de sanção judicial por parte do Presidente do Supremo Tribunal nacional, como aconteceu com Pervez Musharraf, quando teve que demitir e substituir manu militari o juiz Iftikhar Chaudhry em Novembro de 2007. Mais exótico que isso, só mesmo as manifestações dos advogados paquistaneses protestando contra esse gesto. Mais uma vez, seriam gestos improváveis de acontecer em Nairobi, mas também em Moscovo...
O Paquistão é um país extremamente complexo que, para mal dele, sofre da síndroma jornalística de Alemanha nazi: nesta, qualquer centena de maduros de braço direito esticado e entoando slogans nazis é uma boa notícia; naquele, para isso os maduros têm de andar com bandeiras verdes e a entoar slogans pela grandeza de Alá… Ora o que eu creio que hoje está em discussão quase nada tem nada a ver com folclores desses: trata-se da eterna disputa que o Paquistão tem mantido consigo mesmo para se conseguir manter como a nação que ainda não é…

Essencialmente, perante um presidente que está (e estava) em progressiva perda de força perante as elites que mantêm o país unido (incluindo também as militares), como acontecia com a prática corsa de Astérix, as urnas já estavam cheias com os votos em Benazir Bhutto só que ela entretanto morreu assassinada... Esse processo de transição de poder falhou, e só a inércia do formalismo manteve as eleições. Ganhe quem ganhar – e o mais provável é que seja o PPP*** – o que se segue é verdadeiramente uma incógnita...

* Período colonial britânico.
** ICS – Indian Civil Service; CSP – Central Services of Pakistan. Em 1947, 95 dos 101 membros muçulmanos do ICS transferiram-se para o CSP.
*** PPPPartido Popular Paquistanês, que era dirigido por Benazir Bhutto.