03 janeiro 2007

A DIFICULDADE DE DESARMAR JOTA-JOTA DENTRO DA GRANDE ÁREA

A memória prega-nos destas partidas e deixa-nos operacionais sinapses que dedicámos a assuntos que outrora mereciam a nossa atenção e hoje apenas nos embaraçam. Vejam este alinhamento da equipa base da equipa de futebol do Vitória de Setúbal na época de 1970-71, treinada pelo inesquecível José Maria Pedroto e apresentada, como se fazia naquela altura, no clássico 4-2-4 que raramente correspondia ao desdobramento em campo:

Torres, Rebelo, Cardoso, José Mendes e Carriço; Octávio e Wagner; José Maria, Vítor Baptista, Guerreiro e Jacinto João.

O Octávio é aquele mesmo de quem vocês sabem de quem eu estou a falar e o Vítor Baptista é mesmo aquele craque, tão terrivelmente jeitoso de pés como fraco de cabeça, a quem o Vitorino ainda recentemente dedicou uma canção. Mas é sobre uma outra estrela da equipa, Jacinto João – que se tornou popularmente conhecido como Jota-Jota – que me interessa aqui falar.

Jacinto João (1944-2004) era um negro angolano, numa época em que os jogadores africanos no campeonato nacional eram uma raridade, embora os que havia fossem normalmente acima da média: eram, por exemplo, os casos de Eusébio e Coluna (embora estes fossem moçambicanos), ou de José Águas e Peyroteu (embora estes fossem brancos) para cometer a injustiça de apenas citar um punhado exemplificativo.

No Vitória, no seu flanco (esquerdo), Jota-Jota tinha como imagem de marca o estilo próprio com que controlava a bola, em que não se percebia muito bem se aquilo que fazia era propositado, se era a bola que casualmente lhe vinha bater no pé ou na canela e acidentalmente seguia para o mesmo lado para onde Jota-Jota corria. E quando ele entrava na grande área contrária com a bola dominada, era o pânico na defesa.

Um desarme ao Jota-Jota era uma coisa muito complicada, porque raramente se antecipava onde começavam as pernas e acabava a bola, o bom do avançado sadino ainda se enrolava com a própria bola, as pernas dele, a perna do defesa, acabava por cair e tudo acabava com uma sacramental grande penalidade, muitas vezes apontada (e convertida) por Vítor Baptista que nessa época disputou até ao fim o título de melhor marcador com o imortal Eusébio.

Eu poderei estar a cometer uma injustiça tremenda mas, ao ler certas análises de situações de política internacional – como esta, intitulada Mais que Bem, a respeito de uma interpretação possível para as negociações entre o governo espanhol e a ETA – e vejo-as tão rebuscadas, tão elaboradas e tão maquiavélicas que, para as rebater, me sinto com a mesma angústia dos defesas que pretendiam outrora desarmar o Jota-Jota.

É que, da mesma forma que naquela altura se confundia onde estava a bola e as pernas e os pés do extremo esquerdo sadino, também naquelas análises parece haver uma tal mistura entre factos, interpretações arrojadas e mais um bom enredo que a sua desmontagem se arrisca a terminar involuntariamente mal e com um enorme desagrado do autor da especulação – só fica a faltar mesmo é a grande penalidade…

3 comentários:

  1. A evocação do Jota está quase correcta, mas falta referir que nada havia de trapalhão naquele genial jogador.
    O Jacinto João era o exemplo máximo (entre nós) da explosão criativa inconsciente, o instinto puro, com a particularidade terrível (para os adversários) de ser totalmente imprevisível.
    Ao arrepio dos cânones, o Jota não procurava fugir nem desviar-se do defesa. Pelo contrário, ia direito a ele, procurava o confronto directo e só quando estava muito perto, mesmo em cima, lhe pregava o nó cego, golpe de asa de último instante que deixava o contrário de olhos tortos e/ou pregado ao chão.
    Resultado: mesmo sem querer, os defesa cometiam falta.
    Nos dias de hoje, o Jota arrancaria milhares de cartões amarelos e vermelhos.
    Ainda por cima, tinha um remate potente.
    Era, de facto, um talento fabuloso.

    Vós, octavianas criaturas, podeis não saber do que estou a falar, mas eu sei.
    Por experiência (difícil) própria...

    PS: Na foto vê-se ainda o Gervásio, da saudosa Académica, no tempo em que ela era verdadeiramente Briosa.

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  2. Só o pudor me fez evitar pedir a revisão do poste a alguém que suspeito poderia ter passado pela experiência directa eventual de ter tido de desarmar o Jota-Jota em campo… Por isso, lhe agradeço a amabilidade do seu comentário, Paciente-que-se-calhar-teve-de-desarmar-mesmo-o-Jota-Jota…

    Terei falhado, se do poste se retirar que o estilo do Jota-Jota era trapalhão… Trapalhice estava em nós, na assistência, e na equipa adversária, que não percebíamos como é que ele continuava com a bola dominada, e como lhe antecipar os movimentos, o que impedia o defesa contrário de lhe fazer um corte limpo, daqueles “à prova de penalti”…

    O paralelo que aqui se põe, é que, como o defesa de outrora não queria derrubar o Jota-Jota, também não me interessa amachucar o ego de quem elabora aquelas conspirações…

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  3. O meu intuito foi apenas burilar o texto do Herdeiro por forma a sublinhar o fenómeno que foi o Jota.
    Quanto valeria hoje aquele demónio?!!
    Diante dele só havia uma coisa a fazer: parar. E olhar apenas a bola.
    Certa vez, tentei (apesar de ser defesa) fazer uma simulação que o levasse a passar por onde eu o esperava.
    Mas o maroto passou precisamente pelo outro lado, deixando-me grudado ao chão.
    Vá lá a gente meter-se com duendes...

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