18 fevereiro 2008

PAQUISTÃO: AS ELEIÇÕES (1)

– Quando penso que íamos fazer eleições para escolher um novo chefe. As urnas já estão cheias.
– As urnas estão cheias antes das eleições?
– Sim, mas deitam-se ao mar sem as abrir, e depois é o mais forte que ganha. É um costume nosso.

Astérix na Córsega, Prancha 21B
Os paquistaneses parecem ter um historial de relação com eleições que será muito parecido com o que foi acima caricaturado nos corsos. Quando em Dezembro de 1970, os militares então no poder – o presidente era o general Yahya Khanconvocaram umas eleições cujos resultados finais se revelaram precisamente ao contrário daquilo que estariam à espera, não tiveram qualquer pudor em prender aquele que havia saído vencedor das eleições, o Sheik Mujibur Rahman

O gesto é simbólico da conta em que os militares tinham a expressão da vontade popular – seria o equivalente a ter assistido, em pleno PREC, a ver Mário Soares preso pela ala comunista do MFA, mesmo depois do PS ter vencido as eleições para a Assembleia Constituinte de 1975... – mas também é revelador como há outras forças no país, representadas naquele acto pelos escrutinadores do acto eleitoral, que ousaram transmitir os verdadeiros resultados eleitorais, que sabiam ir desagradar o poder.
É sabido que quem está no poder pode sempre organizar previamente os processos eleitorais. E mesmo quando se descobre que um deles foi mal organizado (i.e., a fraude não foi suficiente para obter resultados favoráveis), há sempre a hipótese de criar a confusão suficiente para se suspender a contagem de votos e a comunicação dos resultados, como aconteceu, de resto, recentemente no Quénia. Ora, neste aspecto, a sociedade paquistanesa parece estar muito mais avançada que a queniana… ou do que a russa.

Ou, pelo menos, o desplante dos seus actores políticos principais é menor. Entre os componentes de estado do período do Raj* que tanto os indianos, como os paquistaneses ou os bangladeshis preservam com orgulho conta-se o aparelho militar, o aparelho administrativo e o aparelho judicial, sobretudo as elites que os dirigem, que têm uma importância fundamental em países onde se reconhece que é da sua própria natureza social que as sociedades estejam rigidamente estratificadas (as famosas castas).
A respeito do Paquistão, já aqui desenvolvi a questão dos militares e, por extensão, a da casta dos oficiais. Quanto à casta dos funcionários administrativos (denominado ICS durante o período colonial, rebaptizado CSP no Paquistão independente*), ela combinava o snobismo dos seus homólogos britânicos, mas acrescentado de condições de acesso (havia milhares de candidatos para dezenas de vagas…) que eram quase tão difíceis quanto as lendárias provas que conduziam ao mandarinato na China…

Mas são as elites do aparelho judicial que poderão ser um dos principais agentes em jogo nas eleições paquistanesas que hoje têm lugar. Ao contrário do que acontece na Índia, porque a maiorias das regiões que hoje compõem o Paquistão foram as últimas a ser adicionadas ao Império já nos meados do Século XIX, a prevalência da Lei, tal qual é interpretada nos estados de direito modernos, parece ser ali bastante mais frágil do que acontece no resto do subcontinente.
Mais do que isso, nas províncias fronteiriças contíguas ao Irão e ao Afeganistão, os britânicos nem sequer mexeram nas estruturas tribais feudais que então vigoravam e que continuaram a vigorar depois de 1947 até aos dias de hoje. Mas, mesmo mais ténues que as da Índia, nas províncias mais importantes situadas no vale do Indo e tributários, as heranças das modificações legais introduzidas pelo Raj transformaram o Paquistão num país muçulmano atípico nas relações com a Lei.

Não me lembro de ter visto, em qualquer país muçulmano, um dirigente político que se tenha incomodado muito com a ameaça de sanção judicial por parte do Presidente do Supremo Tribunal nacional, como aconteceu com Pervez Musharraf, quando teve que demitir e substituir manu militari o juiz Iftikhar Chaudhry em Novembro de 2007. Mais exótico que isso, só mesmo as manifestações dos advogados paquistaneses protestando contra esse gesto. Mais uma vez, seriam gestos improváveis de acontecer em Nairobi, mas também em Moscovo...
O Paquistão é um país extremamente complexo que, para mal dele, sofre da síndroma jornalística de Alemanha nazi: nesta, qualquer centena de maduros de braço direito esticado e entoando slogans nazis é uma boa notícia; naquele, para isso os maduros têm de andar com bandeiras verdes e a entoar slogans pela grandeza de Alá… Ora o que eu creio que hoje está em discussão quase nada tem nada a ver com folclores desses: trata-se da eterna disputa que o Paquistão tem mantido consigo mesmo para se conseguir manter como a nação que ainda não é…

Essencialmente, perante um presidente que está (e estava) em progressiva perda de força perante as elites que mantêm o país unido (incluindo também as militares), como acontecia com a prática corsa de Astérix, as urnas já estavam cheias com os votos em Benazir Bhutto só que ela entretanto morreu assassinada... Esse processo de transição de poder falhou, e só a inércia do formalismo manteve as eleições. Ganhe quem ganhar – e o mais provável é que seja o PPP*** – o que se segue é verdadeiramente uma incógnita...

* Período colonial britânico.
** ICS – Indian Civil Service; CSP – Central Services of Pakistan. Em 1947, 95 dos 101 membros muçulmanos do ICS transferiram-se para o CSP.
*** PPPPartido Popular Paquistanês, que era dirigido por Benazir Bhutto.

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