03 fevereiro 2008

UM POUCO DA HISTÓRIA POLÍTICO-MILITAR PAQUISTANESA

Um dos maiores desafios que se porá depois das próximas eleições de 18 de Fevereiro aos responsáveis paquistaneses será o da reconstrução de uma nova argamassa que mantenha a coesão nacional do seu país. Foram tentados vários figurinos de relações entre as províncias e o estado central ao longo dos 60 anos da sua história, mas as tentativas terminaram sempre com a intervenção do Exército. É o caso actual.

Não faltam as analogias com outros casos semelhantes (o da Turquia, por exemplo) e as frases espirituosas inspiradas no caso prussiano e na frase de Voltaire, afirmando que no Paquistão não há um país que possui um Exército, mas sim há um Exército que possui um país… Há um fundo de verdade na afirmação, mas também há as razões explicativas que, como no caso dos cavaleiros teutónicos da Prússia, costumam ser normalmente esquecidas.

Saiba-se, por exemplo, que em 1947, por ocasião da Partição e da independência simultânea dos dois países, Índia e Paquistão, para além do traçado das fronteiras, houve que acordar a redistribuição de inúmeros itens pertencentes à Administração. As reservas em ouro e divisas foram distribuídas na proporção de 17,5% para o Paquistão e 82,5% para a Índia. Essa mesma proporção foi utilizada para as dívidas públicas externa e interna.
Claro que os bens imóveis eram impossíveis de redistribuir e ficariam a pertencer ao Estado do país onde se localizariam, mas quanto aos bens móveis, sempre que possível, seguir-se-ia a proporção de 20% para o Paquistão e 80% para a Índia. Contudo, no caso dos equipamentos das Forças Armadas e dada a proporção de muçulmanos nas fileiras, a proporção acordada foi alterada para 36% para o Paquistão e 64% para a Índia.

A todos os militares do Exército das Índias foi colocada a questão a que país pretendiam vir a pertencer e competia à estrutura a sua recolocação no caso de eles estarem colocados num aquartelamento que viesse a estar do lado errado da fronteira. Uma parte apreciável dos primeiros daqueles que depois vieram a ser conhecidos no Paquistão como mohajirs (os muçulmanos oriundos das províncias que se tornaram indianas) eram militares que assim haviam sido deslocados.

Como se percebe pela comparação das percentagens acima citadas, desde o seu início, era militarmente que o Paquistão melhor figura fazia quando comparado com a Índia. E as razões para tal também eram qualitativas: o prestigiado Command and Staff College do Exército das Índias, onde haviam estudado e ensinado grandes generais britânicos* estava sedeado na cidade de Quetta (Baluchistão), que ficara a fazer parte do Paquistão. Acresce a isso que, por causa da disputa com a Índia sobre a quem caberia a posse da província de Caxemira, que depressa degenerou na primeira guerra indo-paquistanesa (1947-48), desde o início que a preponderância e a necessidade de Forças Armadas eficientes dentro do recentemente formado Estado paquistanês se tornou mais do que evidente. Mas as potencialidades dos militares ainda se reflectiam em outros aspectos internos.

A nova nação paquistanesa era o resultado de uma agregação das províncias indianas onde predominavam os muçulmanos. Culturalmente, essas províncias eram bastante heterogéneas. Entre os idiomas principais contava-se (correspondendo a cada grande província) o bengali, o punjabi, o sindi, o pashto e o balúchi. Mas o idioma escolhido para o novo país (por ser mais neutro) foi o urdu, que era o mais falado no subcontinente.

Convém explicar que o urdu e o hindi são dois idiomas perfeitamente inteligíveis mas que se escrevem com alfabetos diferentes: uma adaptação do alfabeto perso-arábico no primeiro caso, o devanagari no segundo. Sendo o idioma mais falado em todo o subcontinente, foi o escolhido (numa versão intermédia chamada hindustani) para língua de comunicação no Exército das Índias no período britânico. Com esse estatuto, foi transferido para os seus dois sucessores de 1947.
Foi assim que as novas Forças Armadas paquistanesas, apesar do serviço militar ter permanecido voluntário como no tempo colonial, também se acabaram por transformar num instrumento privilegiado de difusão do novo idioma nacional e, adicionalmente, da identidade paquistanesa. Actualmente, calcula-se que só 7 a 8% dos paquistaneses têm o urdu por língua materna, mas uma maioria entende-a, e é nesse idioma que, por exemplo, Musharraf se dirige ao país pela televisão.

Finalmente, há um último aspecto, pouco mencionado, que se reporta à forma muito mais suave como a transição se processou entre a administração militar quando em comparação com aquilo que aconteceu com a administração civil. Constate-se que o quadro de oficiais do Exército das Índias era originalmente composto na sua maioria por britânicos, embora esse quadro fosse completamente independente do quadro metropolitano do Exército Britânico**.

Também a esses oficiais do quadro das Índias de origem britânica – que eram obrigados a saber falar hindustani… – houve que pôr a questão sobre por qual exército optariam. Uma maioria (predominavam os oficiais superiores) preferiu passar à reserva, mas, com os restantes, houve uma tranquila fase de transição (em geral, durou mais do lado paquistanês do que do indiano) em que as funções de comando nos dois lados continuaram a ser exercidas por oficiais de origem britânica***.

A conjugação de todos os factores enumerados explica o prestígio da instituição militar no Paquistão que, adicionado às ambições políticas dos generais paquistaneses****, são capazes de explicar parte da história da predominância dos militares no poder na História do Paquistão. Mas esta predominância só se pode verdadeiramente aceitar se for encarada como uma fase de transição. Depois de passados mais de 60 anos, o Paquistão parece continuar tão ameaçado de desintegração do que sob Ali Jinnah em 1947.

Continuar a fazer apelo ao seu braço militar para sustentar a sua coesão é capaz de ser a melhor solução provisória de um problema de que o estado paquistanês padece e que não parece ter solução definitiva: que fazer com um estado falhado, quando o referido estado já se tornou uma potência nuclear? Que acontecerá, se se desencadearem secessões por todo o Paquistão? Será que, falhos de um governo que os legitime, militares com armamento nuclear podem tornar-se num novo tipo de ONG?...

* Como Montgomery, Wavell e Auchinlek, pela ordem (da esquerda para a direita) em que aparecem na fotografia acima.
** Entre os oficiais mais conhecidos, oriundos do Exército das Índias, contam-se os Marechais Lorde Roberts (Guerra dos Bóeres), William Birdwood (Primeira Guerra Mundial), Claude Auchinleck e William Slim (Segunda Guerra Mundial).
*** Em Janeiro de 1949, o Exército indiano passou a ser chefiado pela primeira vez por um oficial dessa origem. No Exército paquistanês isso só aconteceu em 1951. Na Força Aérea isso só veio a acontecer em 1954 (Índia) e em 1957 (Paquistão) e na Marinha a transição só terminou em 1958.
**** Não se pode deixar de constatar como os comandantes militares indianos, compartilhando a mesma origem dos paquistaneses, terem tido um historial muito mais discreto nos 60 anos posteriores à independência.

2 comentários:

  1. Já estamos habituados a postes rigorosos e muito esclarecedores por parte do Herdeiro de Aécio. Ainda por cima, sucintos. Eis mais um deles, cuja oportunidade não é demais realçar, dada a situação de profunda crise que vive o Paquistão, com repercussões em todo o mundo, a começar nos países fronteiriços e a atingir países tão distantes como Portugal. Obrigado.
    LS

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  2. Obrigado eu, LS, por um elogio desses.

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