13 fevereiro 2008

A ÉTICA DE PEDIR DESCULPA

A Crónica que Rui Tavares hoje assina na última página do Público, com o mesmo título deste poste, é bastante interessante e, por esta vez, não concordo com o conteúdo do que o autor ali escreve. Como a ligação só é possível aos assinantes do jornal, há que fazer uma síntese do seu conteúdo, para que o poste fique perceptível: o acontecimento próximo foi o pedido de desculpas à população aborígene do país, apresentado hoje em Camberra, pelo Primeiro-Ministro australiano, Kevin Rudd. Mas a crónica em si é constituída pela crítica sobre quem costuma desvalorizar estes gestos.

Citemos uma parte dessa crónica: Há sempre quem ridiculize estes actos (os pedidos de desculpa) sob três pretextos. Em primeiro lugar, o pedido não anula o mal que foi feito. Em segundo lugar, o pedido de desculpas é meramente simbólico. E em terceiro lugar, não devemos ter vergonha do passado, por muito feio que ele seja, se não tivermos tido parte directa nesse passado. Segue-se o desenvolvimento – feito com a elegância a que Rui Tavares nos habituou – objectando cada um daqueles pretextos. Sinto-me abrangido: discordo da maioria daqueles actos e até já aqui ridicularizei um

Suponho que Rui Tavares, naquele elenco, não pretendeu cobrir todas as motivações de quem ridiculariza tais manifestações. Um dos aspectos que ele não enumera e que eu muito valorizo é o da oportunidade, o tempo que decorre entre os acontecimentos e o do pedido de desculpas: é aquilo que, para mim, torna perfeitamente pertinente o gesto de penitência de Willy Brandt em Varsóvia em 1970, 25 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, mas torna, por sua vez, perfeitamente ridícula a admissão por João Paulo II de que a Igreja se excedera no processo de Galileu, 359 anos depois…

A História da Humanidade, para além dos factos, também é feita de uma evolução lenta mas contínua das mentalidades das sociedades e, enquanto que 15 anos passados, essas mudanças terão sido suficientemente ténues para que o pedido de desculpas ainda faça todo o sentido*, em 359 anos essas transformações terão sido de tal forma que já se terá esgotado de todo o seu significado**. Eis pois, um exemplo por que considero que estes pedidos de desculpa, tal qual acontece com os medicamentos, nem sempre se devem engolir e também têm um prazo de validade.

Aliás, por ter falado em medicamentos, o mundo da medicina é um dos casos que está pejado de exemplos de evoluções científicas que transformaram em obsoletos os conceitos e procedimentos anteriores. A operação que acalmava os pacientes e que granjeou o Prémio Nobel da Medicina de 1949 ao português Egas Moniz, a leucotomia pré-frontal, veio a ser abandonada posteriormente por causa dos seus efeitos secundários***, conforme aparece implicitamente criticada na parte final de Voando Sobre um Ninho de Cucos, o filme vencedor do Óscar de 1975.

Se na ciência a objectividade facilita a distinção entre o que era e depois deixou de ser correcto, não se deve perder a modéstia de questionar se estes valores aceites no presente, e que nos servem agora de referência para os actuais pedidos de desculpa, não venham por sua vez a ser questionados no futuro. Será que ainda viremos a pedir desculpa pelo uso de animais como cobaias em experiências médicas? Quem é que se apresentará para pedir desculpas pela degradação do ambiente desencadeada a partir do arranque da Revolução Industrial?

Contidas e apropriadas a princípio (embora exilado na Suécia, Willy Brandt era contemporâneo da insurreição do Gueto de Varsóvia), os pedidos de desculpa, pedidos e prestados, depois degeneraram numa inflação que lhes retirou qualquer valor. Kevin Rudd pediu hoje as suas, pelo tratamento dado aos aborígenes da Austrália, os aborígenes da Papua Nova Guiné também já haviam pedido as deles, por terem andado a comer missionários no passado… Todos estes gestos têm a sua componente política de relações públicas, mas uns preservam uma dignidade que outros não conseguem…

Se Ossama Bin Laden quiser pedir desculpa pelos atentados do World Trade Center ainda vai muito a tempo de o fazer. Se George W. Bush quiser pedir desculpa, sobretudo aos seus concidadãos que o reelegeram, pela maneira como conduziu os Estados Unidos nos últimos oito anos também vai muito a tempo. Haverá outros casos em que desculpas podem ser exigidas, embora seja difícil identificar quem possa personalizar a culpa para as pedir. Noutros ainda, já morreu quem deveria pedir as desculpas. Mas do resto, e nele incluo o gesto de Ruud, discordo, e nem sequer pelas razões denunciadas por Rui Tavares...

* Na época, em sondagem, 48% dos alemães federais acharam o gesto de Willy Brandt excessivo, acharam-no 41% apropriado e 11% não manifestaram opinião.
** Para mais, quando se anexa à conclusão a ressalva que a Inquisição, apesar de errada, agira de boa-fé.
*** O estado vegetativo do paciente.

3 comentários:

  1. Caro amigo
    Alguns meses passados O burgomestre de Antuérpia Patrick Janssens pediu a desculpa à comunidade judaica mas, sublinhou ao mesmo tempo que a geração actual não teve a culpa para aquele acontecimento feito pela polícia de Antuérpia durante a segunda guerra. Apesar o gesto do burgomestre foi bem apreciado pelos cidadãos judaicos e que também recebia muito aplauso dos outros partidos. Contudo, os críticos duros e insultas venham das progenituras dos nazistas. Mesmo hoje em dia negam toda a culpa .Por isso podemos concluir que nunca é demasiada tarde para pedir a desculpa.
    cumprimentos de antuérpia

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  2. Caro Theo

    É a duplicidade do burgomestre que eu não compreendo: sublinha que as gerações que ele representa não têm culpa mas pede desculpa?...

    Pede desculpa a quem? Essa é fácil: aos judeus daquela época que ainda sobrevivam, suponho. Se as novas gerações de gentios não têm culpas, então as novas gerações de judeus não têm que receber as desculpas.

    E o burgomestre pede desculpa em nome de quem? Da polícia de Antuérpia que então prendeu os judeus? Ou da população de Antuérpia que deixou que eles fossem presos?

    Saberá o burgomestre explicar os riscos que corriam quem tivesse procedido (polícias ou população) de outro modo?

    Cada época tem os seus valores, eles vão evoluindo, e estes que o burgomestre usa são apenas os valores da época que vivemos.

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  3. caro amigo,
    As desculpas nunca foram feitas pelos responsáveis desse drama.Para os sobreviventes do holocausto e parentes dos falecidos eram necessário de receber um sinal de reconciliação mesmo sessenta anos depois. A comunidade de Antuérpia é a segunda maior população fora de Israel e os actos anti- semítico crescem aos olhos vistos pois aqueles momentos horríveis tornam fosco na memória dos jovens. Percebo muito bem a sua opinião mas, não acha estranho que precisamente aqueles tenham de ter remorso se reagem contra um acto de reconciliação.
    cumprimentos de Antuérpia

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